domingo, 2 de novembro de 2025

Empréstimos no Liv. 4 das Ordenações Filipinas (o comodato)

         Na postagem anterior, mostrei a regulamentação do empréstimo chamado "mútuo" no Livro 4 das Ordenações Filipinas. Vimos que este tipo de empréstimo existe até hoje. Nas Ordenações não fica claro se o mútuo deveria ou não ser remunerado, pois havia proibição do cobrança de juros. Nas notas de rodapé sobre o mútuo, se menciona a possibilidade de ser gratuito. Quando vemos a regulamentação do comodato, podemos perceber que sua característica é a gratuidade. Mas no momento que as Ordenações dizem o que NÃO caracteriza o comodato, ou seja, a não gratuidade, elas não mencionam o mútuo, mas sim o aluguer ou o arrendamento. Veja-se, também, a nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida, que transcrevo, na qual também não se diferencia o mútuo do comodato pela onerosidade do primeiro e gratuidade do segundo: em ambos se admite a gratuidade.

        Mas o livro 4 das Ordenações não deixa em branco a diferença entre mútuo e comodato: "E a diferença que há entre o comodato e o mútuo é, que no comodato não passa o senhorio, nem a posse da coisa no que a recebe , e somente se lhe concede o uso dela, para tornar a mesma coisa "

        Um ponto muito interessante é a razão do nome "comodato" constante no texto das Ordenações: "é chamado comodato, por que se dá para cômodo, e proveito somente do que recebe a coisa "

        O conceito de comodato no Livro 4 das Ordenações Filipinas é muito semelhante ao atual, constante do Código Civil: "Art. 579. O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis. Perfaz-se com a tradição do objeto."

        Ainda na transcrição que faço do trecho do Livro 4 das Ordenações Filipinas, mostro as maneiras que então se usavam para a cobrança da devolução da coisa emprestada. Nestas notas se fica sabendo o que significava a expressão "em espécie": "Em espécie. Expressão do Direito Romano, que deve-se entender – identicamente, individualmente."

        Já em outra nota, pode ser visto o conceito de caso fortuito.

        Vamos às transcrições.

TÍTULO LIII. 

Do contrato de empréstido, que se chama comodato[1].

 O Comodato é uma concessão graciosa que se faz de alguma coisa para certo uso[2].

E diz-se graciosa, porque se se fizesse por dinheiro seria aluguer, ou arrendamento. E se fosse por outra coisa que não fosse dinheiro, ou para uso não certo[3], seria outra espécie de contrato.

E portanto é chamado comodato, por que se dá para cômodo, e proveito somente do que recebe a coisa. E esse uso bastará que seja tácito, e não expresso, assim como, se alguém emprestasse um livro, para o que o pede o trasladar, entender-se-á, que lhe empresta pelo tempo, em que razoadamente o possa fazer[4].

1. E a diferença que há entre o comodato e o mútuo é, que no comodato não passa o senhorio, nem a posse da coisa no que a recebe[5], e somente se lhe concede o uso dela, para tornar a mesma coisa. E portanto o comodato não se faz de coisas que consistem em número, peso, e medida, assim como dinheiro, vinho, azeite ou outros semelhantes que com o uso se consomem[6], e se não podem tornar as mesmas em espécie[7].

Porém, se algumas coisas destas se dessem, para se não gastarem antes se tornarem as mesmas, seria comodato, assim como, se uma pessoa emprestasse à outra algumas moedas de ouro, ou prata para algum aparato de festa, ou representações, e para lhe tornarem as mesmas moedas acabadas as festas, pelo que se o tal dinheiro se perdesse por caso algum fortuito em poder do comodatário não será obrigado a pagá-lo[8], como fora, se lhe dera o tal dinheiro para o gastar, e consumir, como dissemos no Título 50: Do empréstido, que se chama mútuo.

2. E por que este contrato se faz regularmente em proveito do que recebe a coisa emprestada, e não do que a empresta, fica obrigado aquele, a que se empresta, guardá-la com toda a diligência, como se fora sua. E não somente se lhe imputará o dolo e culpa grande, mas ainda qualquer culpa leve e levíssima[9], assim pela coisa principal, como pelo acessório. E por tanto, se um emprestasse uma égua a outro, a qual consigo levasse um poldro, a mesma obrigação terá na guarda do poldro, que na da égua.

3. Porém, se a coisa perecesse por caso fortuito, não será obrigado o comodatário a pagar o dano, salvo quando no dito caso fortuito[10] interviesse culpa sua; assim como, se pedisse um cavalo emprestado para ir a uma certa romaria, e fosse à guerra, ou saísse aos touros, aonde lhe matassem o dito cavalo, ou se foi em mora de tornar a coisa emprestada a seu tempo, ou entre as partes foi acordado, que o que recebeu a coisa emprestada, ficasse obrigado aos casos fortuitos.

4. E os casos fortuitos então escusarão ao que recebeu a coisa emprestada, quando ele direitamente usou dela. Porém, se um emprestasse a outro uma baixela de prata para agasalhar alguns hóspedes em sua casa, e ele a levasse pelo mar, onde os Cossários lha tomassem, ou se perdeu em naufrágio, ou de qualquer outra maneira, ficará obrigado a pagá-la, pois por sua culpa sucedeu o tal caso.

5. E porque algumas vezes as coisas emprestadas se perdem nas mãos dos messageiros, per que se mandam pedir, ou tornam a seus donos, e vem em dúvida a cujo risco se perdem, se do que emprestou, se do que recebeu emprestado; ordenamos que se a coisa se perder, ou danar pela culpa do messageiro, per que se mandou pedir para trazer a dita coisa, correrá o risco aquele, que mandou o messageiro; salvo se foi mandado somente para lembrar, que se mandasse, e não para a trazer.

Porém, se o que recebeu a coisa emprestada, a tornou a mandar por quem quis, ficará à sua conta e risco, pois escolheu mau mensageiro; mas se ele era tal e tão idôneo, que seu amo fiava dele semelhantes recados, e que se não podia presumir que cometesse semelhante maldade, e foi enganado e induzido por algum ladrão, ou outro mau homem, e lhe houve à mão a coisa, que levava, perder-se-á por conta e risco do que a emprestou, por quanto o tal caso se deve reputar por fortuito.  

