sexta-feira, 20 de junho de 2025

Classificação dos Bens no Livro 4 das Ordenações Filipinas

    O Direito (leis, doutrina, jurisprudência, costumes) muda com  passar do tempo e nas mudanças de espaço. Verdade que, se olharmos o livro 4 das Ordenações Filipinas e seu sistema jurídico ainda baseado no Direito Romano e no Direito Canônico, talvez as mudanças temporais não fossem tão perceptíveis. E os vínculos com o Direito Romano e com o Direito Canônico também tornariam os deslocamentos espaciais (pelo menos nos países predominantemente católicos) pouco significativos em termos de diferenças normativas.  

   Em se tratando de classificação dos bens, os 500 anos de vida do Brasil, viram poucas variações. Hoje temos a classificação dos bens no Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/01/2002 - artigos 79 e seguintes) que os divide, em resumo, entre móveis e imóveis. Mas no Livro 4 das Ordenações Filipinas a nomenclatura era um pouco diferente. 

   Os hoje chamados bens imóveis, eram chamados de bens de raiz (como os terrenos, as herdades, as casas, os prédios, as possessões ou campos de terras, vinhas, árvores, por exemplo). Já os bens móveis eram chamados do mesmo modo de hoje ( = móveis). Eram bens móveis, por exemplo, a mobília e os trastes, as benfeitorias feitas em bens de raiz. “Por bens entende-se os móveis, semoventes, e de raiz, e coisas, as ações, os direitos, etc”.

   A expressão “bens de raiz” parece ter sido usada antes do século XIX, porque, nas notas de rodapé, que são da segunda metade do século XIX, já se usa a expressão “bens imóveis”.

   As alienações dos bens de raiz “excedendo de duzentos mil réis demandam escritura pública”, diz-se em nota de rodapé.

   Bens e fazenda eram coisas distintas, como se vê pela frase: “E dispondo o pai, ou mãe, em seu testamento de todos os seus bens e fazenda…” A fazenda podia ser “de bens móveis, ou dinheiro.” Mas há também um trecho em que se fala “fazenda e patrimônio.” Fazenda também tinha o significado atual, de órgão estatal responsável pelas finanças.

   Além dos bens móveis e dos de raiz, havia os semoventes, como era o caso dos animais, por exemplo. 

   O dinheiro não era um bem móvel, nem de raiz.

  Havia casos em que certos bens eram considerados (ou equiparados a) bens de raiz: Apólices da Dívida Pública, os Ofícios (ofícios eram os hoje chamados cargos públicos). Os ofícios eram equiparados a bens de raiz porque “deles se percebia frutos e rendimentos.

   Havia outras subclassificações de bens, tais como parafernais, alodiais, eclesiásticos, da Coroa do Reino ou reguengos (após a independência, estes se tornaram “bens ou próprios nacionais”, como, por exemplo, os terrenos de Marinha), bens profanos (que não eram eclesiásticos - “mandamos que nos bens Eclesiásticos se guarde o Direito Canônico, e nos bens profanos o Direito Civil”), bens dotais, bens castrenses (“adquiridos na guerra ou na Milícia” - o testamento do soldado podia ser feito “no chão com a espada, ou nos escudos, ou nas espadas com o sangue das feridas”), quase-castrenses (adquiridos “pela profissão das letras, e por doações régias”, “pelas Letras, como pela Magistratura, Advocacia ou Professorado, ou qualquer arte liberal ou Ofício público, ou pelo Clericato…”), foreiros, censíticos, profectícios (“os que o filho herda de seu pai ou mãe, ou avós em sucessão direta"), adventícios (“os adquiridos por esforço próprio, ou herdados por sucessão não direta”), 

   A relação com os bens podia ser de Senhorio proveitoso: “é o domínio útil contraposto ao direto”; e de Senhorio maior: “é o domínio eminente do Rei ou do Estado”.

   A palavra bens aparece 1006 vezes no Livro 4 das Ordenações Filipinas, incluídas as notas de rodapé.

   No livro 4 das Ordenações Filipinas há diversas situações em que a Escritura é da substância do contrato. Em nota de rodapé consta:

“A escritura pública ou é da substância do contrato, ou necessária para a prova, como nos casos da Ord. do liv. 3 p. 59.

Os casos em que, segundo nosso Direito, é da substância do contrato são os seguintes:

1°- Nas doações que devem ser insinuadas.

2°- Nos contratos de aforamento de bens eclesiásticos.

3°- Nos contratos esponsalícios (Lei de 6 de Outubro de 1784 § 6, que é extensiva aos contratos de casamento em geral, puramente esponsalícios ou não).

4°- Nos hipotecários (Lei de 20 de Junho de 1774 § 33, e Lei n. 1274 - de 24 de Setembro de 1864 art. 4 §6).

5°- Nos de compra e venda de bens de raiz, cujo valor exceda de 200$000, sob pena de nulidade (Lei n. 840 - de 15 de Setembro de 1855 art. 11, e Avs. n. 49 - de 22 de Janeiro, e n. 409 - de 16 de Dezembro de 1856, e n. 235 - de 30 de Julho de 1858).

