quinta-feira, 24 de julho de 2025

Comércio de Escravos no Livro 4 das Ordenações Filipinas

        Em outra postagem mencionei notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida nas Ordenações Filipinas que descreviam os cativos como “Portugueses apresados nos Estados Muçulmanos da Costa do Mediterrâneo, e de Marrocos” (Livro 1). No Livro 2 das Ordenações Filipinas, há outra nota de rodapé explicando o significado de “cativos” naquele contexto: “Por Cativos se entendia o nacional que os Corsários Barbarescos aprisionavam, e detinham em servidão, e que eram resgatados pelo Governo e particulares.” Em nota do Livro 4, também se vê qual o sentido principal da palavra “cativos” nas Ordenações: “Tirar cativos, i.e., resgatar, remir Cristãos, presos ou escravizados por Maometanos e Mouros.” 

     Como se percebe, a Escravidão de europeus era atribuída a Corsários Barbarescos, Maometanos e Mouros (refiro-me somente ao período de 1500 a meados de 1800, e não à escravidão antes ou depois desse período). Sobre estes corsários há um texto interessante na Revista GEO nº 34 intitulado “Senhores Africanos, escravos europeus”, de autoria de Fred Langer. Não encontrei na revista sua data de edição, mas o artigo é de 2011, conforme consta no texto em alemão:  Afrikanische Herren, europäische Sklaven - aus GEO Juni 2011 - von Deep Roots - acesso em 17/07/2025). Este texto se refere a fatos ocorridos no Século XVIII e menciona piratas do norte da África que caçavam pessoas para escravizar. O texto começa narrando a abordagem de três navios ingleses por aqueles piratas, resultando na captura e escravização de 52 marinheiros. Depois informa que centenas ou milhares de cristãos foram escravizados nos séculos 16, 17 e 18. O texto credita as informações ao pesquisador Robert C. Davis, segundo o qual não há registros confiáveis sobre a escravidão de Europeus no Norte da África. Por isso, a partir de outros registros, foi estimado que, “entre 1580 e 1680 provavelmente havia uma população constante de cerca 35.000 escravos em Argel, Túnis, Trípoli, e em um punhado de pequenos assentamentos ao longo do litoral do Magrebe.” Pela mesma estimativa, Davis calcula que entre 1580 e 1680 “foram escravizados um milhão - possivelmente até 1,25 milhão de europeus”. Davis também informa que havia cativos no Marrocos, no Egito e em Constantinopla (então parte do Império Otomano). Ressalva que, em Constantinopla, dos 30 mil escravos que lá viveram entre 1500 e 1800, muitos vinham da África negra.

     Do texto da revista GEO ainda se extrai que, além da escravização de marujos, os piratas do norte da África fizeram incursões no litoral inglês em 1625 e, no verão daquele ano, raptaram cerca de 1.000 pessoas. Em 1627 os piratas argelinos sequestraram centenas de pessoas na Islândia. Em 1543 os caçadores de gente fizeram operações na Espanha; em 1544 aprisionaram 7.000 pessoas na Baía de Nápoles; 6.000 pessoas em Vieste, na Apúlia e, em 1566, 4.000 em Granada - Espanha. O texto também noticia que, quando as embarcações piratas não conseguiam transportar todos os prisioneiros, estes eram vendidos de volta aos seus parentes. Este resgate, segundo Langer, era módico; mas o resgate normal, pago por um inglês em troca da liberdade de um compatriota cativo, ficava no valor de 38 libras esterlinas. Ainda há notícia de apossamento de cerca de mil navios ingleses, franceses, alemães, espanhois e holandeses pelos piratas do norte da África no século XVII. Até estadunidenses foram aprisionados como escravos. Depois de sequestrados, o destino destes cativos era o porto de Salé, na costa atlântica do Marrocos, em cujo mercado, o Souk el-Ghezel, eram vendidos como escravos, segundo aponta o texto de Langer. O texto termina informando que, em 1816, Inglaterra e Holanda bombardearam Argel e, como fruto da rendição dos corsários, os escravos foram libertados. “Túnis, Trípoli e o Marrocos também se apressam para declarar a abolição da escravidão.