 TÍTULO LIV. 

Do que não entrega a coisa emprestada, ou alugada, ao tempo, que é obrigado, e do terceiro, que a embarga. 

Se algum homem recebeu de outro alguma coisa, que tinha, como senhor dela, emprestada, alugada, ou arrendada a tempo certo, ou em quanto aprouvesse ao senhor dela, e depois, sendo requerido por ele, passado o tempo, recusar de lha entregar, metendo o feito em Juízo, até ser condenado por sentença definitiva, que passe em coisa julgada, não somente entregará a coisa ao senhor dela, mas além disso lhe pagará a verdadeira estimação da coisa, pela contumácia, que cometeu[11], e em que perseverou em lha não querer entregar, até ser condenado por sentença; a qual pena lhe poderá ser demandada em todo o tempo, assim antes da sentença, como depois dela. Porém, se o demandado, antes de esperar sentença, entregar a coisa com efeito, não será condenado na dita pena.

 1. E se o que recebeu a coisa emprestada, alugada[12], ou arrendada, fez nela algumas despesas necessárias, ou proveitosas, poderá reter em si a dita coisa[13], até que lhe seja paga a despesa[14], que nela fez.

2. E o que recebeu a coisa alugada, ou arrendada do senhor dela por certo tempo, e pagar o aluguer e pensão dela aos tempos conteúdos no contrato, poderá reter a coisa, até que todo o tempo do aluguer, ou arrendamento, seja acabado.

3. E se o senhor da coisa, estando em posse dela, a emprestou de sua mão a outrem a tempo certo, ou em quanto lhe aprouver, ou a alugou, ou arrendou a tempo certo, por certa pensão, se passado esse tempo, o senhor demandar a coisa, como coisa emprestada, alugada, ou arrendada, não lhe poderá dizer o a que assim foi emprestada, alugada, ou arrendada, que a coisa é sua[15], e que lhe pertence per Direito por algum título. E posto que alegue tal razão, não lhe será recebida, mas será em todo caso obrigado de entregar a coisa ao senhor dela, de quem a recebeu, e depois que lha entregar, lha poderá demandar[16].

 4. Porém, se demandando o senhor da coisa aquele, a quem a emprestou, arrendou, ou alugou, viesse algum terceiro, que dissesse ser sua, e embargasse a entrega dela, fazendo sobre isso requerimento à Justiça, se a coisa for móvel, e o que a emprestou, arrendou ou alugou, for suspeito, por não ter bens de raiz, que abastem para pagamento dela, será sequestrada em mão de homem fiel e abonado[17], até que seja determinado a quem pertence de direito; e o terceiro será ouvido sobre o direito, que pretender ter nela, sumariamente, e sem estrépito, nem figura de Juízo, somente sabida a verdade, por se não dar lugar às malícias, que de outra maneira facilmente se podiam cometer e fazer em tal caso.

E sendo esta coisa de raiz, sem embargo de tal questão e contenda movida pelo terceiro[18], será restituída e entregue ao que a emprestou, alugou, ou arrendou, e a pede, como coisa emprestada, alugada, ou arrendada. E depois que lhe for entregue, lha poderá demandar esse terceiro.

 TRANSCRIÇÃO DAS NOTAS DE RODAPÉ:

1] Empréstido...comodato.

Vide nota (1) à rub. do t. 50.

 Comodato é um contrato gratuito como o Mútuo, pois desde que há ônus ou retribuição chama-se locação (Ord. deste liv. t. 23 e 24).

É mais uma concessão graciosa, de que contrato.

Coelho da Rocha no § 770 define o comodato desta forma:

«É o contrato, pelo qual uma pessoa empresta a outra gratuitamente uma coisa com obrigação de lhe restituir a mesma individualmente (in specia, na frase do Direito Romano).

Como se vê neste contrato três coisas são necessárias para qualificá-lo: a tradição ou entrega do objeto, a gratuidade do uso, e restituição do mesmo objeto. Vide sobre esta Ord. Barbosa no com., Correa Telles – Dig. Port. to 3 de n. 1163 a 1176, Coelho da Rocha Dir Civ. do § 770 a 773, Loureiro – Dir. Civ. Bras. § 673 e 674, T. de FreitasConsol. do art. 497 a 599, e Ramos – Apont. do § 485 a 507.    

2] Para certo uso, i. e., por determinado tempo (T. de Freitas – Consol. art. 478 nota).

3] Para uso não certo. Estas palavras, diz T. de Freitas, aludem ao empréstimo, que se chama precário, cuja duração fica dependente do arbítrio do concedente. A Ord. do liv. 4  t. 54  § 3 também dá notícia do precário nas palavras – ou em quanto lhe aprouver 

4] Mas passando o tempo concertado o comodante pode exigir o objeto ainda que o comodatário dele nenhum uso tenha feito. Outro tanto sucede havendo necessidade imprevista (arg. da Ord. deste liv. t. 24 pr., e art. 1889 do Cód. Civ. Francês, e Corrêa Telles – Dig. Port. art. 1166).

Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Silva PereiraRep. das Ords. to. 1 notas (b) e (c) à pag. 528, e Mello Freire – Inst. liv. 4 t. 3 § 4 e 7, e Coelho da Rocha – Dir. Civ. § 771. 

5] Nem a posse da coisa no que a recebe. i. e., a posse jurídica. 

6] Coisas semelhantes que com o uso se consomem, i. e., coisas fungíveis porque as que não são fungíveis, são as que fazem objeto deste contrato.

Vide sobre o que são coisas fungíveis natural ou civilmente Ribas no seu Curso de Direito Civil Brasileiro to. 2 pag. 223 § 8.

Mastrofini na sua obra – Discussão sobre a usura no § 433 diz o seguinte:

«As coisas que se devem restituir por outras da mesma espécie, na mesma quantidade, são chamadas fungíveis, em Latim fungibiles, porque as que as restituem não são no mesmo indivíduo físico e natural como as que foram dadas, mas os substituem (vice funguntur) pela igualdade do peso, da medida, do número e da qualidade.

