domingo, 19 de outubro de 2025

Origem da Trapaça e o Conceito de Anatocismo

        Em um trecho do livro 4 das Ordenações Filipinas vamos encontrar uma provável origem da palavra TRAPAÇA. Segundo nota de rodapé, era chamada "trapaça"  a venda fictícia feita para um terceiro (um laranja) por um alto preço, que a revendia para o verdadeiro comprador, por um preço bem mais baixo. A diferença entre o alto e o baixo valor era a forma de burlar a proibição de cobrança de juros. A esta operação se chamou TRAPAÇA.  

No mesmo trecho do Livro 4 das Ordenações Filipinas vai-se encontrar o conceito de Anatocismo (a cobrança de juros sobre juros).

 

8. Por quanto somos informado, que se fazem muitos contratos ilícitos entre Mercadores e outras pessoas, os quais por en­cobrirem as usuras, vendem mercadorias e coisas fiadas a pessoas necessitadas, que não são Mercadores, nem tratantes, para nelas haverem de tratar e ganhar, e que os compradores lhas tornam logo dar e vender por muito menos, do que as compram, por lhes darem o dito dinheiro para suprimento de suas necessidades, ou as vendem a ou­tros por muito menos preço, do que as compram, por lhes darem logo o dinheiro, de maneira que não somente recebem dano no preço, em que as compram fiadas, mas ainda na venda delas (1): E além disso ficam suas pessoas obrigadas a pagar o primeiro preço, por que lhe foram vendidas, e por não poderem pagar nos tempos limitados em seus contratos, fazem outras novas obri­gações, confessando a dívida com interesses, e fazendo dos ditos interesses dívida principal (2).

 

[1] Segundo Barbosa no com., este contrato era conhecido pelos Italianos pela designação de Trochi Varochi, entre os Espanhóis pelo nome de Mohatras, tendo em Português o nome de Trapaças.

A Lei de 24 de Outubro de 1832 dando ampla latitude ao contrato dos juros acabou com esse fraudulento recurso, sem melhorar a sorte das vítimas da usura.

Ferreira Borges no seu Dicc. art. Mohatra diz o seguinte:

«Mohatra. É este o nome que alguns Casuístas deram ao contrato usurário, que se pratica quando alguém vende por muito alto preço a crédito, e compra a mesma coisa ao comprador a vil preço (Crivelli, Jorio.)

«Não nos lembra de haver encontrado na Jurisprudência Romana menção deste contrato: é todavia certo que a malícia do homem, e as infinitas con­venções comerciais o inventaram, e nós vimos em nossos dias um grande exemplo desta espécie, e uma Carta Régia expedida para salvar um usurário, que no rigor da nossa Legislação teria pelo menos visitado as praias malignas da adusta África.

 

[2] É este o contrato chamado Anatocismo, pelo qual os Juros vencidos acrescerão ao capital, ficando também a vencer juros.

A Lei de 24 de Outubro de 1832 autoriza estas acumulações, que aliás não permite o Código Comercial no art. 253, que assim dispõe :

«É proibido contar juros de juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos liquidados em conta corrente de ano a ano.

«Depois que em Juízo se intenta ação contra o devedor, não pode ter lugar a acumulação de capital e juros.»

T. de Freitas na Consol. art. 361 nota (1) sustenta a nosso ver sem fundamento que o Cód. Com. no artigo supra citado, não reprova o anatocismo.

Corrêa Telles no seu Dig. Port. to. 3 art. 1144, propõe de conformidade com a Lei 10 Cod. de usuris, e Cód. Civil Francês  art. 2277, que se não possam acumular juros de mais de cinco anos.

sábado, 18 de outubro de 2025

As Companhias (hoje S/A) no Liv. 4 das Ordenações Filipinas (2)

         Se compararmos o texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas (ver postagem anterior) com as notas de rodapé, perceberemos que, entre 1603 e 1870 ocorreram modificações no conceito de companhia. Só para lembrar: o Livro 4 das Ordenações Filipinas é de 1603 e as notas de rodapé estão na edição brasileira de 1870. Perceberemos, também, que já no Século XIX estava consolidada a noção de sociedade anônima. Esta consolidação é uma das informações interessantes das notas de rodapé. Outra informação interessante é a relação exemplificativa das companhias portuguesas existentes no século XVII. Também se vê nas notas uma discussão sobre a regulação jurídica no Brasil das sociedades comerciais e as civis no século XIX.

Sociedade e Companhia. Estas palavras em outro tempo eram sinônimas, atualmente a segunda designa tão somente as sociedades anônimas. Assim a distingue o Código Comercial no tít. 15, em todos os seus Capítulos do art. 287 usque 353.

Ferreira Borges na sua obra – Jurisprudência do contrato mercantil de Sociedade p. 1 secç. 2 art. n. 3 § 29 nota, diz a este respeito o seguinte:

«Companhia antigamente era entre nós sinônimo de sociedade. A cit Ord. liv. 4. tit. 44 inscreve-se do contrato da sociedade e companhia – e daí em todo o título fala em companhia. Hoje ainda que se possa dizer companhia por sociedade, companheiro por sócio, contudo, estritamente falando, hoje, em acordo com todas as nações comerciais, entende-se por companhia  a associação incorporada por carta ou alvará de instituição; tal como o foi entre nós a Companhia do comércio da Índia, que teve Regimento em data de 26 de Agosto de 1628: - a Companhia do comércio do Brasil com instituição confirmada por Alv. de 10 de  Março de 1649: - a de Cabo verde e Cacheu. Alv. de 4 e Janeiro de 1690; de Guiné e Macao: a Companhia geral do Grão Pará e Maranhão de 7 de junho de 1755, a Companhia geral d’agricultura dos vinhos do alto Douro,  Alv. de 10 de Setembro de 1756: a Companhia geral das reais pescarias do Algarve,  Alv. de 15 de Janeiro de 1773; e a Companhia geral do comércio de Pernambuco e Paraíba,  Alv. de 13 de Agosto de 1759.»

A sociedade ou companhia de que trata esta Ord. é inteiramente Civil.

O Legislador não curou das sociedades comerciais (Ferreira Borges – Jurisp. § 17 nota).

O Av. n. 231 – de 21 de Agosto de 1855, declarou que o Código Comercial na p 1. t. 15, só é concernente às sociedades mercantis, sendo indiferente que uma ou ambas as partes sejam comerciantes, por que neste caso a jurisdição nasce em razão somente dos atos e não das pessoas.

