Como já falei em postagem anterior, as notas de rodapé de Candido Mendes de Almeida no livro 4 das Ordenações Filipinas trazem uma interessantíssima história dos juros/usura, história essa que retrata o clima – pelo menos em alguns meios jurídicos – no Brasil do Século XIX, quanto à admissão legal da cobrança de juros. A história narrada remonta a Roma, razão pela qual postei trechos mencionados do Corpus Juris Civilis.
Os trechos foram extraídos de Cuerpo de Derecho Civil Romano, ed. Lex Nova, Valladolid, 2004, pp. 82 e 94, Tomo II.
Vejamos as notas e citações efetuadas por Cândido Mendes de Almeida.
Pereira e Sousa na sua obra - Classes dos crimes secc. 2 gen 2 class. 3 espécie 1 n. 4 §§ 1, 2 e 3, exprime-se por esta forma:
«Usura em geral significa todo o interesse que se tira do dinheiro que se empresta, seja legal ou ilícito. Mas ordinariamente a usura se toma em mau sentido, e pelo ganho excessivo que se tira do dinheiro, além do preço taxado pelas leis do país.
«A usura, convenção que se faz entre a precisão e a avareza, é um crime, porque é a infração da lei.
«Nos primeiros séculos de Roma, quando o luxo não havia ainda banido do seu seio a frugalidade, faziam-se os empréstimos de dinheiro com uma usura extremamente módica. Os seus habitantes não tinham ainda algum uso da navegação, em que somente se exercitaram no tempo da primeira guerra Púnica, da qual provém os ganhos frequentes e rápidos, que trazem consigo a importação e exportação das mercadorias.
«Em Atenas, cidade donde saiam e entravam muitos navios, e que tinha um extenso comércio marítimo, era regulada a usura, não pelas leis, mas pela vontade dos usurários.
«O centésimo dinheiro, que entre os Romanos era a mais forte e mordente usura, foi a menor entre os Atenienses.»
E no § 3 continuando diz:
«Os Romanos dividiam um capital em cem dinheiros; e toda a usura que era permitido estipular por esse capital era a centésima parte dele em cada mês, que doze vezes repetida produzia por ano doze dinheiros.
«Esta era a usura legal pela legislação das doze Tábuas; mas com o aumento do comércio cresceu a opulência do pequeno número e a indigência da maior parte, o que produziu as usuras excessivas.
«Para reprimi-las se promulgaram no ano de Roma 876 a lei Licinia, no de 396 a lei Duilia Mænia, no de 411 a lei Genucia, que proibiu inteiramente a usura.
«Mas isto não podia ser de longa duração; crescendo cada dia a corrupção dos costumes e o luxo, a usura excedeu todos os limites, e os usurários exigiam vinte e quatro, trinta e seis, quarenta e oito, e ainda mais por cento.»
Troplong no seu com. sobre o empréstimo - du Prét, no prefácio diz o seguinte:
«Não é somente de seita em seita que as opiniões se dividiram sobre o prêmio deste contrato. Entre os homens devotados às mesmas especulações e aos mesmos estudos o tempo produziu apreciações contraditórias.
«Os princípios de Economia de Aristóteles e do Catão (que considerava a usura um assassinato) sobre os produtos usurários diferem dos de Turgot. Cícero e Sêneca não julgou-os como Calvino, Dugald Stwart e os Filósofos Franceses do século 18. Os Teólogos e Canonistas de hoje não lhe votam tanta animosidade como os Henrique de Gand e os Soto.
«Enfim há uma singular afinidade, que sobre esta matéria impressiona o espírito.
«Toda a antiguidade fazia o comércio do dinheiro, e da usura. Os Gauleses colocavam sob a proteção do Deus Mercúrio e frutificação do dinheiro. Mercurium ad quœstus pecuniœ mercaturasque vim maximam habere.
«Os Gregos deram-se a esse comércio, quer no seu país, quer com os povos do Oriente. Roma encheu com eles a Itália e as Províncias.
«Os Judeus receberam do seu legislador a permissão de emprestar com prêmio às nações estrangeiras. Os Sírios, oriundos dos Fenícios e herdeiros de suas práticas comerciais, eram célebres por sua inclinação por este gênero de indústria.
«E todavia, a despeito deste acordo de quase todas as nações conhecidas, os Filósofos, os Economistas e os sábios da antiguidade, falavam das usuras com desprezo.
«A antiguidade, diz Niebuhr, condenava a usura com quase tanta aversão como a Igreja primitiva ou o Islamismo.
«Moisés vedou-as entre os Judeus como um ato que ofendia os sentimentos da humanidade, que entre si se devem os cidadãos. Veremos mais tarde as apreciações severas de Aristóteles, Catão, Cícero, Sêneca, Plutarco e Plínio.