«Há quem pense que se chamavam fungíveis, porque cessam pelo uso: assim vita functus significa o que cessou de existir.

«Estes dois sentidos talvez contribuíssem à introdução deste termo, mas sobretudo o primeiro, por quanto o que dá uma coisa que lhe deve ser restituída, pensa principalmente no meio de recobrá-la no tempo acordado em outra da mesma espécie, da mesma qualidade, e da mesma quantidade.» 

7] Em specie. Expressão do Direito Romano, que deve-se entender – identicamente, individualmente. 

8] Pela regra de Direito: Res perit domino. 

9] Culpa leve e levíssima.

«Estas palavras, segundo T. de Freitas, sobre a distinção de culpa são empregadas no sentido técnico do Direito Romano.

Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 1 nota (b) à pag. 526, e Mello Freire – Inst. liv. 4 t. 3 § 5.  

10] Caso fortuito, i. e., o que não podia ser antevisto, nem pelo mais sábio.

Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Caminha – de Libellis ann 11, Silva Pereira – Rep. das Ords. to 1 notas (c) e (d) à pag. 526, e nota (a) à pag. 527. 

11] «Esta ação, diz T. de Freitas na Consol. art. 506 e nota, que iguala aos espoliadores o comodatário contumaz, não tem uso algum entre nós, e muito menos sua pena. Também a pena não poderia ser demandada senão pela via ordinária nos termos da Ord. liv. 3 t. 48 § 5.»

Esta é a opinião de Almeida e Sousa – Acç. Sum. to. 2 pag. 307, conciliando deste modo esta Ord. com a do liv. 3 t. 48 in fine supracitada.

Vide nota (5) ao § 5 da mesma Ord. à pag. 634 desta obra.

E em nota ao art. 662 diz aquele Jurista:

«Pratica-se o disposto no art. 230 do Cód. do Com., cominando o locador a renda que se lhe deve pagar por toda a demora. »

Vide Correa Telles – Doutr. das Acç. do § 323 usque 326 e notas. 

12] O locatário não pode alegar que a coisa alugada ou arrendada lhe pertence, e mesmo a outrem que não o mesmo locador.

«Prevalecerá esta regra, diz T. de Freitas, quando por erro alugou ou arrendou sua própria coisa, ou quando o locador lh’a vendeu após a locação, ou a coisa foi arrematada ou adjudicada por execução de credor seu?»

Vide Lob. – Acç. Sum. t. 2 Diss.  XII.

Parece que neste caso deve prevalecer a regra oposta. Vide nota ao § 3 deste título. 

13] Não prevalece o direito de retenção, devendo a coisa ser restituída ao locador, ainda que o locatário não tenha sido embolsado da importância das benfeitorias, se o locador depois de requerida a liquidação depositar ou caucionar o valor respectivo, jurado pelo mesmo locatário. Vide Ord. deste liv. t. 95 § 1 e Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 1 nota (a) à pag. 153.

Mas o juramento do locatário depende do requerimento do locador. 

14] Despesa. Esta Ord. deixou de proceder latamente depois do Al. de 27 de Novembro de 1804 § 5 que assim dispõe:

«Em qualquer caso em que o Lavrador sair da herdade, em que tiver feito benfeitorias, estas lhe serão pagas pelo Senhorio da herdade, avaliando-se por arbítrios; competindo-lhe a hipoteca concedida no § 2 do sobredito Alvará (de 20 de Junho de 1774), para haver o seu pagamento: sem que porém se admita o direito de retenção da benfeitorias, para não ser fraudado o despejo.»

Vide também Ord. do liv. 3 t. 86 § 5 e 15, e t. 87 pr. e Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 2 nota (d) à pag. 98.

O Al. de 5 de Março de 1825, declarou que esta Ord. só concede a retenção das coisas até ser paga a despesa que nelas se fez, quando se houve por empréstimo, aluguer ou arrendamento, e não em depósito.

Vide nos aditamentos deste Alvará. 

15] Corrêa Telles na Interp. § 17 diz o seguinte:

«Outra lei diz, que o condutor não pode refusar a entrega da coisa alugada aquele, que lh’a alugou, com pretexto de que é sua, e lhe pertence por algum título Ord. do liv. 4 t. 54 § 3.

«Mas esta Lei seria mal aplicada, se o alugador tendo demanda com o locador, por virtude de sentença que contra este obteve, lhe penhorou a coisa arrendada, a qual por falta de lançador veio a ser-lhe adjudicada.

«A intenção do Legislador não se verifica neste caso, ao qual é mais bem aplicada a outra regra, que todo o arrematante goze livremente dos bens que arrematou, ou lhe foram adjudicados. Valasco – Cons. 42.»

E no § 28 também se explica por esta forma:

«Diz a Ord. liv. 4 t. 54 § 3 que o condutor não pode opor ao locador a exeção de domínio, em quanto lhe não entregar a coisa arrendada. Porém se o dono de uma fazenda a vendesse, ficando todavia na fruição  dela como colono, e se a venda fosse necessária (Ord. liv. 4 t. 54 § 1) por uma modificação daquela lei pode este condutor ser desobrigado da entrega da coisa durante a disputa, se o contrato foi ou não usurário; porque neste caso não se verifica o da lei, o qual supõe o caso diverso de haver o locador entregado ao condutor uma coisa, que ele possuía. Vide Valasco – Cons. 106.» 

16] O comodante, diz T. de Freitas, pode demandar a restituição da coisa emprestada, ou pela ação sumária de empréstimo de que trata Lobão – Acç. Sum. na Diss. 12  sobre a Ord. liv. 4 t. 54, ou por ação de esbulho, ou por ação ordinária de reinvindicação.

«Se o comodatário for comerciante, e se lhe abrir falência, o comodante entra na classe dos credores de domínio, e como tal consegue a reinvindicação (Cód. Com. srt. 874 n. 1 e 881).

«Em caso de concurso de credores do comodatário também é reputado credor de domínio. Reg. n. 747 art. 619.»

Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 1 nota  (b) à pag. 153, Mello Freire – Inst. liv. 4 t. 3 § 7, e Almeida e Sousa – Interdictos pag. 7 e 111, e Fascic. to. 1 pag. 373.