     Se havia corsários do norte da África que faziam razias para escravizar europeus, havia europeus (ingleses, holandeses, franceses e portugueses) e americanos (brasileiros) que compravam escravos na África negra; e havia piratas africanos e americanos que roubavam escravos dos traficantes ingleses, holandeses, franceses, brasileiros e portugueses (FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras – Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 94-95; 128). 

        Vimos acima como se dava o aprisionamento dos escravos brancos nos séculos XVI a XIX. Quanto aos escravos da África negra, pelo menos os portugueses obtinham escravos em decorrência de guerras com os nativos até por volta de 1630 (ver as postagens em que trato da obra de CADORNEGA aqui, aqui e aqui). “A partir da década de 1630, os portugueses dos Portos do Atlântico passaram a ser supridos pelos intermediários de Matamba e Kasanje, que por sua vez obtinham escravos nos reinos mais orientais, em especial Luba, Lunda, Kazembe e Lozi. Apesar de sempre procurar tirar o maior proveito possível das rivalidades entre os Estados nativos, somente depois de 1683 (data da última grande guerra entre os conquistadores brancos e Matamba) é que os portugueses deixarão de insistir em manter contato direto com as fontes produtoras do interior. As guerras de produção de escravos passarão, então, à órbita exclusiva dos africanos” (Birminggham, citado por FLORENTINO, obra citada, pp. 96 e 97). Eram guerras de produção de escravos, porque os vencedores faziam escravos os vencidos, e os vendiam, basicamente trocando “manufaturados europeus ou tabaco e aguardente americano por cativos”; estima-se que “cerca de três quartos dos africanos vendidos para as Américas tenham resultado de guerras” (FAGE, citado por FLORENTINO, obra citada, pp. 84-85). Uma vez chegados da África, os escravos eram postos à venda. No Rio de Janeiro, por exemplo, “eram concentrados sobretudo em armazéns da rua do Valongo. (...) Viajantes da época chegaram a assinalar a presença de grupos de cativos, unidos por correntes, caminhando pelas ruas da cidade, oferecidos de porta em porta” (Karasch, citado por FLORENTINO, obra citada, p. 137).  

     Desde que a compra de escravos na África fosse efetuada em colônia portuguesa (em Angola, por exemplo) e a venda ocorresse em Portugal, ou no Brasil, ou em outro domínio português, este comércio era regulado pelo Livro 4 das Ordenações Filipinas e pela legislação extravagante. 

     O livro 4, além de outras regulamentações sobre compra e venda de escravos, trata também dos vícios redibitórios. O Título XVII é específico sobre o tema, do qual destaco alguns trechos:

Qualquer pessoa, que comprar algum escravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se dele, o poderá enjeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder da tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro dos seis meses do dia, que o escravo lhe for entregue.                             

1. E sendo a doença de qualidade, ou em parte, que facilmente se deixe conhecer, ou se o vendedor se manifestar ao tempo da venda, e o comprador comprar o escravo sem embargo disso: em tais casos não o poderá enjeitar, nem pedir o que menos valia do preço, que por ele deu por causa da doença. Porém, se a doença, que o escravo tiver, for tão leve, que lhe não impida o serviço, e o vendedor a calar ao tempo da venda, não poderá o comprador enjeitar o escravo, nem pedir o que menos vale por causa da tal doença.

2. Se o escravo tiver algum vício do ânimo, não o poderá por isso o comprador enjeitar, salvo se for fugitivo, ou se o vendedor ao tempo da venda afirmasse, que o escravo não tinha vício algum certo, assim como se dissesse, que não era bêbado, nem ladrão, nem jogador; porque achando-se que ele tinha tal vício ao tempo da venda, o poderá enjeitar o comprador. Porém, ainda que por o escravo ter qualquer vício do ânimo (que não seja de fugitivo), e o vendedor o calar, não possa o comprador enjeitá-lo; poderá todavia pedir o que menos vale por causa do tal vício, pedindo-o dentro de um ano, contado no modo acima dito.

3. Se o escravo tiver cometido algum delito, polo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda o não declarar, poderá o comprador enjeitá-lo dentro de seis meses, contados da maneira, que acima dissemos. E o mesmo será, se o escravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.