Sobre as sociedades comerciais consulte-se o Cód.Com. nos lugares supra citados.

Pelo que respeita às Companhias ou sociedades anônimas, consulte-se nos aditamentos o D. 2711 - de 19 de Dezembro de 1860; assim como sobre as sociedades em comandita o D. n. 1.487 - de 13 de Dezembro de 1854.

Consulte-se sobre a matéria deste título, além de Barbosa, e Lima nos com., Cardoso - Praxis, verbo - Societas, Costa Franco - Tratado prático, jurídico, e cível p. 1 em que trata especialmente do Contrato da Sociedade; Companhias em dezesseis capítulos; Ferreira Borges obra supracitada, e Dicionário Comercial art. Companhia, Correa Telles- Dig. Port. to. 3 tit. 11 de n.1053 a 1.137, e Doutr. das Acç. de § 410 a 412, T. de Freitas - Consol. cap.10 do art. 742 a 766, e Ramos - Apontamentos Cap. 11 a 1501, etc.

 

         Em outra nota de rodapé se vai perceber que a religião permeava o direito secular, pois atos jurídicos nulos eram tidos como também pecaminosos:

 

O Al. do 1º de Agosto de 1774 declarou que os contratos feitos em positiva desobediência das leis são nulos e pecaminosos em si mesmos, por que elas obrigam em um ou outro foro.

O Art. 287 do Cód. Com. também declara que é da essência das Companhias e sociedades que o objeto e fim a que se propõem seja lícito.

Considera-se ilícita a associação cujo fim é monopolizar os gêneros de primeira necessidade, ou qualquer ramo do comércio (D. n. 2711 – de 19 de Dezembro de 1860 art.9 n.1, art. 27 regra segunda, e arts. 33 e 34).

As sociedades secretas não estando nas condições legais estão sujeitas às penas dos arts. 282, 283 e 284 do Cód. Crim., e sob a vigilância da Polícia (D. n. 2711 – de 1860 art.34).

     A prova da existência das sociedades civis é outro problema tratado nas notas de rodapé. É que não havia o registro civil até o século XIX, razão da impossibilidade do registro destas sociedades. Registros de nascimento e casamento ficavam restritos à Igreja (exceto quando os casamentos eram objeto de contrato, matéria largamente tratada no livro 4 das Ordenações Filipinas). As normas sobre registro civil no Brasil surgiram depois da independência, mas ainda se vinculavam ao registro religioso. O Decreto nº5.604, de 25 de abril de 1874 disciplinava o registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos, mas o art. 51, item 6º (não se usava a nomenclatura "parágrafo" na época) só permitia a colocação do nome do nascituro se já fosse batizado. O Decreto nº 9.886, de 7 de março de 1888 também só tratava do registro de nascimentos, casamentos e óbitos, mas já se mostrava um pouco mais secular na questão do nome (Art. 58. O assento do nascimento deverá conter: (...) 5º O nome e sobrenomes que forem ou houverem de ser postos a criança (...). Mas ainda se vinculava à Igreja (Art. 59. Podem ser omitidos, si daí resultar escândalo, o nome do pai ou o da mãe ou os de ambos, e quaisquer das declarações do artigo antecedente, que fizerem conhecida a filiação, observando-se a este respeito as reservas estabelecidas para os assentos de batismo na Constituição eclesiástica n. 73.) A Constituição Eclesiástica eram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1710. O Código Civil de 1916 já determinava o registro das sociedades civis (artigos 18 e 19), mas remetia para lei especial. Mas não foi uma lei que fez a regulamentação, mas sim o Decreto nº 4.827, de 7 de fevereiro de 1924 (art. 3º).

 

T. de Freitas na Consol. art. 747 nota (2) diz o seguinte:

«Aqui se trata das sociedades particulares em contraposição às universais. Em que casos as sociedades particulares se deviam reputar civis ou comerciais? Não se pense que as sociedades reguladas no Cód. Com. são sempre comerciais; pois que também podem ser civis, como se deixa ver o D. n. 2711 – de 19 de Dezembro de 1860, ao menos quanto às sociedades anônimas.»

Continuando diz mais adiante:

«A nossa legislação civil é omissa sobre a forma e prova dos contratos de sociedade civis, excetuadas as anônimas reguladas hoje pelo citado D. 2811 – de 19 de Dezembro de 1860.

«Será essencial a forma escrita, como exige o art. 300 do Cód. do Com. para as sociedades comerciais, excetuada a sociedade em carta de participação? Entendo que a forma escrita  é essencial sempre que as sociedades civis forem das mesmas espécies para as quais o Cód. do Com. a exige; não assim quando não forem dessas espécies, quando não tiverem firma social, casos em que domina a regra geral do Al. de 30 de Outubro de 1793 consolidado no art. 368 supra.

«Deverão porém os contratos de sociedade civis ser registradas (sic), quando eles forem de espécies que o Cód. do Com. manda registrar? A razão é a mesma, porém  não é possível registrar nos Tribunais do Comércio contratos de sociedade civis.»

Vide Ferreira Borges – Jurisp. to. 1 §§ 16 e 17 e notas, e Costa Franco – Trat. Prat. to. 2 p. 1 cap.4.

 


 

        Em outra nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas tem-se um dos diversos pontos em que se pode perceber a difícil situação jurídica das mulheres no século XIX e tempos anteriores.

 

T. de Freitas na Consol. art.758 § 1 nota (2) diz o seguinte:

«A sociedade não se dissolve pelo falecimento da mulher de qualquer dos sócios, ainda que os herdeiros sejam menores, continua como o viúvo, ficando reservado para sobre partilha do casal o que ele vier a receber da partilha social em tempo próprio.

«A incapacidade civil que sobrevêm a qualquer dos sócios por alienação mental, e declaração judicial de falência (Cód. Crim. art. 335 n. 2), está no mesmo caso do falecimento, e dissolve a sociedade. Não está porém no mesmo caso a incapacidade civil superveniente pelo fato de casamento da mulher sócia, e esta passa a ser representada por seu marido.

«Posto que a sociedade se dissolva por morte de qualquer dos sócios, são válidas e obrigatórias para os herdeiros do sócio falecido, e para os outros sócios, os atos e contratos sociais que se tenham feito antes da notícia morte, ainda que o resultado dele não seja vantajoso.»