 17] Cordeiro nas suas Dub. 40, 50 e 51, comprova largamente que esta Ord. compreende os casos da espoliação.

Vide Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 4 nota (d) à pag. 648. 

18] Cordeiro nas suas Dub. 40, 50 e 51, comprova largamente que esta Ord. compreende os casos da espoliação.

Vide Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 4 nota (d) à pag. 648.

 


terça-feira, 28 de outubro de 2025

Empréstimos no Liv. 4 das Ordenações Filipinas (o mútuo)

        As modalidades de empréstimo de bens são muito antigos. Neste interessante trecho do Livro 4 das Ordenações Filipinas, podemos saber que, no século XVII não era só dinheiro que se emprestava, mas também outras coisas: vinho, azeite, trigo ou qualquer outro legume. Provavelmente, hoje em dia, talvez seja mais comum o empréstimo de dinheiro, mas o Código Civil admite mútuo de outras coisas além de dinheiro: "Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade."

        Ao ser regulamentada a necessidade de restituição da coisa objeto do mútuo, percebe-se que a palavra "espaço" é usada nas Ordenações no sentido de prazo, ou seja, significando "espaço no tempo".

        Nesta postagem também aparece a expressão "filhosfamílias". Não há um conceito expresso de filhofamília nas Ordenações. Este conceito se acha no Esboço de Hum  Diccionario Jurídico, Theoretico, e Practico, Remissivo às Leis Compiladas, e Extravagantes. Por Joaquim José Caetano PEREIRA E SOUSA;  Advogado na Casa da Supplicação. Obra posthuma. Tomo Segundo. F-Q; verbete "Filho": (...) "Filho famílias se diz aquele que está ainda debaixo do pátrio poder." (...) Neste ponto, é curioso que o texto das Ordenações aventa a possibilidade de os filhos matarem os pais por causa de dívidas.

        Em outro trecho do título relativo aos empréstimos, se fica sabendo que os filhosfamílias estudavam fora de seu lugar de moradia, mas também podiam se ausentar da casa para ir à guerra ou para servir ao Rei na Corte.

        Nas notas de Cândido Mendes de Almeida se pode ver o quanto de Direito Romano estava nas Ordenações, seja na reprodução literal das normas, seja justificando a mudança daquele Direito pelas Ordenações, seja indicando o Direito Romano como subsidiário do Direito Português. Além dessa continuidade das regras do Império Romano, muitos dos livros de Direito mencionados nas notas de rodapé eram escritos em latim, o que obrigava os operadores do Direito a serem versados neste idioma. As leis eram redigidas em português, mas a interpretação era em latim. Talvez por isso o desprezo pelos rábulas e leguléios, que provavelmente eram os operadores do direito que conheciam apenas os textos legais, já que - não sabendo latim - não podiam conhecer o pensamento dos jurisconsultos.  Também nas notas de Cândido Mendes de Almeida se pode ver que os contratos de empréstimo já existiam no Direito Romano e, pois, naquele tempo já se emprestavam dinheiro e coisas.

        O conceito de "mora" também já está nas notas de Cândido Mendes de Almeida e é esclarecedor até para os dias atuais. Nestas notas se vê que, em 1757, havia norma regulamentando os juros.

 

TÍTULO L.

Do emprestido[1], que se chama mútuo[2].

 

Toda a pessoa, que emprestar a outra coisa alguma, que consiste em número, peso, ou medida, como dinheiro[3], vinho, azeite, trigo ou qualquer outro legume[4], tanto que se recebe a tal coisa emprestada, fica a risco daquele que a recebeu[5]; porque pola entrega ficou própria, do que a recebeu, e fica sempre obrigado a pagar o gênero, que não podia perecer, que é outro tal dinheiro, trigo, vinho, ou azeite ou outro legume.

1. E esta coisa assim emprestada deve retornar ao devedor ao tempo e prazo, que lhe for posto, e não sendo declarado tempo, cada vez que o credor lha pedir, e desse tempo fica constituído em mora[6]. O qual não se deve entender logo, porque seria vão e frustatório o benefício, se logo se houvesse de pedir o que se empresta; polo que se darão ao devedor dez dias de espaço[7], como se dão ao que se obriga a pagar alguma coisa sem declaração de tempo, ou dilação, ou mais espaço, se ao Julgador parecer assim, segundo a qualidade das pessoas, tempo e lugar.

(...)

2. E porquanto de se emprestar dinheiro[8], aos mancebos filhosfamílias[9] se dá azo ao converterem em usos desonestos e ocasião de serem viciosos, e se pode presumir, que carregados de dívidas e apertados per elas procurem a morte a seus pais, ou lha desejem: para se isto evitar[10], mandamos que o que emprestar a algum filho, que estiver debaixo do poder de seu pai, quer seja varão, quer fêmea, perca o direito de o pedir assim a seu pai, como a ele, posto que os ditos filhosfamílias, a que se fez o dito empréstimo, saiam do poder de seus pais por morte, casamento ou emancipação[11]. E da mesma maneira se não poderá pedir aos fiadores que por eles ficaram.

3. Porém, se o tal filhofamílias estiver em alguma logea (loja?) de mercadorias, ou tiver algum trato de consentimento e mandado de seu pai; ou sem ele, será obrigado a pagar o que se lhe emprestar[12]. Porque, se por mandado de seu pai está no tal trato, fica o pai obrigado pelo empréstimo, que ao dito filho se fizer; e se o dito filho negociava sem mandado de seu pai[13], ficará ele obrigado até onde chegar o seu pecúlio[14], e mais não.

4. E quando o filhofamílias está em parte alongada e remota por causa do estudo, será o pai obrigado a pagar o que se emprestar ao dito para os gastos do estudo, não sendo porém mais que o que o pai lhe costumava dar. E o mesmo será no que se emprestar ao filhofamílias soldado, que estiver na guerra em parte remota, ou que andar na Corte em nosso serviço[15].

 

NOTAS DE CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA:

1] Emprestido, i. e., empréstimo.

 2] Mútuo, i. e., recíproco.

Vem do verbo latino – mutuare emprestrar.

