terça-feira, 31 de dezembro de 2024

O peru e a trança de natal

  
        Na Itajaí da década de 1960, os afazeres de minha família, no Natal, eram realizados mediante a cooperação de todos. Havia atividades sob o comando de meu pai e outras de minha mãe. Meus irmãos ajudavam e eu, nem tanto, por ser ainda criança (filho temporão). As tarefas de meu pai no Natal ficavam restritas aos horários de folga de sua atividade profissional. As tarefas de minha mãe no Natal eram acrescidas à infindável jornada das donas de casa dos anos 60. Estas tarefas, dentre as quais a preparação das comidas e guloseimas que marcavam as festas de fim de ano, demandavam mais tempo, e mesmo quando me aposentei, nem todas consegui reproduzir (até por causa das facilidades dos tempos atuais).

         Cerca de quinze dias antes do Natal eram feitos os docinhos, metade de massa à base de araruta e metade à base de mel. Depois de assados, eram cobertos com suspiro e bolinhas coloridas ou grãozinhos brilhantes e coloridos. No dia 23 de dezembro se fazia o abate, em casa, do peru de Natal, pois não havia para venda aves abatidas. Para que o abate se desse sem muita violência, o peru era embriagado com cachaça. Após o abate, o peru era depenado (usava-se água quente para soltar as penas) e os resíduos eram retirados mediante o sapecamento da ave (se usava uma bacia com álcool em fogo). Na sequência, eram extraídos os miúdos (os órgãos comestíveis). Com os miúdos do peru minha mãe fazia, dia 24, duas farofas: uma branca, com parte dos miúdos, frutas secas, temperos, nozes e castanhas e uma outra farofa (que ficava preta, pois o sangue do peru era misturado à farinha), com o restante dos miúdos, outros temperos e azeitonas. 
         Dia 23 de dezembro, era preparada a primeira parte da massa da trança e embebidas em rum as passas e as frutas cristalizadas. A massa ficava crescendo durante a noite. No dia 24 de dezembro, de manhã cedo, era preparada a segunda parte da massa da trança: mistura de mais ingredientes, colocação das frutas que passaram a noite no rum e dado mais um descanso à massa, sendo depois dividida em três partes, e feita uma trança. Finalmente, a massa em forma de trança era assada.
           Paralelamente à Trança, minha mãe também preparava uma torta de natal, com uma árvore desenhada sobre o doce.
         Enquanto minha mãe cuidava das comidas, meu pai cuidava dos enfeites da árvore de Natal e do presépio (minha mãe também o ajudava), pois tudo era uma surpresa para vermos à noite.
        No dia 24 de dezembro à noite, após a “abertura da árvore” (a “abertura da árvore” consistia em ver a árvore com os enfeites, cantar Noite Feliz, rezar na frente do Presépio e receber os presentes), apenas comíamos os docinhos, a torta e a Trança. Na eletrola, tocavam discos com músicas de natal. A ceia de Natal não fazia parte dos nossos costumes, já que o peru se destinava ao almoço do dia 25. A Trança era partida no dia 24, mas a refeição mais simbólica e melhor para consumi-la era o café da manhã do dia 25. Também na manhã do dia 25 era assado o peru.
         A Trança era basicamente um pão, com passas e frutas cristalizadas. Eu só fui conhecer panetone na década de 1980 e percebi que a trança não era um panetone. Ao final da década de 1990, quando morei em Blumenau, fui conhecer o Stollen, um pão de Natal alemão. A trança não era um stollen, mas parecia mais com ele do que com o panetone.
          No decorrer das décadas de 1960 a 1990, o preparo das iguarias de Natal foi se adequando às ofertas do mercado. Por exemplo: já não era mais necessário embriagar, abater e depenar o peru, que passou a ser vendido pronto para assar; vindo o peru abatido, não havia mais farofa preta; a variedade de docinhos vendidos prontos já desanimava o trabalho de fazê-los em casa (ainda assim, quando morei em Blumenau, a Casa Kieckbusch tinha para venda “essência de doce de mel”, um ingrediente do docinho de mel cujo aroma até hoje me lembro). Daquela faina da década de 1960, porém, restava a Trança que minha mãe fazia. E restava, porque superava o panetone e o stollen... Pelo menos para mim e meus familiares.
        A receita era antiga: tinha sido passada para minha mãe por uma tia (“tia civil”, digamos, pois se tratava da cunhada de meu avô). Esta tia era descendente de alemães, que provavelmente chegaram ao Brasil por volta de 1850. Com eles deve ter vindo da Alemanha a receita da Trança. Daí sua semelhança com o Stollen.
            Enquanto minha mãe viveu, fiava-me nos seus dotes e saboreava a trança todos os Natais. Depois, ainda sem ser dono do meu tempo (o dono era o MPF), vez por outra ganhava um pedaço das tranças que minhas irmãs faziam. Aposentei-me muito perto do Natal de 2018, de modo que não deu tempo para fazer a primeira Trança. Assim, só nos dias que antecederam ao Natal de 2019, é que eu e minha esposa pudemos retomar o costume de fazer a Trança de Natal.
             Mas não bastava a receita (o livro de receitas de minha mãe estava disponível), pois havia certos pulos de gato que minhas irmãs sabiam. Eu sabia só esmurrar a massa até dar o ponto, que era no que eu ajudava minha mãe. Marcamos “aulas” com minhas irmãs, tomamos as devidas anotações e fizemos as primeiras tranças em 2019. Como seguimos rigorosamente as regras intra e extra receita (pois até na culinária, seguir as regras é fundamental), a trança ficou muito boa. Tiramos fotos e colocamos nas redes sociais. Uma prima distante, neta da “tia civil” de minha mãe, reconheceu a trança, pois a receita fora passada até a geração dela; uma outra prima próxima, filha de uma irmã de minha mãe, também reconheceu a trança, que sua mãe e ela faziam. Desde que me aposentei, durante o período de Natal, passamos a fazer a Trança para nosso consumo e para reunir meus irmãos e sobrinhos em torno deste pão que nos traz excelentes recordações. E até temos servido a Trança nas reuniões da família de minha esposa.