6°- Nos contratos de compra e venda, e dação in solutum de escravos cujo valor ou preço exceda 200$000, qualquer que seja o lugar em que tais contratos se possam efetuar (Lei n. 1114 - de 27 de Setembro de 1860 arts. 11 § 3, e 11§ 7, e Decreto n. 2699 - de 28 de Novembro do mesmo ano art. 3).

Estas disposições têm somente vigor na Corte e respectivo Município.

Nas Províncias rege outra legislação a este respeito; ainda que pelo Decreto n. 2833 - de12 de Outubro de 1861 sobre a transferência de escravos e arrecadação de imposto da cisa, atualmente em todo o Brasil vigore aquela legislação; (...)

7° - Nos contratos em que as partes expressamente convencionam fazer escritura, ou se posa presumir ser essa a sua vontade.”


“Correa Telles Interp. § 75 referindo-se à Lei de 6 de Outubro de 1774 § 1 que exige escritura pública para os contratos esponsalícios diz, que a regra estabelecida no § da referida lei, oposta a todas as regras gerais do Direito, não deve ampliar-se fora do seu caso.

«Assim, continua o mesmo Jurista, também as Leis que exigem escritura, como substância do contratos não se estendem além dos seus casos (Ord. deste liv. t. 19 pr.) porque a regra geral é, que a escritura serve para prova, e não para a substância do contrato.»”

   Os escravos eram considerados bens, mas estes serão objeto de outra postagem.

  Como sempre esclareço, deixo aqui de mencionar o local do livro 4 em que constam os assuntos tratados em cada postagem, pois eles podem ser facilmente achados mediante “caça-palavras”, ou pesquisa em texto por palavras.


terça-feira, 17 de junho de 2025

Desapropriação e Licitação no Livro 4 das Ordenações Filipinas

    A desapropriação, como a conhecemos hoje, surgiu no Brasil após o fim da Monarquia absoluta. Veio com a Monarquia Constitucional, portanto. Mas a perda da propriedade para o Estado (no caso, para a Coroa) já era contemplada na Monarquia absoluta que nos governou na época colonial.

   Apesar da Constituição de 1824 admitir a perda da propriedade privada  (Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização), não há nela a palavra desapropriação.

   No texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas, não se encontram as palavras “desapropriar”, “desapropriado”, ou  “desapropriação” e, nas notas de rodapé, a palavra “desapropriação” só aparece em uma nota: “Este meio é ainda recomendado no Av. n. 218 - de 21 de Maio de 1862, quando se teve de desapropriar o edifício do Internato do Imperial Colégio de Pedro II. Segundo o art. 31 do D. n. 353 - de 12 de Junho de 1845 nas desapropriações por utilidade pública no Município Neutro, o prédio desapropriado se considera livre de todos os ônus, hipotecas e lidespendentes.”

   O instituto da Desapropriação foi regulamentado nos artigos 64 e seguintes da  Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas, mas esta Consolidação é de 1858 (SUZART, Joseane. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Íntegra do texto aqui). E Teixeira de Freitas, aparentemente, usou as normas do Decreto nº 353/1845 para incorporá-las na Consolidação. Enfim, a desapropriação, como a conhecemos no Estado Constitucional, surge no Brasil independente, em 1824, mas é regulamentada a partir de 1845.

   Mas a possibilidade do Rei tomar a propriedade, já era contemplada no Livro 4 das Ordenações Filipinas: ora como razão para atender a necessidades: “…se… a mandássemos Nós tomar (a coisa, o bem) por alguma necessidade…”; ora como punição para herdeiros que impedissem alguém de fazer testamento: “e perca para a nossa Coroa toda a parte, que lhe cabia haver ab intestado por falecimento da pessoa, que assim foi forçada…”, ou para herdeiros que impedissem alguém de revogar testamento que os beneficiara: “E a herança se aplicará à nossa Coroa…”

   Como estamos falando de herança, é interessante anotar aqui de onde veio o termo licitação. A licitação ocorria para venda de coisa comum dos herdeiros, segundo consta em nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas: “os Praxistas têm com razão admitido a licitação na praça, ou seja para a venda da coisa comum, ou seja para o arrendamento dela”;  «Licitação, diz Pereira de Carvalho - Proc. Orphan. § 92, é o ato, pelo qual se põe a lanço os bens da herança, que não admitem cômoda divisão, para se adjudicarem àquele dos co-herdeiros, que mais oferecer.»; «Por Direito Romano L. 1 e 3 Cod. comm. divid. a licitação era unicamente permitida nas coisas, que se não podiam dividir, nem acomodar facilmente em partilha.” Esta disposição sobre licitação se encontra no “Corpus Juris Civilis”. Há uma edição espanhola (Cuerpo de Derecho Civil Romano, ed. Lex Nova, Valladolid, 2004), na qual, as disposições sobre licitação se encontram na p. 390 do Tomo IV:

TIT. XXXVII

COMMUNI DIVIDUNDO

1. Imp. ANTONINUS A. LUCANO.  — Frater tuus si solam portionem praedii ad se pertinentem distraxit, venditionen revocari non oportet, sed adversus eum, cum quo tibi idem praedium commune esse coepit, communi dividundo iudício consiste; et ea actione aut universum praedium, si licitatione viceris, exsoluta socio parte pretii, obtinebis, aut pretii portionem, si meliorem alius conditionem attulerit, consequeris. Quodsi divisio praedii sine cuiusquam iniuria commode fieri poterit, portionem suis finibus tibi adiudicatam possidebis; hoc videlicet custodiendo, ut post litis contestationem memo nec partem suam, ceteris eiusdem rei dominis non consentientibus, alienare possit.