Mastrofini na sua obra Discussão sobre a usura diz que, na opinião de alguns autores a palavra - Mutuum vem de meo e tuum, explicando a transferência de domínio neste empréstimo; transferência ou domínio que ele contesta no § 293 e seguintes:

Segundo Coelho da Rocha § 744 o mútuo é o contrato, pelo qual uma pessoa entrega à outra uma coisa fungível, para lhe ser tornada outro tanto em quantidade e qualidade. É a mesma definição desta Ord. pr. em termos mais reduzidos e claros.

«Coisas fungíveis, diz T. de Freitas Consol. art. 477 nota, são objetos do Mútuo, i. e., as que forem suscetíveis de substituição por outras coisas da mesma espécie, da mesma qualidade, e na mesma quantidade.

«As coisas que se consomem com o uso são fungíveis por sua natureza, mas as partes podem convencionar que sejam fungíveis coisas que o não são por sua natureza. Isto pode acontecer até com ações de Banco e outras companhias, quando aquele que as recebe fica obrigado a restituir um número igual ao das ações recebidas.

«Em suma há mútuo sempre que a obrigação de restituir for genérica, e não se referir à própria coisa recebida, mas à outra da mesma espécie e qualidade qualquer que ela seja.»

É da natureza deste contrato o ser gratuito, bem que se possa ajustar prêmio, ou remuneração do mutuante, como em alguns casos permitia a antiga legislação (Ord. deste livro t. 67, Als. de  23 de Maio de 1698, e de 17 de Janeiro de 1757), e facultou-o sem embaraços a moderna (L. de 24 de Outubro de 1832). Mas neste caso o mútuo perde inteiramente todo o seu característico – a gratuidade, passando a ser o contrato todo de locação.

Os Romanos distinguiam estes dois contratos por estas duas palavras: mutuum era o empréstimo gratuito sem juros, e fænus o outro, o oneroso.

O mutuário não fica devedor da coisa individual, mas é tão somente da espécie (genus, na frase do Direito Romano) e, portanto fica logo tendo o domínio, correndo por sua conta os riscos. Esta doutrina, como já vimos acima, é contestada por Mastrofini.

Vide sobre este tit. Caminha – de Libellis ann. 10, Barbosa – com., Corrêa Telles – Dig. Port. to. 3 de n. 1177 a 1195, Coelho da Rocha Dir. Civ. de § 774 a 781, T. de Freitas – Consol. de art. 477 a 509, e Ramos – Apont. de  n. 442 a 484.

 3] Dinheiro. Vide Ord. deste liv. t. 67.

«Como o dinheiro amoedado, diz Rogron, é uma coisa estéril, que por si mesmo não pode servir às necessidades da vida, tem-se pretendido que era injusto exigir prêmios por esse empréstimo de dinheiro, mas convém observar que o dinheiro tendo um valor de convenção, e podendo servir para comprar todos os objetos necessários à vida, o que empresta uma certa soma priva-se de todos os objetos que poderia comprar, e de todos os benefícios que poderia colher do emprego de seu capital.»

Vide Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 2 nota (b) à pag. 233, Macedo – Dec 30, Moraes – de Execution. liv. 2 cap. 12, Pereira de Castro – Dec. 84 n. 3 e Arouca – All. 9 n. 10.

4] Legume, i. e., nome genérico de toda sorte de grãos, que nascem em bages, como favas, feijões, ervilhas, etc.

Mas aqui toma-se em sentido mais lato, máxime se a palavra latina legumen, vem de legere, no sentido de colher, e não no de ajuntar, ligar, etc.

 5 ] Sendo o Mutuatario, o dono, segue-se a regra de Direito – res suo domino perit. 

 6] Mora. Dando-se este fato o mutuário fica sujeito ao pagamento de juros e danos (Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 2 notas (a), (b), e (c) à pag. 234).

Chama-se Mora o retardamento da execução da obrigação. Não se tendo fixado prazo corre a mora desde a interpelação, protesto, ou qualquer outra intimação, ainda extra-judicial, a menos que outra coisa não tenha resolvido a lei (Coelho da Rocha – Dir. Civ. § 127 e128).

«E da mora em diante, diz T. de Freitas, não tendo havido estipulação de juros, o mutuário deve-os pagar? Para este efeito a nossa jurisprudência exige a interpelação judicial. Assim legislam os arts. 138 e 248 do Cód. do Com.»

Suzano resumindo Silva Pereira no Rep das Ords. to. 3 nota (a) à pag. 560 diz o seguinte:

«Mora se entende em razão da coisa, ou da pessoa: da coisa quando alguém não faz aquilo que por direito deve fazer (como quando tem alguma coisa furtada, e não restitui a seu dono; e nestes casos é o possuidor obrigado aos interesses, mesmos nos contratos co-respectivos, quando um cumpre da sua parte a condição, e o outro não); da pessoa, quando o credor chama o devedor em lugar e tempo competente, ou é chegado o dia convencionado: desde a chamada ou dia aprazado entra o devedor em mora.»

Vide Coelho da Rocha – Dir. Civ. § 128 e nota G, mui importante a consultar sobre esta questão.

Consulte-se também a Gazetta dos Tribunais n. 166, e  Nova Gazetta dos Tribunais n. 245 pag. 4.

 7] Se o mútuo é de pão, a regra em Portugal é que o mutuário é obrigado a dar a espécie até o dia 15 de Agosto seguinte, depois de passado esse dia pode pagá-lo a dinheiro pelo maior valor que tiver tido o gênero no intervalo (Ord. deste liv. t. 20).

Sendo de outros gêneros, a todo tempo satisfaz o mutuário, entregando-os, e não sendo possível paga-os pelo preço corrento ao tempo convencionado.

Mas se o mútuo é de dinheiro a juros, a cobrança não se pode fazer em menos de um ano (Al. de 17 de Janeiro de 1757), e nem se poderia contratar por menos tempo.

Segundo Correa Telles – Dout. das  Acç. § 407 nota (3), os juros do dinheiro deviam ser cobrados executivamente, visto como o Al. de 25 de Maio de 1698 os chama – Censos. Mas outra tem sido a prática:

O mutuante, é responsável pelo prejuízo, que resultar dos defeitos da coisa emprestada, que sabendo, ocultou.

