quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Os Juros nas Ordenações 2

JUROS E BÍBLIA

 


        Das notas de rodapé ao livro 4 das Ordenações Filipinas, infere-se que “Desde que o contrato do juro passou de usurário a lícito pela Lei de 24 de Outubro de 1832, caiu por terra” a punição respectiva (perda de “todo o principal, que deu por haver o dito ganho e acrescença, se a já tiver recebida ao tempo, que por nossa parte for demandado). “O crime de usura era mixti fori, e por isso caía também sob a jurisdição secular (Barbosa com. n. 1)". Ou seja, como a usura era também pecado, havia a discussão sobre a competência para o julgamento (jurisdição eclesiástica ou secular). Por haver esta simbiose entre pecado e crime é que se tornava cabível toda uma discussão e argumentação sobre os fundamentos religiosos da proibição do juro. É esta discussão que transcrevo a seguir, na qual se pode ver a resistência que a permissão de cobrança de juros encontrava no meio jurídico do Brasil do século XIX. Quando ainda havia a proibição dos juros, as provas de sua prática “não eram rigorosas; fundavam-se em presunções por causa do proceder oculto e fraudulento dos usurários (Barbosa no com. n 2).”

 

A usura por excelência se assim podemos qualificar o abuso do prêmio do dinheiro, verifica-se no contrato do mútuo, e era assim qualificada no Velho Testamento, legislação toda humanitária e benéfica que olha­va com menos rigor para o trabalhador (o tomador do empréstimo), do que as modernas que empenham todo o seu valimento em pró do capitalista (emprestor, ex­pressão antiga da Ord. Afensiva (sic), e que muito convém juvenescer).

Nos livros santos se conhece toda a elasticidade do mútuo com juros, e daí todas as prescrições para conter a avidez e dureza dos corações que se dedicam à profissão da usura:

No Êxodo cap. 22 v. 25.

«Se emprestares algum dinheiro aos do meu Povo, que são pobres entre vós, não o apertes como um exa­tor inexorável, nem o oprimas com usuras

No Deuteronômio cap. 23 ns. 19 e 20.

«Não emprestarás com usura a teu irmão nem di­nheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja;

«Mas somente ao estrangeiro. A teu irmão porém em­prestarás o que ele houver mister, sem daí tirares algum interesse; para que o Senhor teu Deus te aben­çoe em tudo o que fizeres na terra, em cuja posse hás de entrar.»

No Levítico cap. 25 v. 35, 36 e 37.

«Se teu irmão se achar muito pobre, e não puder já trabalhar de mãos; e se tu o receberes como um es­trangeiro, que veio de fora, e ele viver contigo.

«Não recebas usura dele, nem o executes por mais do que tu lhe deste. Teme a teu Deus, para que teu irmão possa viver em tua casa.

«Não lhe darás o teu dinheiro à usura, nem exigi­rás dele mais grão, do que o que tu lhe houveres dado.»

Nos Provérbios cap. 28 v. 8.

«Aqueles que amontoam riquezas por meio de usuras e interesses injustos, ajunta-as para o que hade (sic) ser liberal com os pobres.»

Ezequiel cap. 18 v. 8 e 9.

«Se não emprestar a juro, e não receber mais do que emprestou: ou apartar a sua mão da iniquidade, e fizer um verdadeiro juízo entre homem e homem.»

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«Este tal é justo, certissimamente viverá, diz o Senhor Deus.»

Nos Salmos, referindo-se aos costumes do homem justo, do cidadão do Céu, diz o Salmista no Salmo 14 v. 5.

«Não dá o seu dinheiro à usura; nem recebe dá­divas para oprimir o inocente. O que faz estas coisas não será jamais abalado.»

No Salmo 54, v. 11.

«Nas praças públicas não há senão usura, e engano.»

No Salmo 71 v. 13 e 14.

«Ele terá compaixão do pobre e necessitado; e salvará as almas dos pobres.»

«Ele resgatará as suas almas das usuras, e da inequidade; e o nome dos pobres terá honra diante dele.»

Tais são as doutrinas do Velho Testamento acerca da usura, que Bentham, a quem seguimos na lei de 1832, sustenta que é uma virtude.

Mas o legislador inspirado, Moisés, conhecia tanto a importância da usura, e querendo cada vez mais se­parar o Israelita dos povos estrangeiros idólatras, lhes impôs o seguinte preceito no Deuteronômio cap. 15 v. 6.

«Tu emprestarás a muitos povos, e tu de ninguém receberás empréstimos. Tu dominarás sobre muitas Nações, e a ti nenhum te dominará!»

Este preceito é ainda recomendado no cap. 28 v. 12 no fim.

«Tu emprestarás a muitas gentes, e tu de nenhuns receberás emprestado.»

E no versículo 15 diz:

«Porém se não quiseres ouvir a voz do Senhor teu Deus, e não guardares e praticares todas as suas or­denações, etc.: seguem-se diferentes castigos, e entre outros os dos vers. 43 e 44.

«O estrangeiro, que vive contigo, se elevará acima de ti, e far-se-á mais poderoso; e tu descerás e fi­carás abaixo dele.

«Ele te emprestará à usura, e tu não lhe empres­tarás. Ele estará na cabeceira, e tu nos pés.»

Destes preceitos têm usado tão bem os Israelitas, que pode-se dizer, são hoje os verdadeiros domina­dores da Terra.