   A palavra “licitação” ainda não aparecia no Código de Contabilidade da União (Decreto nº 4.536, de 28/01/1922), mas passou a constar do Decreto-Lei 200/1967 (art. 125).

   Se a palavra “licitação” só foi incorporada à terminologia do Direito Administrativo Brasileiro no século 20, o procedimento que se abrigou sob essa nomenclatura já estava no Livro 1 das Ordenações Filipinas, quando trata das despesas feitas pelos então Concelhos, que hoje, no Brasil, são denominados Municípios: “TÍTULO LXVI  Dos Vereadores  (...) 39. E não se fará obra alguma, sem primeiro andar em pregão, para se dar de empreitada  a quem a houver de fazer melhor e por menos preço;”.

   Como em todas as demais postagens sobre as Ordenações Filipinas, deixo de indicar a página ou fazer referência especial sobre onde se encontram, pois basta que se faça pesquisa por “caça-palavras” no texto integral que disponibilizo nos links ao longo desta postagem.


sábado, 14 de junho de 2025

Aluguel e Arrendamento no Livro 4 das Ordenações Filipinas

    Na vigência das Ordenações Filipinas, as casas podiam ser alugadas ou arrendadas. A propriedade imóvel também podia ser aforada, mas este é um tema que merecerá postagem específica. Quem quiser antecipar o tema aforamento, procure no texto integral do Livro 4 (aqui) as palavras aforamento, enfiteuse, prazo/praso e laudêmio.

    Casas, herdades ou qualquer outra coisa de raiz (os imóveis eram chamados “coisas de raiz” ou “bens de raiz”) podia ser alugada ou arrendada. O termo “herdade” ainda hoje é usado em Portugal. Nas Ordenações, aparentemente significa “vinha”.

    “Aluguer” também é uma palavra ainda usada em Portugal. No Brasil, apesar da grafia estar correta, consagrou-se o uso de “aluguel”, popularizando-se a pronúncia “aluguéu” (o L sendo substituído por “U”). O hoje denominado Inquilino, ou Locatário, era chamado de “alugador”. Os hoje chamados “locadores” eram denominados “senhorios”, ou “senhores das casas”. 

    A locação de casas é uma prática antiga. Nas notas de rodapé do Livro 4 já são noticiadas normas jurídicas do século XV: “O Al. de 11 de junho de 1644 impunha aos senhorios a obrigação de não levantarem os aluguéis das casas, depois da publicação da Lei das décimas. O Al. de 3 de julho de 1699 anulava o levantamento dos alugueres das casas que tinham feito os senhorios, pretextando o encargo do imposto de quatro e meio por cento, havia pouco criado.

        Usava-se, para marcar o aluguel por tempo certo, os dias santificados: “Porém as pessoas, que tiverem casas, e as alugarem a outrem per tempo certo, assim como até S. João, S. Miguel, Natal, ou outro tempo declarado pelas partes…” Se os senhores das casas quisessem que os alugadores ficassem nelas após passado o tempo convencionado, deveriam “requerer” trinta dias antes e os alugadores deveriam responder em três dias. Se não respondessem, teriam que pagar o aluguel de um ano. Se não houvesse o requerimento por parte do senhorio, o alugador poderia escolher sair da casa ou ficar e pagar o aluguel.

        Se o alugador (hoje inquilino, ou locatário) não pagasse o aluguel, o senhor da casa (hoje locador) não poderia penhorar, mas devia se dirigir ao Alcaide da Vila, ou do lugar, que faria a penhora sem autoridade de Justiça. Em nota de rodapé, cita-se Teixeira de Freitas, para dizer que, após a independência, a penhora tinha que ser por ordem judicial.

    Em casos de sublocação (“...se o senhor da casa não achar a pessoa, a que a alugou, e achar outrem nela”...) o senhor da casa podia cobrar os alugueres do ocupante da casa.

    O senhor da casa poderia lançar fora da casa o alugador em quatro casos: 1º - não pagamento da pensão (nome que se dava ao aluguel); 2º - “quando o alugador usa mal da casa, assim como danificando-a ou usando nela de alguns atos ilícitos e desonestos, ou danosos à casa”; 3º - “quando o senhor a quer renovar, ou reparar de adubios necessários, que se não poderão fazer convenientemente, morando o alugador nela…”; 4º - “quando o senhor da casa por algum caso, que de novo lhe sobreveio, e há mister para morar nela, ou para algum seu filho, filha, irmão ou irmã…”.  Em nota de rodapé se cita a obra de Silva Pereira (Repertório das Ordenações) para esclarecer que “A casa é danificada se o inquilino por si ou por outrem estabelece alguma oficina insalubre, ou criasse animais imundos ou daninhos”; o inquilino praticaria atos ilícitos e desonestos, ou danosos se empregasse a casa “em jogos, prostituição ou reuniões tumultuosas”. Em todos estes quatro casos, quem deitaria o alugador fora da casa era o Alcaide da Vila. Em nota de rodapé, Cândido Mendes de Almeida informa que este Alcaide da Vila, antes da Independência do Brasil, exercia as funções policiais e judiciais. O nome “Alcaide” é um resquício da dominação árabe na Península Ibérica e deriva de Cádi, que era autoridade que exercia as funções de Juiz entre os mouros, ou sarracenos. Em nota de rodapé, Cândido Mendes de Almeida informa que “adubios”era “tudo quando se faz necessário para conservação dos bens”. 

