O Direito (leis, doutrina, jurisprudência, costumes) muda com passar do tempo e nas mudanças de espaço. Verdade que, se olharmos o livro 4 das Ordenações Filipinas e seu sistema jurídico ainda baseado no Direito Romano e no Direito Canônico, talvez as mudanças temporais não fossem tão perceptíveis. E os vínculos com o Direito Romano e com o Direito Canônico também tornariam os deslocamentos espaciais (pelo menos nos países predominantemente católicos) pouco significativos em termos de diferenças normativas.
Em se tratando de classificação dos bens, os 500 anos de vida do Brasil, viram poucas variações. Hoje temos a classificação dos bens no Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/01/2002 - artigos 79 e seguintes) que os divide, em resumo, entre móveis e imóveis. Mas no Livro 4 das Ordenações Filipinas a nomenclatura era um pouco diferente.
Os hoje chamados bens imóveis, eram chamados de bens de raiz (como os terrenos, as herdades, as casas, os prédios, as possessões ou campos de terras, vinhas, árvores, por exemplo). Já os bens móveis eram chamados do mesmo modo de hoje ( = móveis). Eram bens móveis, por exemplo, a mobília e os trastes, as benfeitorias feitas em bens de raiz. “Por bens entende-se os móveis, semoventes, e de raiz, e coisas, as ações, os direitos, etc”.
A expressão “bens de raiz” parece ter sido usada antes do século XIX, porque, nas notas de rodapé, que são da segunda metade do século XIX, já se usa a expressão “bens imóveis”.
As alienações dos bens de raiz “excedendo de duzentos mil réis demandam escritura pública”, diz-se em nota de rodapé.
Bens e fazenda eram coisas distintas, como se vê pela frase: “E dispondo o pai, ou mãe, em seu testamento de todos os seus bens e fazenda…” A fazenda podia ser “de bens móveis, ou dinheiro.” Mas há também um trecho em que se fala “fazenda e patrimônio.” Fazenda também tinha o significado atual, de órgão estatal responsável pelas finanças.
Além dos bens móveis e dos de raiz, havia os semoventes, como era o caso dos animais, por exemplo.
O dinheiro não era um bem móvel, nem de raiz.
Havia casos em que certos bens eram considerados (ou equiparados a) bens de raiz: Apólices da Dívida Pública, os Ofícios (ofícios eram os hoje chamados cargos públicos). Os ofícios eram equiparados a bens de raiz porque “deles se percebia frutos e rendimentos.”
Havia outras subclassificações de bens, tais como parafernais, alodiais, eclesiásticos, da Coroa do Reino ou reguengos (após a independência, estes se tornaram “bens ou próprios nacionais”, como, por exemplo, os terrenos de Marinha), bens profanos (que não eram eclesiásticos - “mandamos que nos bens Eclesiásticos se guarde o Direito Canônico, e nos bens profanos o Direito Civil”), bens dotais, bens castrenses (“adquiridos na guerra ou na Milícia” - o testamento do soldado podia ser feito “no chão com a espada, ou nos escudos, ou nas espadas com o sangue das feridas”), quase-castrenses (adquiridos “pela profissão das letras, e por doações régias”, “pelas Letras, como pela Magistratura, Advocacia ou Professorado, ou qualquer arte liberal ou Ofício público, ou pelo Clericato…”), foreiros, censíticos, profectícios (“os que o filho herda de seu pai ou mãe, ou avós em sucessão direta"), adventícios (“os adquiridos por esforço próprio, ou herdados por sucessão não direta”),
A relação com os bens podia ser de Senhorio proveitoso: “é o domínio útil contraposto ao direto”; e de Senhorio maior: “é o domínio eminente do Rei ou do Estado”.
A palavra bens aparece 1006 vezes no Livro 4 das Ordenações Filipinas, incluídas as notas de rodapé.
No livro 4 das Ordenações Filipinas há diversas situações em que a Escritura é da substância do contrato. Em nota de rodapé consta:
“A escritura pública ou é da substância do contrato, ou necessária para a prova, como nos casos da Ord. do liv. 3 p. 59.
Os casos em que, segundo nosso Direito, é da substância do contrato são os seguintes:
1°- Nas doações que devem ser insinuadas.
2°- Nos contratos de aforamento de bens eclesiásticos.
3°- Nos contratos esponsalícios (Lei de 6 de Outubro de 1784 § 6, que é extensiva aos contratos de casamento em geral, puramente esponsalícios ou não).
4°- Nos hipotecários (Lei de 20 de Junho de 1774 § 33, e Lei n. 1274 - de 24 de Setembro de 1864 art. 4 §6).
5°- Nos de compra e venda de bens de raiz, cujo valor exceda de 200$000, sob pena de nulidade (Lei n. 840 - de 15 de Setembro de 1855 art. 11, e Avs. n. 49 - de 22 de Janeiro, e n. 409 - de 16 de Dezembro de 1856, e n. 235 - de 30 de Julho de 1858).
6°- Nos contratos de compra e venda, e dação in solutum de escravos cujo valor ou preço exceda 200$000, qualquer que seja o lugar em que tais contratos se possam efetuar (Lei n. 1114 - de 27 de Setembro de 1860 arts. 11 § 3, e 11§ 7, e Decreto n. 2699 - de 28 de Novembro do mesmo ano art. 3).
Estas disposições têm somente vigor na Corte e respectivo Município.
Nas Províncias rege outra legislação a este respeito; ainda que pelo Decreto n. 2833 - de12 de Outubro de 1861 sobre a transferência de escravos e arrecadação de imposto da cisa, atualmente em todo o Brasil vigore aquela legislação; (...)
7° - Nos contratos em que as partes expressamente convencionam fazer escritura, ou se posa presumir ser essa a sua vontade.”
“Correa Telles Interp. § 75 referindo-se à Lei de 6 de Outubro de 1774 § 1 que exige escritura pública para os contratos esponsalícios diz, que a regra estabelecida no § da referida lei, oposta a todas as regras gerais do Direito, não deve ampliar-se fora do seu caso.
«Assim, continua o mesmo Jurista, também as Leis que exigem escritura, como substância do contratos não se estendem além dos seus casos (Ord. deste liv. t. 19 pr.) porque a regra geral é, que a escritura serve para prova, e não para a substância do contrato.»”
Os escravos eram considerados bens, mas estes serão objeto de outra postagem.
Como sempre esclareço, deixo aqui de mencionar o local do livro 4 em que constam os assuntos tratados em cada postagem, pois eles podem ser facilmente achados mediante “caça-palavras”, ou pesquisa em texto por palavras.