 8] Dinheiro. E se o empréstimo for de outro objeto?

Geralmente se diz que não tem lugar esta lei (Borges Carneiro – Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 40).

Entretanto se esta Ord. não se deve entender taxativa, mas demonstrativamente (Borges Carneiro sob n. 37), o empréstimo condenado dever-se-ia estender a outros objetos, por que como bem diz o mesmo Jurista n. 41, pode dar-se dolo, como no contrato de mohatra da Ord. deste liv. t. 67 § 8.  

Cumpre notar que este mútuo é proibido, com ou sem juros.

 9] Filhos-famílias. Estas palavras, diz-se, se entendem demonstrativa e não taxativamente. Entretanto o contrário foi decidido na Casa da Suplicação no ano de 1642, na causa de Antônio Luiz de Oliveira, filho natural de Diogo Luiz de Oliveira, outr’ora Governador da Capitania  da Bahia, assunto da Dec. 151 de Themudo, segunda parte.

Vide Borges Carneiro – Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 37.

Parece de equidade, que se o filho natural estiver sob o poder do Pai, deve também gozar deste benefício, máxime achando-se reconhecido na conformidade da L. de 2 de setembro de 1847, visto como a razão daquele aresto fundava-se na Ord. deste liv. t. 92 § 1.

 10] Esta disposição foi tirada da l. 7 § 3 e 9 ff.  ad. Senat. Cons. Maced.

Os Senatus-Consultos ou decretos do Senado tiravam de ordinário o seu nome do Cônsul ou Cônsules em cujo governo eram promulgados, mas algumas vezes do nome dos indivíduos, em ódio de quem eram expedidos.

O Senatus-Consulto Macedoniano, fonte desta lei está neste caso.

A lei Romana deste nome teve origem no reinado do Imperador Cláudio, quando vivia em Roma um famoso usuário chamado Macedo ou Macedon, que assolava com suas usuras a cidade eterna.

Esta é a opinião de Gothofredo a quem segue Lima com., mas Vicat no seu Vocabulário, sustenta que o nome da lei proveio de certo Macedo filho-famílias, uma das mais notáveis vítimas dos usurários de Roma.

Mas esta lei parece que caiu logo em desuso, por isso o Imperador Vespasiano a renovou, e fez-lhe dar todo o vigor.

Segundo Godofredo a lei promulgou-se no quarto Consulado de Cláudio e no terceiro de Vitelio no ano de 799, da República, e 46 de Cristo, segundo Pedro Faber, data que é contestada por Bach, e Warnkænig que julgam que a promulgação verificou-se no ano 800 da República, e 47 de Cristo.

Vide Suetonio na vida de Vespasiano cap. 12, Gothofredo – Digesto liv.  14 t. 6, Vicat – Vocabularium ultriusque juris, arts. Macedo e Macedonianum, e Lima – com. n. 3.

 11] E também por emprego e função pública que importe emancipação.

 12] Esta Ord. deve-se entender de acordo com o art. 1 § 3 do Cód. Com. que diz:

«art. 1° Podem comerciar no Brasil:

«§ 3. Os filhos-famílias que tiverem mais de dezoito anos de idade, com autorização dos pais, provada por escritura pública.

«O filho maior de vinte um anos que for associado ao comércio do pai, e o que com sua aprovação, provada por escrito, levantar algum estabelecimento comercial, será reputado emancipado e maior para todos os efeitos legais nas negociações mercantis.»

 13] Atualmente, como bem diz T. de Freitas Consol. art. 486 nota (5), só pode ter lugar com infração da lei, em vista do Cód. Com  art. 1 § 3 supracitado.

 14] Este pecúlio não deve-se entender o profecticio, por que neste tem o pai usufruto.

Borges Carneiro parece entender o contrário ( Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 19.)

  15] Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Silva Pereira – Rep. das Ords. to 2 nota (b) à pag. 236, Almeida e Souza – Notas a Mello to. 2 pag. 113 a 155, e Obrig. pag. 29, 89 e 98, e Borges Carneiro – Dir. Civ.. liv. 1 t. 21 § 191 de n. 46 a 57.

domingo, 19 de outubro de 2025

Origem da Trapaça e o Conceito de Anatocismo

        Em um trecho do livro 4 das Ordenações Filipinas vamos encontrar uma provável origem da palavra TRAPAÇA. Segundo nota de rodapé, era chamada "trapaça"  a venda fictícia feita para um terceiro (um laranja) por um alto preço, que a revendia para o verdadeiro comprador, por um preço bem mais baixo. A diferença entre o alto e o baixo valor era a forma de burlar a proibição de cobrança de juros. A esta operação se chamou TRAPAÇA.  

No mesmo trecho do Livro 4 das Ordenações Filipinas vai-se encontrar o conceito de Anatocismo (a cobrança de juros sobre juros).

 

8. Por quanto somos informado, que se fazem muitos contratos ilícitos entre Mercadores e outras pessoas, os quais por en­cobrirem as usuras, vendem mercadorias e coisas fiadas a pessoas necessitadas, que não são Mercadores, nem tratantes, para nelas haverem de tratar e ganhar, e que os compradores lhas tornam logo dar e vender por muito menos, do que as compram, por lhes darem o dito dinheiro para suprimento de suas necessidades, ou as vendem a ou­tros por muito menos preço, do que as compram, por lhes darem logo o dinheiro, de maneira que não somente recebem dano no preço, em que as compram fiadas, mas ainda na venda delas (1): E além disso ficam suas pessoas obrigadas a pagar o primeiro preço, por que lhe foram vendidas, e por não poderem pagar nos tempos limitados em seus contratos, fazem outras novas obri­gações, confessando a dívida com interesses, e fazendo dos ditos interesses dívida principal (2).

 

[1] Segundo Barbosa no com., este contrato era conhecido pelos Italianos pela designação de Trochi Varochi, entre os Espanhóis pelo nome de Mohatras, tendo em Português o nome de Trapaças.

A Lei de 24 de Outubro de 1832 dando ampla latitude ao contrato dos juros acabou com esse fraudulento recurso, sem melhorar a sorte das vítimas da usura.