Consulte-se também a nota ao art. 653 da mesma obra.

         Também se vê em nota de rodapé que, ainda no século XIX, não se praticava a soberania jurídica, pois se usava como fonte do direito subsidiária normas de Direito Romano e de outros países.

 Texto das Ordenações:

 

Porém o que algum dos companheiros gastou fora da Companhia ainda que fosse em algum acontecimento, que tivesse origem por ocasião da Companhia, não se tirará, nem pagará.

Nota de rodapé:

Ferreira Borges na Jurisp. § 105 nota, acha inconciliável esta disposição com a do  § 10 que começa da mesma maneira, e mostra que os compiladores Portugueses seguiram aqui a opinião do Jurisconsulto Labeon, chefe da escola dos Proculeanos, que sustentavam o principio de que estas despesas não tinham tido lugar por negócios da sociedade, que disso apenas havia sido a causa ocasional.

A opinião contraria era defendida pelo Jurisconsulto Juliano, da escola dos Sabinianos.

Os Códigos da Prússia, e o Civil da França no art. 1852 seguiram a ultima opinião, mais razoável e mais justa.

Lima no com. ao § 10 n.2, e a este § n. 3 e 4, explica a doutrina à maneira de Labeon: Eis suas palavras:

«Quibus non obstatibus, vera est nostra assertio: quia aliud est damnum contingens in rebus ad socitatem spectantibus, seu causa societatis, et aliud est damnum contingens origine societatis; ita ut prætium sit solvendum de communi, ut disponit text in § 10 hujus tituli; secundum, cum sit factum extra societatem nom est de illa solvendum, ut text. hic.»

 


domingo, 12 de outubro de 2025

As Companhias (hoje S/A) no Liv. 4 das Ord. Filipinas (1)

         O Livro 4 das OrdenaçõesFilipinas já regulamentava as Companhias. A legislação atual (Lei nº  6.404/1976) torna equivalentes os nomes “companhia” ou “sociedade anônima” e denomina seus integrantes de sócios ou acionistas. A existência, porém, deste tipo de sociedade, remonta, no direito  luso-brasileiro, desde, pelo menos, o século XVII. Talvez tenham sido pouco faladas estas sociedades, mas provavelmente a Sociedade das Índias Ocidentais ficou famosa entre nós. Era a Companhia que explorou o Nordeste brasileiro, no tempo dos flamengos (os holandeses). Tempo dos Flamengos é um livro de José Antônio Gonsalves de Mello, que trata da invasão holandesa no Nordeste.  Sobre a Companhia das Índias Ocidentais, Roberto Chacon de Albuquerque  diz que esta...

 

“não nasceu motu proprio com a livre subscrição de seu capital social, como ocorre com as sociedades anônimas pela integralização de suas ações. Para que a Companhia surgisse em 3 de junho de 1621, foi  necessário que os Estados Gerais, o Governo Central dos Países Baixos, interviesse com a expedição de uma carta-patente que lhe outorgou o privilégio durante vinte e quatro anos na exploração da navegação e do comércio com as Américas e a África Ocidental. A Companhia das índias Ocidentais deve suas origens a um ato de Estado que lhe conferiu o controle da navegação e do comércio com as Américas e a África Ocidental, com características de monopólio. A Carta-Patente da Companhia tinha quarenta e cinco artigos, com um conteúdo semelhante ao da Companhia das índias Orientais, de 1602.”

 (A COMPANHIA DAS ÍNDIAS OCIDENTAIS: UMA SOCIEDADE ANÔNIMA?).”

        O fato é que, já em 1603, as Ordenações Filipinas regulavam as sociedades do tipo "companhias". Seus integrantes não eram chamados de sócios ou acionistas, mas sim “companheiros”. Vejamos o texto das Ordenações.

                                                          

 TÍTULO XLIV.

Do contrato da Sociedade e Companhia.

Contrato de Companhia é o que duas pessoas, ou mais fazem entre si, ajuntando todos os seus bens, ou parte deles para para (sic)  melhor negócio e maior ganho.

E algumas vezes se faz até certo tempo, outras vezes simplesmente sem limitação dele; mas ainda que se faça sem limitação de tempo, morrendo qualquer dos companheiros, logo acabará o contrato da companhia, e não passará a seus herdeiros, posto que no contrato se declare, que passe a eles; salvo se Companhia fosse de alguma renda nossa, ou da República, que algumas pessoas houvessem tomado juntamente; porque nestes casos, ainda que alguns dos companheiros na renda faleça, passará o tal arrendamento a seus herdeiros pelo tempo, que ele durar, se assim foi dito no contrato declarado, e o herdeiro é pessoa diligente e idônea para perseverar na dita Companhia. 

1. Se o contrato da Companhia for feito entre algumas pessoas de todos os bens, que tiverem, logo o senhorio e posse dos tais bens se traspassará reciprocamente nos companheiros, sem ser necessária alguma apreensão corporal, ou ato algum, per que se alcance senhorio, ou posse de alguma coisa. E tudo o que qualquer dos companheiros adquirir, depois de feita a tal Companhia de todos os bens, per qualquer título que seja, se comunicará entre todos, e o domínio e posse deles se traspassará nos ditos companheiros. 

2. E quando o contrato da companhia não for de todos os bens, mas de parte deles, assim como de certo trato, ou negócio, aquilo somente se comunicará entre os companheiros, que cada um deles houver por seu trabalho, ou indústria no mesmo trato, ou negócio, e não aquilo, que cada um deles houver per outro modo fora da Companhia por respeito da sua pessoa, ou per benefício particular, que de alguém recebeu, assim como uma herança, ou legado, doação, ou outra coisa semelhante.

3. E fazendo algumas pessoas contrato de Companhia em matéria ilícita e reprovada, assim como em roubar, ou outra semelhante, o tal contrato será nulo, e de nenhum efeito e vigor. E se algum companheiro de Companhia lícita houver algum ganho per via ilícita, não poderá pelos outros companheiros ser constrangido e dar-lhes parte dele. Porém, se ele a der voluntariamente, e depois for condenado per sentença a restituir o que assim ganhou per meio ilícito, serão obrigados os ditos companheiros a restituir a parte do ganho ilícito que em si têm. Porém não serão obrigados a pagar a pena, em que o companheiro fosse condenado, salvo se fossem sabedores, que o dito ganho se houvera per modo ilícito, e com tudo quiserem haver sua parte dele, porque em tal caso pagarão as ditas penas.