«Na idade média aconteceu o contrário: as usuras foram por toda a parte proibidas, quer entre Cristãos, quer entre os próprios sectários de Maomé. Então os Economistas, os Políticos e os Filósofos esforçaram-se por provar que as usuras eram lícitas, e que úteis aos povos, nada tinham de oposto à moral e à probidade. Em todos os países tratou-se de emprestar com prêmio, iludindo-se a proibição.
«Dest'arte quando a lei autoriza as usuras, como na antiguidade, a economia política e a filosofia condenam-nas. Ao revés quando a lei condena-as, a economia política e filosofia autorizam-nas!
«Será uma contradição extravagante? Não, se queremos tomar as coisas pelo bom lado; e tudo se pode explicar pela exageração em que a seu turno caíram, a prática das usuras, e a sua proibição.»
No com. ao art. 1905 do Código Civil Francês explica-se o mesmo Jurisconsulto nestes termos:
«Entre os Romanos, a usura tinha o nome de fœnus. Assim como o preço acrescentado ao comodato o metamorfoseava em um contrato com outro nome, a locação; da mesma sorte, o preço introduzido no mutuum lhe fazia habitualmente deixar seu nome para tomar o de fœnus.
«Fœnus, na exata significação da palavra, é o capital engrossado com os seus interesses. E em verdade toma-se algumas vezes esta expressão para significar os juros ou prêmios. Mas, como demonstrou-o Saumaise recorrendo a autoridades que me parecem concludentes, o sentido próprio dessa expressão é: um capital produzindo interesses.
O verdadeiro nome do interesse ou juro entre os Romanos, era a usura. Mas a usura, não é propriamente falando, o fœnus; é o preço do fœnus. É o que fazia dizer a Tertuliano que a usura é fructus fœnoris; e eis porque os títulos do Digesto e do Código, intitulados de náutico fœnore, não trazem o título de nautica usura, conforme ao título precedente, intitulado de usuris.
«É que no empréstimo a risco, em que os interesses se pagam gradualmente em prazos certos, e em que o capital forma com os juros uma massa que se reembolsa de um golpe, a expressão fœnus era a própria.
Os Jurisconsultos tiveram em vista um capital engrossado com seus frutos.
«Os Gramáticos como Varrão, Festus, Nonius e Aulo Gellio, fizeram derivar fœnus de fætus, quase fætura. Saumaise pretende que esta etimologia é falsa e inepta. Não o acompanharei neste terreno, bastante perigoso para quem não possui sua erudição, nem sua confiança nas conjecturas gramaticais.
«Eu digo que o mutuum perdia o seu nome quando era acompanhado de estipulação dos juros. Todavia nota se que os textos algumas vezes dão ao fænus o nome de mutuum. É o nome do simples, dado ao composto.
«Como há pouco dizia, o juro era vulgarmente denominado usura pelos Romanos. Saumaise investigou a origem desta expressão: concorda em que os antigos autores Latinos empregavam a palavra usura por usus; mas pretende que, no empréstimo a juros, a usura tinha diferente valor.
«Empregado para expressar o dinheiro que paga o que toma o empréstimo, significa segundo Saumaise, o preço do uso e não o próprio uso. É por isso que rectura se toma pelo preço do transporte, latura por preço do fardo levado pelo homem de trabalho, mercatura por preço da mercadoria.
«Entre nós, a expressão usura é sempre empregada à má parte, e qualifica um delito. É pela expressão, interesse, prêmio ou juro, que reproduzimos a ideia que os Romanos ligavam à usura.
«O interesse se apresenta naturalmente ao espírito como um fruto do dinheiro.
Assim o definiram: accessionem crescentis in dies singulos pecuniæ. Isidoro disse: incrementum fænoris. Em verdade o interesse em cada dia aumentar o capital como um fruto que se adita anualmente à coisa fugífera. Scœvola e Africano o chamam a renda do dinheiro. Ulpiano acrescenta: usuræ vicem fructuum obtinent et merito non debent à fructibus separari. Segundo o Código Civil, o interesse é um fruto civil.
«Todavia debaixo de outra relação, o interesse é o preço: é o preço do que é entregue ao que toma emprestado: Eis por que Horacio diz:
Hic quinas capiti mercedes exsecat.
e por que também muitos escritores Latinos comparam o fœnus à locação.
«Não é a locação propriamente dita: difere desse contrato por caracteres essenciais, por isso que é um mutuum.
«Mas procura vantagens análogas: utiliza as coisas fungíveis, como a locação às outras. Esta confusão deriva da paridade que há entre o interesse (usura) e o preço do aluguel (merces).
«0 interesse é o preço da sorte principal transferida por determinado tempo ao tomador do empréstimo. Usuræ propter usum medii temporis perceptœ, disse Papiniano. Sabe-se que o que paga tarde julga-se pagar menos: minus solvit qui tardius solvit. Esta tardança concedida ao devedor que vai gozar da coisa emprestada, ao passo que o dono do dinheiro fica privado, constitui para o primeiro uma vantagem, e para o segundo uma perda, de que o interesse, a usura é o preço.»
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