Ferreira Borges no seu Dicc. art. Mohatra diz o seguinte:

«Mohatra. É este o nome que alguns Casuístas deram ao contrato usurário, que se pratica quando alguém vende por muito alto preço a crédito, e compra a mesma coisa ao comprador a vil preço (Crivelli, Jorio.)

«Não nos lembra de haver encontrado na Jurisprudência Romana menção deste contrato: é todavia certo que a malícia do homem, e as infinitas con­venções comerciais o inventaram, e nós vimos em nossos dias um grande exemplo desta espécie, e uma Carta Régia expedida para salvar um usurário, que no rigor da nossa Legislação teria pelo menos visitado as praias malignas da adusta África.

 

[2] É este o contrato chamado Anatocismo, pelo qual os Juros vencidos acrescerão ao capital, ficando também a vencer juros.

A Lei de 24 de Outubro de 1832 autoriza estas acumulações, que aliás não permite o Código Comercial no art. 253, que assim dispõe :

«É proibido contar juros de juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos liquidados em conta corrente de ano a ano.

«Depois que em Juízo se intenta ação contra o devedor, não pode ter lugar a acumulação de capital e juros.»

T. de Freitas na Consol. art. 361 nota (1) sustenta a nosso ver sem fundamento que o Cód. Com. no artigo supra citado, não reprova o anatocismo.

Corrêa Telles no seu Dig. Port. to. 3 art. 1144, propõe de conformidade com a Lei 10 Cod. de usuris, e Cód. Civil Francês  art. 2277, que se não possam acumular juros de mais de cinco anos.

sábado, 18 de outubro de 2025

As Companhias (hoje S/A) no Liv. 4 das Ordenações Filipinas (2)

         Se compararmos o texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas (ver postagem anterior) com as notas de rodapé, perceberemos que, entre 1603 e 1870 ocorreram modificações no conceito de companhia. Só para lembrar: o Livro 4 das Ordenações Filipinas é de 1603 e as notas de rodapé estão na edição brasileira de 1870. Perceberemos, também, que já no Século XIX estava consolidada a noção de sociedade anônima. Esta consolidação é uma das informações interessantes das notas de rodapé. Outra informação interessante é a relação exemplificativa das companhias portuguesas existentes no século XVII. Também se vê nas notas uma discussão sobre a regulação jurídica no Brasil das sociedades comerciais e as civis no século XIX.

Sociedade e Companhia. Estas palavras em outro tempo eram sinônimas, atualmente a segunda designa tão somente as sociedades anônimas. Assim a distingue o Código Comercial no tít. 15, em todos os seus Capítulos do art. 287 usque 353.

Ferreira Borges na sua obra – Jurisprudência do contrato mercantil de Sociedade p. 1 secç. 2 art. n. 3 § 29 nota, diz a este respeito o seguinte:

«Companhia antigamente era entre nós sinônimo de sociedade. A cit Ord. liv. 4. tit. 44 inscreve-se do contrato da sociedade e companhia – e daí em todo o título fala em companhia. Hoje ainda que se possa dizer companhia por sociedade, companheiro por sócio, contudo, estritamente falando, hoje, em acordo com todas as nações comerciais, entende-se por companhia  a associação incorporada por carta ou alvará de instituição; tal como o foi entre nós a Companhia do comércio da Índia, que teve Regimento em data de 26 de Agosto de 1628: - a Companhia do comércio do Brasil com instituição confirmada por Alv. de 10 de  Março de 1649: - a de Cabo verde e Cacheu. Alv. de 4 e Janeiro de 1690; de Guiné e Macao: a Companhia geral do Grão Pará e Maranhão de 7 de junho de 1755, a Companhia geral d’agricultura dos vinhos do alto Douro,  Alv. de 10 de Setembro de 1756: a Companhia geral das reais pescarias do Algarve,  Alv. de 15 de Janeiro de 1773; e a Companhia geral do comércio de Pernambuco e Paraíba,  Alv. de 13 de Agosto de 1759.»

A sociedade ou companhia de que trata esta Ord. é inteiramente Civil.

O Legislador não curou das sociedades comerciais (Ferreira Borges – Jurisp. § 17 nota).

O Av. n. 231 – de 21 de Agosto de 1855, declarou que o Código Comercial na p 1. t. 15, só é concernente às sociedades mercantis, sendo indiferente que uma ou ambas as partes sejam comerciantes, por que neste caso a jurisdição nasce em razão somente dos atos e não das pessoas.

Sobre as sociedades comerciais consulte-se o Cód.Com. nos lugares supra citados.

Pelo que respeita às Companhias ou sociedades anônimas, consulte-se nos aditamentos o D. 2711 - de 19 de Dezembro de 1860; assim como sobre as sociedades em comandita o D. n. 1.487 - de 13 de Dezembro de 1854.

Consulte-se sobre a matéria deste título, além de Barbosa, e Lima nos com., Cardoso - Praxis, verbo - Societas, Costa Franco - Tratado prático, jurídico, e cível p. 1 em que trata especialmente do Contrato da Sociedade; Companhias em dezesseis capítulos; Ferreira Borges obra supracitada, e Dicionário Comercial art. Companhia, Correa Telles- Dig. Port. to. 3 tit. 11 de n.1053 a 1.137, e Doutr. das Acç. de § 410 a 412, T. de Freitas - Consol. cap.10 do art. 742 a 766, e Ramos - Apontamentos Cap. 11 a 1501, etc.

 

         Em outra nota de rodapé se vai perceber que a religião permeava o direito secular, pois atos jurídicos nulos eram tidos como também pecaminosos:

 

O Al. do 1º de Agosto de 1774 declarou que os contratos feitos em positiva desobediência das leis são nulos e pecaminosos em si mesmos, por que elas obrigam em um ou outro foro.

O Art. 287 do Cód. Com. também declara que é da essência das Companhias e sociedades que o objeto e fim a que se propõem seja lícito.

Considera-se ilícita a associação cujo fim é monopolizar os gêneros de primeira necessidade, ou qualquer ramo do comércio (D. n. 2711 – de 19 de Dezembro de 1860 art.9 n.1, art. 27 regra segunda, e arts. 33 e 34).