4. O contrato de Companhia se desfaz por morte natural de qualquer dos companheiros. E ainda que fiquem outros alguns vivos, também quanto a eles acabará o dito contrato, salvo se a princípio se acordasse entre todos, que o tal contrato durasse entre os que vivos ficassem.

5. E assim mais se desfaz a Companhia, quando algum dos companheiros a renunciar, dizendo aos outros per si, ou per seu Procurador, que não quer mais ser seu companheiro, e isso quando no contrato da Companhia se não declarou o tempo, que havia de durar.

6. Porém quando o companheiro, que renunciar à Companhia no dito caso, o fizer por manha e engano, nem por isso ficará desobrigado da Companhia. (...)

(...)

8. E posto que antes do tempo da Companhia ser acabado nenhum dos companheiros se possa afastar dela, todavia em certos casos o poderá fazer:

Assim como, se algum dos companheiros for de condição tão áspera e forte, que com ele se não possam avir.

Ou se o que se afasta da Companhia alegar que é enviado per Nós, ou  pela República  a algum negócio:

Ou que lhe não é cumprida alguma condição, com a qual entrou na Companhia:

Ou se lhe foi tomada, ou embargada coisa, em que a Companhia é feita.

9. Não se declarando no contrato da Companhia, quanta parte do ganho, ou perda haverá cada um dos companheiros, entender-se-á, que cada um haverá assim do ganho, como da perda, iguais partes.

Não tolhemos porém, que os companheiros logo no tempo do contrato possam repartir entre si a perda e o ganho doutra maneira; porque poderá muitas vezes a indústria e saber de algum deles ser de mor valia e proveito para a mesma Companhia, que o cabedal, que os outros meterem, e assim será justo, que este tal tenha mais no ganho e menos na perda; não poderão porém os companheiros por tal pacto e condição, que um companheiro leve o ganho todo, e na perda não tenha parte, porquanto o tal contrato, como este, é ilícito e reprovado.

10. As dívidas, que se fizerem por respeito da Companhia e sociedade, dela mesma se hão de pagar, posto que a esse tempo seja já acabada.

E da mesma maneira se há de tirar da Companhia a perda e dano, que houve nas coisas dela, ou que aconteceu a qualquer dos companheiros nas suas coisas próprias por causa da tal Companhia.

Assim como, se sendo mandado um deles a certo negócio tocante à Companhia, o roubarem os ladrões no caminho, ou lhe matarem o cavalo, em que for, ou o escravo,  que levar.

11. E pelo mesmo modo toda a despesa e gasto, que se fizer em benefício da Companhia, se há de pagar dela.

Porém o que algum dos companheiros gastou fora da Companhia ainda que fosse em algum acontecimento, que tivesse origem por ocasião da Companhia, não se tirará, nem pagará dela. 

Assim como, se trazendo um companheiro a seu cargo escravos da Companhia, fosse ferido por algum deles, por lhe querer tolher que não fugisse; porque em tal caso o que gastar em se curar, não o haverá pela Companhia, mas ficará por sua conta e despesa particular.


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

OS JUROS NAS ORDENAÇÕES 4

           Já mencionei em outras postagens que, durante a vigência das Ordenações do Reino e mesmo no Império, o Brasil era um estado teocrático. Ainda farei outras postagens sobre este tema. No tocante aos juros, transcrevo a seguir notas de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas, onde constam extensas considerações sobre a proibição de cobrança de juros por parte das normas religiosas.

    As Constituições do Arcebispado da Bahia de 1710 definiam a usura como crime (parágrafo 940 – p. 327).



    Vejamos as considerações e transcrições efetuadas por Candido Mendes de Almeida, a respeito do entendimento da religião Católica sobre juros, até o século XIX:

 Direito Canônico

O Al. de 31 de. Janeiro de 1775 § 4 declarou que o dinheiro a juro é contrato proibido pelo Velho e Novo Testamento, e só tolerado em benefício do Co­mércio.

Barbosa no com. diz que em matéria de usuras, mais se devera atender aos Doutores de Direito Pontifício, do que aos Mestres em Teologia. Provavelmente pelo rigorismo que interpretavam as Sagradas Escrituras.

Direito Canônico e determinações da Santa Madre Igreja.

(...) para conhecimento dos leitores cató­licos, e que nesta matéria desejam saber o que pensa a Santa Madre Igreja, aqui expendemos o que diz o Cardeal Gousset no seu com. no art. 1905 do Código Civil Francês (...):

«Art. 1905. É permitido estipular interesses no simples empréstimo, seja de dinheiro, mercadorias, ou outras coisas móveis.»

Eis o com. de Gousset:

«Entende-se por interesse ou prêmio tudo que o emprestor recebe além da soma ou da coisa empres­tada, que se chama comumente capital, sorte prin­cipal, ou simplesmente principal.

«Pothier distingue, segundo os Teólogos, duas espécies de interesse; o interesse compensatório e o interesse lucrativo.

«O interesse compensatório é o que se percebe como garantia da perda causada pelo empréstimo, em indenização dos benefícios que o emprestor tiraria do seu dinheiro ou de qualquer outra coisa emprestada, se para si reservasse o uso. Este interesse não é um proveito para o emprestor; não é senão uma indenização que pode em consciência perceber.­

«O interesse lucrativo é o que se exige como uma recompensa, como o preço do empréstimo; é o in­teresse lucrativo, o lucro do empréstimo, que propria­mente se chama usura.

«Assim define-se comumente a usura, todo o interesse, todo o proveito além da sorte principal exi­gido do tomador, precisamente em virtude de emprés­timo do consumo; ou como s’exprime o  mesmo Juris­consulto,  lucrum supra sortem exactum, tantum propter officium mutuationis; lucrum ex mutuo exactum.

«O interesse é pois reputado lucrativo e usurário, todas as vezes que não pode ser considerado como uma justa compensação da perda ou da privação do proveito que se sofre, privando-se do seu dinheiro em benefício de outrem. Porquanto pode-se sem dúvida exigir-se interesses, ou antes uma indenização, quando há para o emprestor lucro cessante, ou dano emergente, em razão do empréstimo, ou qualquer outro título extensivo do empréstimo, i. e., que não entra na natureza do empréstimo, mas que é verdadeiramente separável do empréstimo: tal é o perigo extraordinário de perda da sorte principal, ou capital.