    O aluguel pressupunha pagamento, pois se fosse uso gratuito, seria comodato.

    Teixeira de Freitas (Consolidação das Leis Civis, art. 668, nota 4 - citada em nota de rodapé) diz que “as casas são alugadas quase sempre sem contrato por escrito, ‘ad libitum’ dos inquilinos". Interessante notar que, já no século XV, se alugavam roupas em Portugal: há menção no Livro 4 das Ordenações Filipinas de aluguel de vestidos e jóias, que podiam ser feitos na cidade de Lisboa.

    Não encontrei diferenciação, no Livro 4 das Ordenações Filipinas, entre aluguel e arrendamento. O arrendamento era uma outra forma de rendimento da propriedade. Quem arrendava um imóvel, na condição de dono, era denominado rendeiro. 

    Havia restrições sobre o arrendamento em se tratando de detentores de cargos estatais: “Provedor algum, nem Contador da Comarca, Juiz dos Órfãos, Tabelião do Judicial, Escrivão dos Órfãos, ou das Câmeras, nem outros Escrivães, de qualquer qualidade e de quaisquer Ofícios que sejam, nem Meirinhos, ou Alcaides possam arrendar alguma renda nossa (do Rei), nem de Fidalgo algum, ou de Senhor de Terras, que as de Nós (o Rei) tenha, nem de Comendador, nem de Prelado.” Os Ouvidores de Senhores de terras também não podiam arrendar. Neste ponto aparece, subliminarmente, o conceito de Ouvidor: eram os Juízes nomeados por Senhores de Terras. Os Juízes nomeados pelo Rei eram os Juízes de Fora. 

    Havia uma proibição específica quanto às rendas de detentores de certos cargos: Vedor da Fazenda e Escrivães dela, Contadores das Comarcas e dos Contos e seus Escrivães e outros Oficiais da Fazenda Real, não podiam arrendar suas rendas.

    Entre os bens de raiz (imóveis), herdades ou vinhas eram arrendadas. Ao se tratar delas, não se menciona a locação. Se o pagamento (renda)  ao dono da herdade (ou vinha) fosse em pão, vinho, azeite ou dinheiro, estaria caracterizado o arrendamento e não a parceria. A parceria já era um outro tipo de contrato.

     O arrendamento podia ser por mais de dez anos. Mas sendo o arrendamento por mais de dez anos, haveria transferência de domínio útil, de modo que, nesta situação (mais de dez anos), produziria o mesmo efeito que o aforamento. Entretanto, “Pelo Al. de 3 de novembro de 1757, por que (sic) arrendamentos de mais de dez anos não são aforamentos”, segundo nota de rodapé de Teixeira de Freitas.

    Não podia haver arrendamento de gados (vacas, cabras, porcos) ou colméias. Todavia, caso os herdeiros não pudessem partir a herança sem dano “assim como escravo, besta, moinho, lagar, ou outra coisa semelhante”, deviam arrendar e partir a renda entre si. 

    Como já dito acima, não há no Livro 4, nem nas notas de rodapé, explicação da diferença entre aluguer e arrendamento. Deixa-se de fornecer tal explicação, pois não é objetivo deste texto ensinar a diferença entre aluguer e arrendamento ou conceituá-los, mas sim noticiar o que consta no Livro 4 das Ordenações Filipinas e respectivas notas de rodapé. E delas não constando a diferença entre aluguer a arrendamento, foge ao escopo deste texto fornecê-la.

sábado, 7 de junho de 2025

Lesões enormes e enormíssimas (Ordenações Filipinas - Livro 4)

        Apesar do texto das Ordenações Filipinas não conter as expressões “enorme” e “enormíssima”, as notas de rodapé as mencionam. Isto significa que o que hoje chamamos “doutrina”, reconhecia tais gradações de lesão. Digo “hoje chamamos doutrina”, pois esta expressão, para fazer referência aos livros que discorrem sobre direito, parece-me que surgiu no século XX. Do teor das notas de rodapé das Ordenações, doutrina pareceu significar opções legislativas: “...e com elas se entenderá a doutrina da Ordenação do livro 4 título 44 § 1”; “A doutrina deste parágrafo está de acordo com a do parágrafo da Ordenação que desposou o rigor do Direito Romano…”  

         Um dos casos de lesão enorme - segundo os Doutores (era como eram chamados os doutrinadores nas notas de rodapé das Ordenações Filipinas) - ocorria quando alguma coisa fosse vendida pela metade do preço: “... E o preço pago ao vendedor se for achado que o vendedor foi enganado além da metade do justo preço” (texto da Ordenação). Esta lesão contratual, segundo a nota de rodapé, era uma lesão enorme. A “lesão enormíssima, segundo Corrêa Telles (Dig. Port. to. 1 art. 253) dá-se quando alguém recebe a terça parte do justo valor da coisa”. Em se tratando de lesão enormíssima, a prescrição era de 30 anos.