As sociedades secretas não estando nas condições legais estão sujeitas às penas dos arts. 282, 283 e 284 do Cód. Crim., e sob a vigilância da Polícia (D. n. 2711 – de 1860 art.34).

     A prova da existência das sociedades civis é outro problema tratado nas notas de rodapé. É que não havia o registro civil até o século XIX, razão da impossibilidade do registro destas sociedades. Registros de nascimento e casamento ficavam restritos à Igreja (exceto quando os casamentos eram objeto de contrato, matéria largamente tratada no livro 4 das Ordenações Filipinas). As normas sobre registro civil no Brasil surgiram depois da independência, mas ainda se vinculavam ao registro religioso. O Decreto nº5.604, de 25 de abril de 1874 disciplinava o registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos, mas o art. 51, item 6º (não se usava a nomenclatura "parágrafo" na época) só permitia a colocação do nome do nascituro se já fosse batizado. O Decreto nº 9.886, de 7 de março de 1888 também só tratava do registro de nascimentos, casamentos e óbitos, mas já se mostrava um pouco mais secular na questão do nome (Art. 58. O assento do nascimento deverá conter: (...) 5º O nome e sobrenomes que forem ou houverem de ser postos a criança (...). Mas ainda se vinculava à Igreja (Art. 59. Podem ser omitidos, si daí resultar escândalo, o nome do pai ou o da mãe ou os de ambos, e quaisquer das declarações do artigo antecedente, que fizerem conhecida a filiação, observando-se a este respeito as reservas estabelecidas para os assentos de batismo na Constituição eclesiástica n. 73.) A Constituição Eclesiástica eram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1710. O Código Civil de 1916 já determinava o registro das sociedades civis (artigos 18 e 19), mas remetia para lei especial. Mas não foi uma lei que fez a regulamentação, mas sim o Decreto nº 4.827, de 7 de fevereiro de 1924 (art. 3º).

 

T. de Freitas na Consol. art. 747 nota (2) diz o seguinte:

«Aqui se trata das sociedades particulares em contraposição às universais. Em que casos as sociedades particulares se deviam reputar civis ou comerciais? Não se pense que as sociedades reguladas no Cód. Com. são sempre comerciais; pois que também podem ser civis, como se deixa ver o D. n. 2711 – de 19 de Dezembro de 1860, ao menos quanto às sociedades anônimas.»

Continuando diz mais adiante:

«A nossa legislação civil é omissa sobre a forma e prova dos contratos de sociedade civis, excetuadas as anônimas reguladas hoje pelo citado D. 2811 – de 19 de Dezembro de 1860.

«Será essencial a forma escrita, como exige o art. 300 do Cód. do Com. para as sociedades comerciais, excetuada a sociedade em carta de participação? Entendo que a forma escrita  é essencial sempre que as sociedades civis forem das mesmas espécies para as quais o Cód. do Com. a exige; não assim quando não forem dessas espécies, quando não tiverem firma social, casos em que domina a regra geral do Al. de 30 de Outubro de 1793 consolidado no art. 368 supra.

«Deverão porém os contratos de sociedade civis ser registradas (sic), quando eles forem de espécies que o Cód. do Com. manda registrar? A razão é a mesma, porém  não é possível registrar nos Tribunais do Comércio contratos de sociedade civis.»

Vide Ferreira Borges – Jurisp. to. 1 §§ 16 e 17 e notas, e Costa Franco – Trat. Prat. to. 2 p. 1 cap.4.

 


 

        Em outra nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas tem-se um dos diversos pontos em que se pode perceber a difícil situação jurídica das mulheres no século XIX e tempos anteriores.

 

T. de Freitas na Consol. art.758 § 1 nota (2) diz o seguinte:

«A sociedade não se dissolve pelo falecimento da mulher de qualquer dos sócios, ainda que os herdeiros sejam menores, continua como o viúvo, ficando reservado para sobre partilha do casal o que ele vier a receber da partilha social em tempo próprio.

«A incapacidade civil que sobrevêm a qualquer dos sócios por alienação mental, e declaração judicial de falência (Cód. Crim. art. 335 n. 2), está no mesmo caso do falecimento, e dissolve a sociedade. Não está porém no mesmo caso a incapacidade civil superveniente pelo fato de casamento da mulher sócia, e esta passa a ser representada por seu marido.

«Posto que a sociedade se dissolva por morte de qualquer dos sócios, são válidas e obrigatórias para os herdeiros do sócio falecido, e para os outros sócios, os atos e contratos sociais que se tenham feito antes da notícia morte, ainda que o resultado dele não seja vantajoso.»

Consulte-se também a nota ao art. 653 da mesma obra.

         Também se vê em nota de rodapé que, ainda no século XIX, não se praticava a soberania jurídica, pois se usava como fonte do direito subsidiária normas de Direito Romano e de outros países.

 Texto das Ordenações:

 

Porém o que algum dos companheiros gastou fora da Companhia ainda que fosse em algum acontecimento, que tivesse origem por ocasião da Companhia, não se tirará, nem pagará.

Nota de rodapé:

Ferreira Borges na Jurisp. § 105 nota, acha inconciliável esta disposição com a do  § 10 que começa da mesma maneira, e mostra que os compiladores Portugueses seguiram aqui a opinião do Jurisconsulto Labeon, chefe da escola dos Proculeanos, que sustentavam o principio de que estas despesas não tinham tido lugar por negócios da sociedade, que disso apenas havia sido a causa ocasional.

A opinião contraria era defendida pelo Jurisconsulto Juliano, da escola dos Sabinianos.

Os Códigos da Prússia, e o Civil da França no art. 1852 seguiram a ultima opinião, mais razoável e mais justa.

Lima no com. ao § 10 n.2, e a este § n. 3 e 4, explica a doutrina à maneira de Labeon: Eis suas palavras:

«Quibus non obstatibus, vera est nostra assertio: quia aliud est damnum contingens in rebus ad socitatem spectantibus, seu causa societatis, et aliud est damnum contingens origine societatis; ita ut prætium sit solvendum de communi, ut disponit text in § 10 hujus tituli; secundum, cum sit factum extra societatem nom est de illa solvendum, ut text. hic.»