«Mas quando o emprestor não pode invocar nenhum destes títulos, e que a percepção dos interesses teria lugar precisamente vi mutui, julgamos que ele não pode em consciência, não obstante a lei civil, perceber interesses, por módicos que sejam.

«Foi sempre e é ainda, diz Bento XIV, a doutrina da Igreja Católica, estabelecida por acordo unânime de todos os Concílios, dos Padres, e dos Teólogos, que todo o proveito extraído do empréstimo, precisamente em razão do empréstimo, i. e., segundo a linguagem da Escola, sem que o emprestor tenha o título de lucro cessante, ou dano emergente, ou qual­quer outro título extrínseco ao empréstimo, é usurário e proibido pelo Direito natural, divino, e eclesiástico (de Synodo Diocesano liv. 7 cap. 47).

Continuando diz ainda Gousset:

«Este grande Papa ensinou a mesma doutrina em uma Carta Encíclica, dirigida aos Patriarcas, Arcebispos, Bispos e Ordinários da Itália. Essa Carta, que começa por estas palavras Vix pervenit, contém as se­guintes disposições:

«1o A espécie de pecado que se chama usura, e que tem o seu assento próprio no contrato de empréstimo (mutuo), consiste em que aquele que empresta, quer que em virtude do próprio empréstimo, que por sua natureza pede que se restitua somente tanto quanto se recebeu, se lhe dê mais do que se não emprestou; e pretende-se por isto, que além do seu capital se lhe dê um lucro em razão do empréstimo.

«É por isto que todo o lucro desta natureza é ilícito e usurário: Omne propterea hujus modi lucrum quod sortem superat, illicitun et usurarium est.

«2o Para desculpar esta mancha da usura, em vão se alegaria que este lucro não é excessivo, mas moderado; que não é grande, mas pequeno; que aquele de quem se exige em razão do empréstimo não é pobre mas rico; que empregará mui utilmente, quer em me­lhorar sua fortuna, quer na aquisição de novas pro­priedades, quer em um comércio lucrativo; porquanto consistindo a essência do empréstimo na igualdade entre o que é fornecido e restituído, esta igualdade uma vez restabelecida pela restituição do capital, o que pretende exigir, de quem quer que seja, alguma coisa mais em razão do empréstimo, vai contra a natureza deste contrato, que se acha já plenamente satisfeito pelo reembolso de uma soma equivalente; por conseguinte, se o emprestor recebe alguma coisa além do capital, está obrigado a restituir, por uma obrigação desta justiça que se chama comutativa, a qual ordena de guardar inviolavelmente nos contratos a igualdade própria a cada um, reparando-a exatamente, se for  violada.

«3o Mas, estabelecendo estes princípios, não se pretende negar que certos títulos, que não são intrínsecos ao empréstimo, nem inteiramente ligados à sua natureza, não possam algumas vezes concorrer fortuita­mente com ele, e dar um direito justo e legítimo de exigir alguma coisa acima do principal. Também não se nega que haja muitos outros contratos, de natureza inteiramente diferente do empréstimo, pelos quais pode-se colocar ou empregar o seu dinheiro, seja para obter rendas anuais, seja para fazer um comércio e tráfico lícitos, tirando disto lucro honesto.

«4o  Ora, como nesta multidão de diversos gêneros de contratos, se a igualdade não for observada, tudo  o que um dos contratantes receber de mais, produz, não a usura (não havendo empréstimo real ou paliado), mas outra espécie de injustiça que, não é menos real, e que consigo traz a obrigação de restituir. Pelo con­trário, se tudo aí se acha regulado conforme a jus­tiça rigorosa, não é duvidoso que estes diferentes gêneros de contratos não forneçam muitos meios lícitos de entreter e alargar o comércio pelo bem público.

Mas não permita Deus que Cristãos pensem que sejam as usuras, ou semelhantes injustiças, que possam concorrer para fazer florescer os comércios úteis, por isso que os oráculos sagrados nos dizem que é a justiça que eleva as nações e que o pecado torna os povos mise­ráveis (Provérbios cap. 14 v. 34).

«5o Mas é mister observar com cuidado que seria falsa e temerariamente que alguém se persuadisse, que se acha sempre, ou com o empréstimo, outros títulos 1egítimos, ou mesmo separadamente do empréstimo, outros contratos justos, por meio de cujos títulos ou contratos, todas as vezes que se empresta a outrem, o que quer que seja, dinheiro, trigo, ou qualquer outra coisa do mesmo gênero, sempre se permita receber algum lucro moderado, além da sorte principal assegurada ou inteira.

«Se alguém assim pensar, sua opinião seria por certo contrária, não só às divinas Escrituras, e ao juízo da Igreja Católica sobre a usura, como ao senso comum e à razão natural.

«Ninguém pode ignorar que se é obrigado, em muitos casos, a socorrer ao seu próximo pelo em­préstimo puro e simples, segundo estas palavras de Jesus Cristo: Não repilais quem vem pedir-vos emprestado (Mateus, cap. 5 v. 42); e que haja muitas circunstâncias em que se não possa fazer outro contrato justo e lícito senão o empréstimo.

«Assim quem quiser velar na segurança de sua consciência, deve primeiro que tudo examinar com cuidado se há  verdadeiramente, com o empréstimo, um título legítimo ou um contrato diferente do em­préstimo, que possa justificar ou isentar de qualquer mancha de usura o lucro que se trata de procurar.»

Terminando o seu com. diz ainda Gousset:

«Os Moralistas têm explicado as condições que se exigem para os diferentes títulos em virtude dos quais é permitido perceber algum lucro do empréstimo.

«Temendo afastar-me de mais do meu fim, conten­to-me em observar, que os Teólogos não concordando em todos os pontos que se ligam à questão da usura, de­ve-se  temer de cair em um rigorismo que não seria menos funesto à Moral Evangélica que o relaxamento dos que pretendem que pode-se sempre ter um  titulo legítimo em pró do interesse, prêmio, ou lucro de empréstimo ou mútuo.»

Perin no seu opúsculo - a Usura e a Lei de 1807 aponta quatro títulos por onde no mútuo é lícito o lucro: 1o lucrum cessans (a perda de um emolumento que provavelmente se colheria se se não emprestasse o dinheiro): 2o Damnum emergens (a saber, o dano de que o empréstimo seria a fonte direta): 3o periculum sortis (isto é, o perigo de perder o capital em razão da insolvabilidade do tomador): 4o  titulum legis (em virtude do qual se considera legítimo o lucro desde que é autorizado pela lei civil).