      Em casos práticos, são noticiadas situações em que os julgadores divergiram quanto a se tratar de lesão enorme ou enormíssima. Também houve discussão sobre a possibilidade de se alegar lesão enorme ou enormíssima nas transações. A propósito, o conceito de transação na nota de rodapé não diverge do sentido jurídico atual: segundo Barbosa (Comentários às Ordenações), citado por Cândido Mendes de Almeida nas notas de rodapé, a palavra transação “não se achava na Ordenação Manuelina, foi introduzida para pôr termo às questões dos Jurisconsultos”. Transação, segundo Teixeira de Freitas (nota 2 ao art. 359 da Consolidação das Leis Civis) é o “contrato de composição entre as partes para extinguirem obrigações litigiosas ou duvidosas”. Outra discussão que ocorria entre os Jurisconsultos era se poderia haver alegação de lesão enorme ou enormíssima  na compra e venda que se fizesse em hasta pública com as solenidades legais.

      Há extensas considerações nas notas de rodapé sobre a legalidade ou ilegalidade, moralidade ou imoralidade da cobrança de juros. E neste ponto também se lamenta que não caiba discussão sobre a possibilidade de lesão enorme ou enormíssima no contrato de juros, já que a Lei de 24 de outubro de 1832 não contemplava tal tipo de alegação. Sobre o tema “juros” farei uma postagem específica, pois são riquíssimas as discussões constantes nas notas de rodapé do Livro 4.

      Em outra nota se informa que a ação de lesão enormíssima (segundo Teixeira de Freitas em nota ao art. 859 da Consolidação das Leis Civis) é real. Mas também se admite ser pessoal, caso em que a prescrição seria de 15 e não de 30 anos.

    A ocorrência de lesões enormes ou enormíssimas também podia ser arguida quando das partilhas. 

     Nos Códigos Civis de 1916 e 2002 não se encontra nem a palavra enorme, nem enormíssima.

terça-feira, 3 de junho de 2025

COMPRA E VENDA 3 - VÍCIOS REDIBITÓRIOS (Ordenações Filipinas - Livro 4)

         




            Em algumas das aulas de latim que tive no Colégio Salesiano Itajaí (1970 e 1971), o professor explicou a necessidade de vírgula nas frases com o exemplo de uma profecia feita pelos oráculos aos soldados romanos, antes de irem à guerra: "Idis redibis non morieris in bello" (Irás voltarás não morrerás na guerra). Finda a guerra, ficava-se sabendo se a previsão fora acertada. Se o soldado sobrevivesse, a leitura seria essa: "Idis, redibis, non morieris in bello" (Irás, voltarás, não morrerás na guerra). Mas se o soldado morresse na guerra, a família era informada que a previsão também fora acertada: "Idis, redibis non, morieris in bello" (Irás, voltarás não, morrerás na guerra). "Redibis" se traduz por retornarás, ou voltarás. Quando estudei Direito Civil na FEPEVI, hoje UNIVALI, memorizei o significado de vício redibitório por causa da profecia da guerra. Redibitório é o que volta.

            As Ordenações Filipinas enumeram diversas situações em que a compra e venda podia ser desfeita por causa de vícios do bem objeto do contrato. Este desfazimento da compra tinha prazo e, segundo a doutrina da época, constante nas notas de rodapé do Livro 4, a prescrição aquisitiva era de dez anos entre presentes e de vinte entre ausentes. A prescrição até trinta anos "só cabe sendo a lesão enormíssima". Havia lesão enorme e lesão enormíssima.

            O comprador de casa, herdade ou qualquer outro bem de raiz (imóvel) só era obrigado a respeitar a locação ou arrendamento se fosse superior a dez anos. 

                 O preço injusto era causa de desfazimento da venda.

            Desembargos do Rei, da Rainha e do Príncipe não podiam ser vendidos nem comprados por pessoa alguma. E se o que comprar os ditos desembargos, ou os tomar em pagamento de qualquer coisa, que se possa dizer, que se lhe deve, for nosso Contador, Escrivão dos Contos, Tesoureiro, Almoxarife, Recebedor, Escrivão do Tesoureiro e Almoxarifado, ou outro algum oficial de nossa Fazenda, ou pessoa das que andam e servem nela na Corte, ou Corregedor, ou outro algum Oficial de Justiça ou outro Oficial nosso, de qualquer qualidade que seja, perca polo mesmo feito toda sua fazenda móvel e de raiz, a metade para o Hospital de todos os Santos da cidade de Lisboa, e a outra para quem o acusar, e haverá a pena crime, que houvermos por bem. Em nota de rodapé, consta: Desembargos nossos. Segundo Silva no com., pela expressão desembargos entendem-se ordens de pagamento. Vide também Arouca na l. Princeps 31 n. 17, e Sousa de Macedo - Dec. 94 n. 2. Por desembargos entendiam alguns, os diplomas ou títulos especiais, ou graças nos quais os Reis davam certas somas aos seus criados na Corte, quando se casavam. Moraes no Dicc. define: Alvará, despacho, ou cédula, porque se mandava pagar nos Contos ou Erário alguma soma devida ou de mercê. Desembargo quer dizer despacho. De desembargo provém a expressão - desembargadores, equivalente a Despachadores. Os Desembargadores do Paço eram outr’ora como os Ministros d’ Estado hoje, pois assim eram chamados porque despachavam com o Rei.