No Novo Testamento é também a usura apreciada do seguinte modo:

Temos em primeiro lugar S. Lucas no seu Evangelho cap. 6 vers. 34 e 35:

«E se vós emprestardes àqueles de quem esperais receber: que merecimento é o que vós tereis? porque também os pecadores emprestam uns aos outros, para que se lhes faça outro tanto.

«Amai pois a vossos inimigos: fazei bem, e empres­tai, sem daí esperardes prêmio: e tereis muito avultada recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, que faz bem aos mesmos que lhe são ingratos e maus.»

Este último versículo que, traduzido por S. Jerôni­mo na Vulgata tornou-se muito conhecido pelo texto:

«Benefacite et mutuum date, nihilinde sperantes

Texto em que se apoiam os rigoristas em Teologia e Direito Canônico, mantendo a doutrina, de que sempre que se empresta com prêmio, há usura, isto é, o abuso desse comércio.

Entretanto existem outros textos, tanto no Evangelho de S. Lucas cap. 19 vers 23, como no de S. Matheus cap. 25 vers. 27, onde o ofício de Banqueiro, e a dação de dinheiro a prêmio parece autorizada pelo Salvador.

  Trata-se de um amo que deixou a vários servos certa quantidade de talentos para negociar. O último destes servos não só não negociou com o único talento que lhe foi deixado, como deixou-o sem render em algum Banco.

Eis corno se exprime o primeiro Evangelista no cap. 25 vers. 27:

«Devias logo dar o meu dinheiro aos Banqueiros (numullariis), e vindo eu teria recebido certamente com juro (com usura) o que era meu.»

E S. Lucas no Evang. cap. 19 vers. 23:

«Logo por que não meteste tu o meu dinheiro a Banco (mensam), para que quando viesse, o recebesse eu então com os seus lucros?»

Nas cidades Gregas ou Romanas havia de ordinário um banco ou uma mesa, onde mediante um privilégio da autoridade pública emprestava-se dinheiro com ágio (Saumaise-De trapezitico fænore).

Havia Bancos em Alexandria, em Damasco, nas duas Antioquias, em Tiro, Éfeso, Atenas, Corinto, etc.

Vide Mastrofini - Discussion sur l'usure de n. 71 a 101.

A doutrina media entre a inteira exclusão do ágio e a liberdade nestes contratos, seguiu a Igreja, mesmo em consideração à especialidade deste contrato.

Sobre esta matéria o mais moderno documento é a Encíclica-Vix pervenit, do Papa Bento XIV, cujas disposições mais importantes apontaremos adiante.

Para se poder apreciar, sem paixão, este problema, que ainda divide o mundo literário, jurídico e financeiro consulte-se Troplong - Du Prét, Gousset - Cod. Civil comentado em suas relações com a Teologia Moral, com. ao art. 905, Mastrofini-Discussão sobre a usura, Marin Darbel - A Usura: sua definição. Tri­pard - Moisés ou as leis fundamentais da Sociedade. A história, as ciências e a filosofia, segundo o Penta­teuco, Coquille - Os Legistas: sua influência política e religiosa art. usura pag. 434: e a obra - Política Cristã no art. Empréstimos a juros, e Mr. Ch. Perin ­- A usura e a Lei de 1807.

Este interessante trabalho, digno de ser lido e con­sulta-lo por todos os Brasileiros, veio dar grande real­ce ao nome já famoso do célebre Professor de Louvain.

Na grande questão da liberdade do ágio, sustenta­da por Miguel Chevalier em França com todo o pres­tígio do escritor, do Economista e do valido na Mo­narquia Napoleônica, entendeu o Governo Francês dever também consultar o grande, mas modesto Eco­nomista Belga.

O seu trabalho importantíssimo teve força para embaraçar a revogação de uma Lei que todos os Economistas da Escola Inglesa de Adam Smith e de J. Bentham reputam um absurdo: para estes somentea verdade verdadeira é a liberdade do ágio.

Consulte-se em pró da doutrina adversa: J. Ben­tham - Defesa da Usura, Garnier Pagés - Dicionário Político arts. lnterét, Turgot - Memória sobre os empréstimos de dinheiro, nas obras de J. Bentham t. 3 pag. 283, Coquetin et Guillaumin - Dicc de Eco­nomia Política, e nos artigos - Bancos e Interesse.

Duas obras existem em Português sob os títulos - Instituições de Economia Política, de § 1037 em diante, e Lições de Economia Política, por José Ferreira Borges 1834, e Bernardino J. da S. Carneiro liç. 83 (Coimbra 1850) em que as ideias de Bentham são defendidas.

(...)

Depois que os Imperadores Romanos se converteram ao Cristianismo, o empréstimo com o ágio foi regulado em diferentes épocas pelo Governo.

Constantino Magno limitou-o a 12 por cento, taxa que conservou Theodosio o Grande, não obstante a grande guerra que os Bispos e Teólogos faziam a esse contrato.

Justiniano fixou uma taxa mais moderada: 4 por cento quando o empréstimo era feito por pessoas ilustres, 8 entre comerciantes, 6 por outras pessoas, e 12 nos empréstimos a risco.

Somente Basílio o Macedônio proibiu esse contrato com o rigor dos Padres da Igreja, mas suas determinações não se puderam manter no reinado do seu filho Leão o Filósofo.

A questão do ágio é mais antiga do que se imagina; e tem sido um problema que nem todas as sociedades hão podido resolver.

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