Mas este último título baseia-se num fato que pode ser contrário à moral, desde que o Legislador, ou por erro ou por iniquidade, promulgar uma lei contrária à severa moral e aos legítimos interesses da sociedade.

(...)

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

OS JUROS NAS ORDENAÇÕES 3

 As leis extravagantes, ou seja, aquelas que não estavam no corpo das Ordenações Filipinas, criaram algumas exceções para permitir a cobrança de juros. A seguir, vamos ver estas exceções e os inconformados comentários de Cândido Mendes de Almeida sobre a permissão de cobrança de juros no Brasil do século XIX. Elas estão no Livro 4 das Ordenações Filipinas.

 

Além das exceções notadas neste § e nos precedentes, outras foram ocorrendo criadas por Leis extravagantes, e cujos prêmios o legislador regulava.

Assim foram taxados os juros ou censos a retro, tanto perpétuos como por vidas, o que consta das Leis e Alvarás de 13 de Dezembro de 1614, de 12 de Outubro de 1643, e de 23 Maio de 1698. Eis em que termos neste último documento o Legislador se expressava:

«E conformando-me com o que na dita Consulta pareceu aos do meu Conselho - hei por bem, que, o sem embargo do Alvará de 1643, nenhum juro ou censo a retro, sem limitação de tempo, se possa vender nem fundar, daqui a diante, a menos de vinte o milhar (cinco por cento); e a dez o milhar, sendo em uma vida somente; e a doze, sendo por duas vidas, que é o mesmo que no dito primeiro Alvará de 1614 estava ordenado: e os contratos de censos, ou juros, que por menos preço forem consti­tuídos, sejam por esse mesmo feito nenhuns; e tudo o que demais se tiver levado, se restitua, ou impute na sorte principal.

«E todo o Tabelião, que fizer escritura de con­trato em menos preço, incorra em pena de perdi­mento do seu Ofício.

«E por quanto nestes Reinos, não somente se vendem censos e juros de dinheiro, mas também de pão e azeite, ou outros semelhantes frutos, declaro que neles também se entende esta lei, regulando-se conforme à justa comum estimação, que tais frutos costumam ter, reduzindo-se a sua avaliação à mesma taxa de vinte milhar (cinco por cento) nos perpétuos a retro, dez o milhar em uma vida, e doze em duas.

«E quanto aos já constituídos, assim de dinheiro, como de frutos, antes desta Lei, declaro que não é minha tenção aprová-los, nem reprová-los; porque ainda que se não devam julgar precisamente por ela, pois a do ano de 1614 não estava em seu vigor, con­tudo, se no preço delas houvesse lesão ou injustiça, ou usura, conforme ao comum valor, que nas terras corria, poderão as partes tratar dela, e se lhes deferirá por meus Julgadores, como for justiça, conforme a Direito.»

Este Alvará de 1698 foi posteriormente interpretado por outro de 16 de Janeiro de 1773 § 7.

O censo a retro de que tratam os mesmos Alvarás é, em geral, o censo denominado consignativo, que era o contrato pelo qual uma pessoa dava a outra certa quantia de dinheiro, e esta se obrigava por si ou pela renda de determinada propriedade a pagar-lhe anual­mente certo número de medidas de pão, vinho e outros frutos. Chamava-se a retro por que se podia remir.

O censo consignativo divergia do reservativo, por que neste havia a cessão de alguma propriedade para se receber o número das ditas medidas.

O que devia o dinheiro ou a propriedade chamava-se Censoista, e Censoario o que se obrigava ao pagamento das medidas. Entre nós tais contratos não têm uso.

Vide Correa Telles - Ensaio sobre a natureza do censo consignativo, e o Dig. Port. to. 3 de n. 1150 a 1161, Almeida e Sousa - Trat. Prat. dos Censos, e T. de Freitas - Consol. art. 365 nota (1).

Posteriormente a 1698, no Alvará de 17 de Janeiro de 1757, assim como no de 6 de Agosto do mesmo ano, regulou-se o juro dos empréstimos de dinheiro, assim como o do contrato de risco, fixando-os em cinco por cento; regulando-se provavelmente o Legislador Por­tuguês pela Encíclica do Papa Bento XIV que começa - Vix pervenit.

O Alvará de 17 de Janeiro de 1757, o que tinha de inconveniente, era colocar no mesmo paralelo o sim­ples empréstimo de dinheiro, e o contrato a risco, em que só deixou liberdade ao comércio com a Índia Oriental; mas essa disposição foi abrogada com a pu­blicação do Alvará de 5 de Maio de 1810 que co1ocou no mesmo pé o contrato a risco tanto para a Ásia, como para qualquer outra parte do Globo.

A taxa de cinco por cento marcadas no Alvará de 17 de Janeiro de 1757, (...) era a mais justa e equitativa, tanto em re­lação ao capitalista, como ao tomador do dinheiro.

Sabe-se que o ideal dos que preconizam a liberdade na estipulação dos prêmios é, que essa liberdade atrairá a concorrência, e o dinheiro se tornará barato.

Vã ilusão, em parte alguma realizável, senão nos Países de extrema riqueza e civilização. Excluamos os mercados inglês e francês, e talvez em nenhum outro País o dinheiro seja barato.

Nos Países novos é isto impossível, pelo pronto emprego que todo o capital que aparece, tem. Entre­tanto se se atender que nenhuma indústria em termos regulares não pode dar mais de dez por cento, o que espera o  tomador que aceita empréstimos com prêmio superior àquela taxa?

Se tem algum capital, todo é devorado para pagar ao emprestor, e em breve a ruína é completa. Se não tem, o próprio capital emprestado servirá para ali­mentar o tomador, e pagar o excessivo juro.

Eis as causas de tantas liquidações e falências, de que o nosso País está cheio. A morte ou sacrifício do tomador arrasta também, não raras vezes, o emprestor, cuja avidez concorre para matar a galinha de ovos de ouro.

Entretanto o Legislador que no contrato de compra e venda admite as causas de lesão, é impassível pe­rante as atrocidades da usura.

Não punir a usura porque sempre haverão (sic) usurários, seria o mesmo que rasgar o Código Penal porque os assassinos e ladrões se não podem exterminar.