           Os casos de vícios redibitórios se iniciavam por escravos doentes, mas o tema escravidão será objeto de outras postagens. Quem tiver curiosidade, basta acessar o livro 4 na íntegra aqui e pesquisar a palavra "escravo"; se pesquisar "escrav" pegará variações do termo em mais pontos do livro 4.

                Há uma disposição genérica sobre vício redibitório: "E todas as coisas acima ditas se poderão enjeitar, não somente quando são havidas per título de compra, mas ainda se forem havidas per troca ou escambo, ou dadas em pagamento, ou por qualquer outro título, em que se traspasse o senhorio: mas não se poderão enjeitar, quando forem havidas por título de doação.

                E as coisas, que não são animadas, quer sejam móveis, quer de raiz, se poderão enjeitar por vícios, ou faltas, que tenham, assim como um livro comprado, no qual falta um caderno, ou folha em parte notável, ou que está de maneira, que se não possa ler, ou um Pomar, ou Horta, que naturalmente sem indústria dos homens produze plantas, ou ervas peçonhentas."

                   Nas notas de rodapé há interessante interpretação da norma jurídica: 

                    1) A nota se inicia referenciando a obra de Barbosa, e Silva, que comentaram o Livro 4 das Ordenações. Referencia também Silva Pereira, autor do Repertório das Ordenações (no caso, o tema está no to. 2 nota "e" à pag. 249). Os imóveis e inanimados, enjeitam-se dentro do ano pela ação quanti minoris.

                 2) Mas a interpretação de lei mais curiosa é a que autoriza o desfazimento da compra e venda no caso de haver fantasmas na casa comprada ou ela ter vizinhança ruim: "Silva Pereira no - Rep. contempla também nas casas, como vícios redibitórios os fantasmas e maus vizinhos."

                    A escritura de compra e venda já era mencionada nas Ordenações:  "Se algumas pessoas fizerem contrato de venda, ou de outra qualquer convença, e ficarem para fazer escritura desse contrato, antes que se a tal escritura faça, se pode arrepender  e arredar da convença o que havia de fazer a escritura. E isto haverá lugar, quando o contrato for tal, que segundo o Direito não possa valer sem escritura, e que a escritura seja de substância do contrato, assim como nos contratos, que se devem fazer e insinuar, e em contrato enfitêutico de coisa eclesiástica  e em outros, que segundo Direito são de semelhante qualidade e condição."

                            Em nota de rodapé, consta: 

  1)  Ainda nos contratos feitos com o Fisco tem lugar o arrependimento. Não obstante, o senhorio que aceita o prazo que o foreiro lhe oferece não pode arrepender-se (Silva Pereira - Rep. das Ords. t. 1 nota (a) à pag. 228).  

 2)  A escritura pública ou é da substância do contrato, ou necessária para a prova, como nos casos da Ord. do liv. 3 p. 59. Os casos em que, segundo nosso Direito, é da substância do contrato são os seguintes:

1°- Nas doações que devem ser insinuadas.

2°- Nos contratos de aforamento de bens eclesiásticos.

3°- Nos contratos esponsalícios (L. de 6 de Outubro de 1784 § 6, que é extensiva aos contratos de casamento em geral, puramente esponsalícios ou não).

4°- Nos hipotecários (L. de 20 de Junho de 1774 § 33, e L. n. 1274 - de 24 de Setembro de 1864 art. 4 §6).

5°- Nos de compra e venda de bens de raiz, cujo valor exceda de 200$000, sob pena de nulidade (L. n. 840 - de 15 de Setembro de 1855 art. 11, e Avs. n. 49 - de 22 de Janeiro, e n. 409 - de 16 de Dezembro de 1856, e n. 235 - de 30 de Julho de 1858).

6°- Nos contratos de compra e venda, e dação in solutum de escravos cujo valor ou preço exceda 200$000, qualquer que seja o lugar em que tais contratos se possam efetuar (L. n. 1114 - de 27 de Setembro de 1860 arts. 11 § 3, e 11§ 7, e D. n. 2699 - de 28 de Novembro do mesmo ano art. 3).

Estas disposições têm somente vigor na Corte e respectivo Município.

Nas Províncias rege outra legislação a este respeito; ainda que pelo D. n. 2833 - de 12 de Outubro de 1861 sobre a transferência de escravos e arrecadação de imposto da cisa, atualmente em todo o Brasil vigore aquela legislação (...).