4. Se o vendedor afirmar, que o escravo, que vende, sabe alguma arte, ou tem alguma habilidade boa, assim como pintar, esgrimir, ou que é cozinheiro, e isto não somente pelo louvar, pelo vender por tal, e depois se achar que não sabia a tal arte, ou não tinha a tal habilidade, poderá o comprador enjeitá-lo; porém, para que o não possa enjeitar, bastará que o escravo saiba da dita arte, ou tenha tal habilidade meãmente. E não se requere ser consumado nela.

5. Se o escravo, que se pode enjeitar por doente, falecer em poder do comprador, e ele provar que faleceu de doença, que tinha em poder do vendedor, poderá pedir, que lhe torne o preço, que por ele deu. E quando se o escravo enjeitar for fugitivo (como acima dissemos), poderá o comprador pedir o preço, que por ele deu, posto que ande fugido, com tanto que possa provar, que em poder do vendedor tinha o vício de fugitivo. E dará fiança a o buscar pondo nisso toda a diligência de sua parte,  e a o entregar ao vendedor, vindo a seu poder.

6. Enjeitando o comprador o escravo ao vendedor, tornar-lho-á, e o vendedor tornará o preço e a siza, que o comprador pagou, e assim o que tiver dado ao Corretor, não sendo mais que o que per Direito, ou Regimento lhe for devido. E assim mais pagará o vendedor ao comprador as despesas, que tiver feitas na cura do escravo, quando por causa da doença o enjeitar.

7. Se o escravo, que o comprador quiser enjeitar, for de Guiné, que ele houvesse comprado a pessoa, que de lá o trouxesse ou ao tratador do dito trato, ou ao mercador, que compra os tais escravos para revender, não poderá ser enjeitado, senão dentro de um mês, que lhe correrá do dia, que lhe for entregue, para dentro dele citar e demandar ao vendedor, que lhe torne o que por ele lhe deu, provando, que ao tempo entrega já era doente da doença, ou manqueira porque lho enjeita. O que haverá lugar, quando ambos estivessem em um mesmo lugar; porque não estando ambos nele, protestando o comprador ao Juiz do lugar, onde está, e mostrando o escravo a dois Physicos, se os houver, ou ao menos a um examinado, que digam, que é manco, ou doente da doença, ou manqueira, que tinha ao tempo, que lhe foi entregue, poderá citar e demandar ao vendedor dentro de outro mês: e assim dentro de dois meses contados do dia da entrega. E isto, estando o vendedor no Reino, porque estando fora dele, poderá o comprador protestando e fazendo a diligência acima dita, citá-lo dentro de um mês do dia, que chegar ao Reino.

     Nas notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida constam algumas informações de importância histórica e dando consta do significado das palavras.

Além da restituição do preço (...) o vendedor indenizará o comprador da sisa que houver pago, corretagem do costume, e das despesas que houver feito com a cura do escravo enjeitado por moléstia como no § 6.

     Esta regulamentação sobre escravos constantes das Ordenações teve alcance geral até 1831. Neste ano entrou em vigor a Lei de 7 de Novembro de 1831, a chamada Lei Feijó - acesso em 22/7/2025. Esta lei proibia o tráfico de escravos e declarava livres os que chegassem a partir de então ao Brasil. Assim, estas disposições das Ordenações, partir de 1831, diziam respeito aos escravos ladinos (que já estavam no Brasil e sabiam falar português) e não aos boçais (que chegavam da África e não sabiam falar português). Transcrevo aqui um artigo desta lei:

Art. 1º Todos os escravos, que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres. Exceptuam-se:

  1º Os escravos matriculados no serviço de embarcações pertencentes a paiz, onde a escravidão é permittida, emquanto empregados no serviço das mesmas embarcações.
2º Os que fugirem do territorio, ou embarcação estrangeira, os quaes serão entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados para fóra do Brazil.

        Como se pode ver em diversas obras, dentre as quais a de FLORENTINO acima citada, esta lei de 7 de novembro de 1831 era constantemente burlada.

        Em outra nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida é explicado o significado de Guiné: esta expressão compreendia todos os países da África que outr’ora abasteciam o mercado do Brasil de escravos.”

O mercador que comprava os escravos na África para revender se chamava tanganhão.

Physicos era a denominação dos Médicos.


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