Castigar a usura traz o benefício de limitar a profis­são aos caracteres refratários a toda a ideia de pudor e humanidade; mas os homens honestos, não tendo o incentivo da lei para absolvê-los de todo o escrúpulo, recuariam perante um ato que não só condena a moral, como a lei.

Ora este freio tirou a Lei de 1832, e os juros os mais exorbitantes são exigidos porque o Legislador não os condena.

Ouçamos a este respeito o que diz Troplong no seu Tratado du Prét no com. ao art. 1908 do Código Civil Francês n. 354. Eis suas palavras que deveriam ser meditadas pelo Legislador Brasileiro:

«Em 1836 todavia, em razão desta legomania tão espirituosamente assinalada por Mr. de Cormenin, propôs-se a revogação da lei de 1807, deixando-se as convenções senhoras de fixarem o preço dos emprésti­mos de dinheiro. Era voltar ao sistema de Turgot, e outros Economistas, que, pondo de lado a moralidade dos atos, consideram com mais particularidade o movi­mento dos capitais, e a liberdade do comércio.

«Mas a tentativa  naufragou. Cumpre agradecer a Mr. Dupin ainé o havê-la combatido, como o fez nesta ocasião, em pró das ideias sãs de justiça, de moral e de bom senso.

«Na verdade esse adversário batido pelos seus argumentos, julgou poder tomar sua desforra, dizendo que os princípios de Economia Política não são os mais co­nhecidos no forum (Palais).

«A Economia política é sem duvida uma grande coisa, e o forum a respeita quando mantêm-se no ter­reno da verdade. Mas quando ela prossegue em peri­gosas tentativas, quando, para pedir a liberdade de le­vantar a taxa do juro acima de 5 e 6 por cento, esco­lhe um período de prosperidade pública em que o juro, há mais de 20 anos, caiu muito abaixo dessa taxa, é para temer que essa ciência cuide antes de favorecer a usura do que o crédito, e os Jurisconsultos perspicazes nenhum escrúpulo têm de separar-se dela.»

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Os Juros nas Ordenações 2

JUROS E BÍBLIA

 


        Das notas de rodapé ao livro 4 das Ordenações Filipinas, infere-se que “Desde que o contrato do juro passou de usurário a lícito pela Lei de 24 de Outubro de 1832, caiu por terra” a punição respectiva (perda de “todo o principal, que deu por haver o dito ganho e acrescença, se a já tiver recebida ao tempo, que por nossa parte for demandado). “O crime de usura era mixti fori, e por isso caía também sob a jurisdição secular (Barbosa com. n. 1)". Ou seja, como a usura era também pecado, havia a discussão sobre a competência para o julgamento (jurisdição eclesiástica ou secular). Por haver esta simbiose entre pecado e crime é que se tornava cabível toda uma discussão e argumentação sobre os fundamentos religiosos da proibição do juro. É esta discussão que transcrevo a seguir, na qual se pode ver a resistência que a permissão de cobrança de juros encontrava no meio jurídico do Brasil do século XIX. Quando ainda havia a proibição dos juros, as provas de sua prática “não eram rigorosas; fundavam-se em presunções por causa do proceder oculto e fraudulento dos usurários (Barbosa no com. n 2).”

 

A usura por excelência se assim podemos qualificar o abuso do prêmio do dinheiro, verifica-se no contrato do mútuo, e era assim qualificada no Velho Testamento, legislação toda humanitária e benéfica que olha­va com menos rigor para o trabalhador (o tomador do empréstimo), do que as modernas que empenham todo o seu valimento em pró do capitalista (emprestor, ex­pressão antiga da Ord. Afensiva (sic), e que muito convém juvenescer).

Nos livros santos se conhece toda a elasticidade do mútuo com juros, e daí todas as prescrições para conter a avidez e dureza dos corações que se dedicam à profissão da usura:

No Êxodo cap. 22 v. 25.

«Se emprestares algum dinheiro aos do meu Povo, que são pobres entre vós, não o apertes como um exa­tor inexorável, nem o oprimas com usuras

No Deuteronômio cap. 23 ns. 19 e 20.

«Não emprestarás com usura a teu irmão nem di­nheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja;

«Mas somente ao estrangeiro. A teu irmão porém em­prestarás o que ele houver mister, sem daí tirares algum interesse; para que o Senhor teu Deus te aben­çoe em tudo o que fizeres na terra, em cuja posse hás de entrar.»

No Levítico cap. 25 v. 35, 36 e 37.

«Se teu irmão se achar muito pobre, e não puder já trabalhar de mãos; e se tu o receberes como um es­trangeiro, que veio de fora, e ele viver contigo.

«Não recebas usura dele, nem o executes por mais do que tu lhe deste. Teme a teu Deus, para que teu irmão possa viver em tua casa.

«Não lhe darás o teu dinheiro à usura, nem exigi­rás dele mais grão, do que o que tu lhe houveres dado.»

Nos Provérbios cap. 28 v. 8.

«Aqueles que amontoam riquezas por meio de usuras e interesses injustos, ajunta-as para o que hade (sic) ser liberal com os pobres.»

Ezequiel cap. 18 v. 8 e 9.

«Se não emprestar a juro, e não receber mais do que emprestou: ou apartar a sua mão da iniquidade, e fizer um verdadeiro juízo entre homem e homem.»

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . 

«Este tal é justo, certissimamente viverá, diz o Senhor Deus.»

Nos Salmos, referindo-se aos costumes do homem justo, do cidadão do Céu, diz o Salmista no Salmo 14 v. 5.

«Não dá o seu dinheiro à usura; nem recebe dá­divas para oprimir o inocente. O que faz estas coisas não será jamais abalado.»

No Salmo 54, v. 11.

«Nas praças públicas não há senão usura, e engano.»

No Salmo 71 v. 13 e 14.

«Ele terá compaixão do pobre e necessitado; e salvará as almas dos pobres.»

«Ele resgatará as suas almas das usuras, e da inequidade; e o nome dos pobres terá honra diante dele.»

Tais são as doutrinas do Velho Testamento acerca da usura, que Bentham, a quem seguimos na lei de 1832, sustenta que é uma virtude.

Mas o legislador inspirado, Moisés, conhecia tanto a importância da usura, e querendo cada vez mais se­parar o Israelita dos povos estrangeiros idólatras, lhes impôs o seguinte preceito no Deuteronômio cap. 15 v. 6.