7° - Nos contratos em que as partes expressamente convencionam fazer escritura, ou se posa presumir ser essa a sua vontade. 

 

3)  As doações que segundo a taxa da lei, devem ser insinuadas, posto que, ainda nestas circunstâncias, nem todos obrigam à escritura pública, como as da Ord. do liv. 3 t. 59 §11.

T. de Freitas na Consol. art. 413 diz o seguinte referindo-se a esta Ord.: 

«As doações entre parentes nos casos da Ord. do liv. 3 t. 59 devem ser insinuadas, porém a escritura pública não é da substância dela, ex vi da citada Ord. §11, e da segunda parte do § 21 que diz: 

«E quanto aos dotes, e quaisquer outras convenções, e prometimentos feitos nos casamentos, haverá lugar no que acima dizemos no § 11.»

Vide Silva Pereira - Rep. das Ords. to. 1 nota (c) à pag. 623, e Reynoso – Obs. 44. 

  4) T. de Freitas na Consol. art. 367 § 2 nota diz o seguinte: 

«Na prática reputa-se a escritura pública como substancial de todos os aforamentos. 

«Devo observar que a despeito da Ord. do liv. 4 t. 19 pr., muitos aforamentos de bens Eclesiásticos existem entre nós sem escritura pública, constando apenas de assentos lavrados nos livros. Para não fazer-se injustiças cumpre atender ao que sensatamente tem escrito Lobão - Dir. Emphy, nota ao § 67.»

Na nota ao art. 605 da mesma obra - Consol. diz que também se pode constituir aforamento por testamento do que dá ideia o § 8 da Ord. deste liv. t. 37.

Consulte-se também a última parte dessa nota sobre a natureza do contrato de aforamento ou enfitêutico. 

                A Consol. mencionada é a Consolidação das Leis Civis, da lavra de Teixeira de Freitas, que esteve em vigor de meados do século XIX até 1916. Em regra eram normas extraídas das Ordenações Filipinas. 




                

 

sexta-feira, 30 de maio de 2025

COMPRA E VENDA 2 (Ordenações Filipinas - Livro 4)

        


         Dando continuidade às postagens que narram resumidamente o Livro 4 das Ordenações Filipinas, prossigo ainda tratando da compra e venda. O íntegra do Livro 4, em pdf pesquisável, se encontra aqui. Deixo de citar o ponto em que se encontra o assunto, porque é suficiente pesquisar no texto integral do livro, para encontrar todo a regulamentação do tema e os comentários nas notas de rodapé.    

            Já nos primeiros parágrafos do tema "compra e venda", se menciona a palavra interesse, que, na época, era sinônimo de juros. Mas o tema "juros" é vasto no livro 4 das Ordenações Filipinas, e merecerá uma postagem específica. Sobre o uso da palavra interesse em lugar de juros, há uma obra muito interessante a respeito (HIRSCHMAN, Albert Olist. As Paixões e os Interesses: Argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo. Paz e Terra, 1979), mas que não faz uma abordagem luso-brasileira do tema, e sim norte-ocidental. Esta abordagem luso-brasileira é feita no livro 4 das Ordenações e a ela voltarei em outra postagem.

            Para que o contrato de compra e venda ficasse perfeito e a coisa passasse ao domínio do comprador, era indispensável a entrega ou tradição. Mas a entrega não se entendia feita sem a competente paga (é o que consta em nota de rodapé). 

                A sisa era o nome de um tributo. 

            Os bens objeto de compra e venda podiam ser móveis ou de raiz (os bens de raiz são hoje denominados de imóveis). 

                Em nota de rodapé é usada a palavra fiado (quem vende fiado fica sem ação real para reaver a coisa vendida).

                Em caso de controvérsia quanto à venda, o preço era depositado pelo Juiz ordinário do lugar, em mão de algum homem bom, fiel, leigo e abonado, morador do lugar. O Juiz dava pregões e colocava éditos no Pelourinho. As dívidas podiam ser embargadas. O livro quarto já contemplava a hipótese de o dono vender duas vezes a desvairadas pessoas (diversas pessoas) algum bem. Um dos documentos relativos à venda era a Nota do instrumento da venda.

                    Havia mercadorias objeto de venda que se havia de medir e gostar, ou pesar e gostar, assim como vinho, mel, azeite ou especiaria. E se ocorresse algum perigo antes que o comprador medisse e gostasse, ou pesasse e gostasse, o risco era do vendedor; se a mercadoria fosse medida e gostada, ou pesada e gostada, o risco era do comprador.

                       Também eram objeto de venda casa, ou herdade, ou qualquer outra coisa de raiz. Bens de raiz também podiam ser arrendados ou alugados.

                           Pode-se encontrar no Livro 4 das Ordenações Filipinas o exemplo do que seja uma ação (judicial) pessoal: assim como se um homem demandar a outro certo dinheiro, ou outra quantidade em que lhe fosse obrigado. Também já se menciona o trânsito em julgado: "passada em coisa julgada".

                            Se alguma coisa litigiosa fosse vendida, escaimbada, ou doada pelo réu a alguma pessoa poderosa por razão de sua dignidade, ou de algum Ofício, para criar temor no Juiz quanto ao processo, tal venda seria punida com multa.