Para quem tiver curiosidade, esta é a receita:

TRANÇA DE NATAL Para 1 kg de faria de trigo:

INGREDIENTES:

1 kg de trigo
1 pacotinho de fermento (10 g):
3 ovos e 2 gemas;
4 colheres de sopa (120g) de açúcar;
2 copos (200 ml) de leite integral;
1 colherinha de café de sal;
2 colheres (de sopa/100g) de manteiga;
2 colheres (de sopa/50g) de banha de porco.
1 copo (200 ml) com metade de passas e metades de frutas cristalizadas
1 copo de rum (menos de 200 ml, pois o copo já estará com as passas e as frutas cristalizadas)
4 tubinhos de açúcar de baunilha (80 gramas)
(além do 1 kg de trigo, há necessidade de mais cerca de 200 gramas para pulverização)

PRIMEIRA METADE
Por volta das 20 horas do dia A, colocar as passas e os cristalizados de molho no rum num copo de 200 ml (meio copo de passas e meio copo de frutas cristalizadas; primeiro coloca as frutas e as passas e depois enche-se o copo de rum, até cobrir as frutas).
Faz-se a metade da receita na véspera.
Antes de preparar a massa, desmanchar 1 colher de sopa de fermento biológico em 1 copo (200 ml) de leite morno e deixar descansando por 10 minutos
Faz-se a massa com:
½ quilo de trigo
1 colherinha de café de sal
2 colheres de sopa (60g) de açúcar
2 ovos
1 colher de sopa (50g) de manteiga
1 colher de sopa (50g) de banha de porco
1 copo (200 ml) de leite com o fermento desmanchado;
Bate-se a mistura, podendo ser à mão, ou com colher apropriada ou com batedeira; se amassar com a mão, usa-se trigo para retirar a massa que grudou nas mãos
Deixa-se descansar até o dia seguinte
Cresce a noite toda (ou seja, em torno de 12 horas).

SEGUNDA PARTE

No dia B, por volta das 9 horas, colocam-se os demais ingredientes:
1 copo (200 ml) de leite (na temperatura ambiente)
1 ovo
1 colher de sopa (50g) de manteiga
1 colher de sopa (50g) de banha de porco
1 copo (200 ml) com as passas e as frutas cristalizadas, juntamente com o rum que sobrou no copo;
1 dose de rum puro
2 colheres de sopa (60g) de açúcar
Amassa-se a massa com a mão. Não usar máquina, pois tritura as passas e os cristalizados.
A massa fica no ponto quando não gruda mais na mão, nem na bacia.
Deixa-se a massa descansar por 30 a 40 min.
Unta-se a forma com manteiga (ou banha) e um pouco de trigo; a forma é redonda, sem furo no meio; para esta receita foram usadas duas formas de alumínio (Alumínios Cambé, 280 mm de diâmetro, nº 28, 3,5 Li);
A massa é dividida e moldada em 6 tiras cilíndricas; com cada grupo 3 tiras se faz uma trança, totalizando duas tranças; para a massa não grudar na superfície de apoio, espalha-se trigo;
Feitas as tranças, põe-se-nas nas formas com cuidado;
Deixa-se crescer mais uma hora (ou menos, conforme a temperatura ambiente - se em torno de 25ºC, uma hora; se mais de 30ºC, de meia hora a 40 min); não há notícia na família de feitura da receita no inverno do sul do Brasil, quando as temperaturas ficam em torno de 15ºC ou menos);
Pegar uma gema, colocar num prato de sopa e bater um pouquinho.
Pincela-se gema por cima das tranças já crescidas (pintar toda a parte superior com gema).
Esquenta-se o forno por 10 min em 280ºC; abaixar o fogo para 180ºC quando botar a trança;
Colocar a trança no forno por 20 min; quando ver que a trança está dourada, colocar papel alumínio e deixar por volta de 25 min;
Ao tirar do forno, pegar açúcar de baunilha e fazer um pirãozinho com leite e pincelar em cima da trança enquanto ela ainda estiver quente.
Para saber se a trança está cozida, usa-se palito enfiado na massa; se a massa grudar no palito, é porque ainda está crua; é melhor que asse demais do que de menos.


Publicado originalmente em Nosso Papel.

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