«Tu emprestarás a muitos povos, e tu de ninguém receberás empréstimos. Tu dominarás sobre muitas Nações, e a ti nenhum te dominará!»

Este preceito é ainda recomendado no cap. 28 v. 12 no fim.

«Tu emprestarás a muitas gentes, e tu de nenhuns receberás emprestado.»

E no versículo 15 diz:

«Porém se não quiseres ouvir a voz do Senhor teu Deus, e não guardares e praticares todas as suas or­denações, etc.: seguem-se diferentes castigos, e entre outros os dos vers. 43 e 44.

«O estrangeiro, que vive contigo, se elevará acima de ti, e far-se-á mais poderoso; e tu descerás e fi­carás abaixo dele.

«Ele te emprestará à usura, e tu não lhe empres­tarás. Ele estará na cabeceira, e tu nos pés.»

Destes preceitos têm usado tão bem os Israelitas, que pode-se dizer, são hoje os verdadeiros domina­dores da Terra.

No Novo Testamento é também a usura apreciada do seguinte modo:

Temos em primeiro lugar S. Lucas no seu Evangelho cap. 6 vers. 34 e 35:

«E se vós emprestardes àqueles de quem esperais receber: que merecimento é o que vós tereis? porque também os pecadores emprestam uns aos outros, para que se lhes faça outro tanto.

«Amai pois a vossos inimigos: fazei bem, e empres­tai, sem daí esperardes prêmio: e tereis muito avultada recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, que faz bem aos mesmos que lhe são ingratos e maus.»

Este último versículo que, traduzido por S. Jerôni­mo na Vulgata tornou-se muito conhecido pelo texto:

«Benefacite et mutuum date, nihilinde sperantes

Texto em que se apoiam os rigoristas em Teologia e Direito Canônico, mantendo a doutrina, de que sempre que se empresta com prêmio, há usura, isto é, o abuso desse comércio.

Entretanto existem outros textos, tanto no Evangelho de S. Lucas cap. 19 vers 23, como no de S. Matheus cap. 25 vers. 27, onde o ofício de Banqueiro, e a dação de dinheiro a prêmio parece autorizada pelo Salvador.

  Trata-se de um amo que deixou a vários servos certa quantidade de talentos para negociar. O último destes servos não só não negociou com o único talento que lhe foi deixado, como deixou-o sem render em algum Banco.

Eis corno se exprime o primeiro Evangelista no cap. 25 vers. 27:

«Devias logo dar o meu dinheiro aos Banqueiros (numullariis), e vindo eu teria recebido certamente com juro (com usura) o que era meu.»

E S. Lucas no Evang. cap. 19 vers. 23:

«Logo por que não meteste tu o meu dinheiro a Banco (mensam), para que quando viesse, o recebesse eu então com os seus lucros?»

Nas cidades Gregas ou Romanas havia de ordinário um banco ou uma mesa, onde mediante um privilégio da autoridade pública emprestava-se dinheiro com ágio (Saumaise-De trapezitico fænore).

Havia Bancos em Alexandria, em Damasco, nas duas Antioquias, em Tiro, Éfeso, Atenas, Corinto, etc.

Vide Mastrofini - Discussion sur l'usure de n. 71 a 101.

A doutrina media entre a inteira exclusão do ágio e a liberdade nestes contratos, seguiu a Igreja, mesmo em consideração à especialidade deste contrato.

Sobre esta matéria o mais moderno documento é a Encíclica-Vix pervenit, do Papa Bento XIV, cujas disposições mais importantes apontaremos adiante.

Para se poder apreciar, sem paixão, este problema, que ainda divide o mundo literário, jurídico e financeiro consulte-se Troplong - Du Prét, Gousset - Cod. Civil comentado em suas relações com a Teologia Moral, com. ao art. 905, Mastrofini-Discussão sobre a usura, Marin Darbel - A Usura: sua definição. Tri­pard - Moisés ou as leis fundamentais da Sociedade. A história, as ciências e a filosofia, segundo o Penta­teuco, Coquille - Os Legistas: sua influência política e religiosa art. usura pag. 434: e a obra - Política Cristã no art. Empréstimos a juros, e Mr. Ch. Perin ­- A usura e a Lei de 1807.

Este interessante trabalho, digno de ser lido e con­sulta-lo por todos os Brasileiros, veio dar grande real­ce ao nome já famoso do célebre Professor de Louvain.

Na grande questão da liberdade do ágio, sustenta­da por Miguel Chevalier em França com todo o pres­tígio do escritor, do Economista e do valido na Mo­narquia Napoleônica, entendeu o Governo Francês dever também consultar o grande, mas modesto Eco­nomista Belga.

O seu trabalho importantíssimo teve força para embaraçar a revogação de uma Lei que todos os Economistas da Escola Inglesa de Adam Smith e de J. Bentham reputam um absurdo: para estes somentea verdade verdadeira é a liberdade do ágio.

Consulte-se em pró da doutrina adversa: J. Ben­tham - Defesa da Usura, Garnier Pagés - Dicionário Político arts. lnterét, Turgot - Memória sobre os empréstimos de dinheiro, nas obras de J. Bentham t. 3 pag. 283, Coquetin et Guillaumin - Dicc de Eco­nomia Política, e nos artigos - Bancos e Interesse.

Duas obras existem em Português sob os títulos - Instituições de Economia Política, de § 1037 em diante, e Lições de Economia Política, por José Ferreira Borges 1834, e Bernardino J. da S. Carneiro liç. 83 (Coimbra 1850) em que as ideias de Bentham são defendidas.

(...)

Depois que os Imperadores Romanos se converteram ao Cristianismo, o empréstimo com o ágio foi regulado em diferentes épocas pelo Governo.

Constantino Magno limitou-o a 12 por cento, taxa que conservou Theodosio o Grande, não obstante a grande guerra que os Bispos e Teólogos faziam a esse contrato.

Justiniano fixou uma taxa mais moderada: 4 por cento quando o empréstimo era feito por pessoas ilustres, 8 entre comerciantes, 6 por outras pessoas, e 12 nos empréstimos a risco.

Somente Basílio o Macedônio proibiu esse contrato com o rigor dos Padres da Igreja, mas suas determinações não se puderam manter no reinado do seu filho Leão o Filósofo.

A questão do ágio é mais antiga do que se imagina; e tem sido um problema que nem todas as sociedades hão podido resolver.