                               O justo preço de certos bens foi estabelecido em norma jurídica: O D. de 17 de julho de 1778 estabeleceu como justo preço das fazendas frugíferas a soma dos rendimentos de vinte anos, tiradas as despesas pelos Decretos de 6 de março de 1769 e de 24 de janeiro de 1801 declarou-se que o preço certo do domínio direto dos prazos da Coroa era a importância de vinte pensões e três laudêmios; o valor do domínio útil apura-se por meio de avaliação dos bens como alodiais, abatido o valor do domínio direto.

                                Mesmo que compradores e vendedores convencionassem que o negócio seria feito em moeda de ouro, ou de prata, o vendedor era obrigado a receber moeda corrente lavrada pelo Rei reinante ou pelos Reis que o antecederam. Havia também disposição sobre o pagamento em moedas de cobre, variando o valor que admitia pagamento em moedas de cobre. Em nota de rodapé consta que o Al. de 19 de fevereiro de 1699 determinava que não se pudesse fazer pagamentos com dinheiro de cobre em maior quantia que um tostão. Se alguém enjeitasse a moeda verdadeira do Reino, se fosse peão, seria preso e açoitado publicamente, e sendo homem, que não caibam açoites, seja preso e degradado para a África per dois anos. Os pagamentos de compras de trigo de fora do Reino, vendendo-se pelas próprias pessoas, que o trouxeram, e os pagamentos de especiarias, que se comprarem na Casa da Índia, e os que se fizeram per letra de câmbios, seriam feitos como sempre se costumava fazer. Em nota de rodapé é dado o conceito de especiarias: todas as drogas aromáticas, como canela, cravo, noz moscada, cominhos, massas, pimenta, etc, que servem para adubar, ou as que servem na medicina.

                Só podia haver escambo se o objeto da troca fosse produzido pelos contratantes: Defendemos que nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, não dê trigo, cevada, azeite, vinho, nem outro qualquer mantimento, por outra coisa, que aquela pessoa, com quem contratar, não tiver de sua colheita, pelos muitos inconvenientes, que disso se seguem, salvo se ao tempo que contratarem, lhe entregar a outra coisa que pelo dito mantimento dá; porque não lha entregando logo ou não a tendo de sua novidade, havemos o tal contrato por nenhum.

                    Havia outros tipos de contrato em que a pena convencional poderia ser paga em dinheiro, ouro, prata, trigo, cevada, azeite, mel, ou outras coisas semelhantes.

                    Já vem daquele tempo a proibição de venda a descendentes: Por evitarmos muitos enganos e demandas, que se causam e podem causar das vendas, que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descendentes, determinamos que ninguém faça venda alguma a seu filho, ou neto, nem a outro descendente. Nem outrossim faça com os sobreditos trocas, que desigual seja, sem consentimento dos outros filhos, netos ou descendentes, que houverem de ser herdeiros do dito vendedor.

                  Há também menção à similitude entre alheação e alienação, em nota de rodapé: Emalheação, i. e., alheação ou alienação. Moraes no Dicc. diz que a alheação é vocábulo mais antigo e mais Português; alienação mais alatinado, e moderno


                            

                        


domingo, 18 de maio de 2025

Ordenaçoes Filipinas Livro 4 - Compra e Venda

         O livro 4 das Ordenações Filipinas trata de Direito Privado, nomenclatura que não é mencionada naquele texto. As Ordenações vigoraram no Brasil de 1500 a 1916. As Filipinas vigoraram de 1609 a 1916. Acontece que muitos dos temas nela regulados, permanecem até hoje na nossa legislação, ainda que em outras leis, estas já promulgadas após a independência. A rigor, dificilmente temos hoje leis vigentes que remontam a tempos anteriores à Proclamação da República.

        Já fiz apresentações na introdução ao tema. De qualquer sorte, a íntegra do Livro 4, em pdf pesquisável, pode ser encontrada aqui. Como se trata de arquivo pesquisável, deixarei de indicar o trecho em que o assunto tratado está nas Ordenações, já que bastará ao consulente interessado buscar a palavra no texto.

        O Livro 4 inicia disciplinando a compra e venda. O princípio básico da compra e venda constante do Livro 4 das Ordenações Filipinas e que aprendemos logo no início do estudo do tema nos cursos de Direito é que para a venda ser valiosa, será o preço certo, em que se o comprador e vendedor concordarem. O Código Civil em vigor apenas usou algumas palavras diferentes: Art. 482. A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço.

        As mercadorias exemplificadas como objeto das vendas, no texto das Ordenações, eram tonéis de vinho, ou de azeite, ou escravos, ou bestas. Os juros eram chamados de interesse. As vendas entre Mercadores estrangeiros poderiam ser feitas por Corretores. Já se usava o termo "Comarca". Em nota de rodapé, Cândido Mendes de Almeida cita Silva Pereira para esclarecer que a prescrição aquisitiva era de dez anos entre presentes e de vinte entre ausentes, no caso de demandas entre vendedores e compradores.

        O que chamamos hoje "bens imóveis" eram chamados "bens de raiz".