segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Os Juros nas Ordenações 1

         A quantidade de temas interessantes no Livro 4 das Ordenações Filipinas é bastante grande. As normas sobre “juros” descrevem o que era permitido e o que era proibido no Brasil até o final do século XIX. Mas as notas de rodapé, com seus extensos comentários, trazem toda a história dos juros, desde o império romano, até o século XIX, além de fazerem interessante abordagem do tema sob o prisma da religião. Sim, até o final do Império, pode-me dizer que o Brasil era um Estado teocrático, pois não só havia a religião oficial do Estado, como também os cargos públicos eram privativos dos que seguiam aquela religião. E o Direito Canônico era subsidiário do Direito Estatal. Além de outras características. Talvez nunca tenhamos deixado de ser um Estado teocrático, ainda que, depois da Proclamação da República, somente de fato e não de direito.

        O que hoje chamamos de “juros”, já foram chamados de “interesses” e “usura”. Os juros, ainda que denominados “interesses” ou “usura”, sofriam rigorosa proibição. 

        O texto das Ordenações Filipinas é de 1603 e vigorou, no Brasil, formalmente, até 1916, apesar de, a partir de 1823, ter sofrido revogações parciais ao longo da centúria.

        Esta série de postagens que estou iniciando, sobre a história dos juros no Brasil até 1870, começa pela transcrição do trecho das Ordenações Filipinas que trata do tema. No século XVII, os juros eram chamados de usura e havia sérias restrições à sua cobrança e  pesadas punições.

        Um dos fundamentos da proibição da usura era o Direito Canônico.

        Havia exceções à proibição da cobrança da usura. Muitas vezes estas exceções legais era uma cobrança disfarçada de juros.

        Raiz ou bens de raiz era como se chamavam os bens imóveis nas Ordenações.

        As Ordenações permitiam o lucro nas operações de câmbio.

        Ainda que houvesse proibições e exceções em relação à usura, sempre se descobriam maneiras de burlar a lei e estas burlas são expressamente mencionadas no texto das Ordenações. Algumas destas burlas eram punidas com degredo para a África.

        Vamos ao texto das Ordenações. As interessantíssimas notas de rodapé serão publicadas nas próximas postagens.

 

 

TÍTULO LXVII.

 

Dos contratos usurários.

 

Nenhuma pessoa, de qualquer estado e condição que seja, dê ou receba dinheiro, prata, ouro, ou qualquer outra quantidade pesada, medida, ou contada à usura, por que possa haver, ou dar alguma vantagem, assim per via de empréstimo, como de qualquer outro contrato, de qualquer qualidade, natureza e condição que seja, e de qualquer nome que possa ser chamado. 

E o que o contrário fizer, e houver de receber ganho algum do dito contrato, perca todo o principal, que deu por haver o dito ganho e acrescença, se a já tiver recebida ao tempo, que por nossa parte for demandado, e tudo em dobro para a Coroa de nossos Reinos, e mais será degradado dois anos para África, e isto pela primeira vez que for compreendido, e lhe for provado; e pela se­gunda vez lhe sejam dobradas todas as ditas penas, assim cíveis, como crimes: e pola terceira vez lhe sejam isso mesmo tresdobradas as ditas penas.

E o que houver de dar o dito ganho, perca outro tanto, como foi o principal, que recebeu, e mais não. E se o devedor tiver já paga alguma crescença, ser-lhe-á descontada do que havia de pagar, con­vêm a saber, do outro tanto, como o principal, e tudo para a Coroa de nossos Reinos, a qual pena haverá, cada vez que nisso for compreendido, e lhe for provado.

 

                                                        1. Posto que as usuras sejam geralmente reprovadas e defesas, em alguns casos po­rém, assim per Direito Canônico, como Civil é a usura permitida e lícita; assim como se fosse por alguém prometido a um homem algum dote, casando com alguma mulher, e lhe não fosse logo pago aquilo, que lhe assim fosse prometido, sendo-lhe apenhada alguma coisa por isso, com tal convença, que o que casasse, pudesse ha­ver todos os frutos e novos da coisa apenhada, até lhe ser cumpridamente pago todo o principal. Em este caso poderá ele haver os frutos e novos da coisa apenhada em salvo, até que seja pago do principal, que lhe foi prometido em casamento, sem descontar do principal coisa alguma.

E isto haverá lugar, enquanto durar o casamento, e o marido mantiver a mulher segundo o estado e usança de terra; porque apartado o Matrimônio por morte de cada um deles, ou por qualquer outra maneira, daí em diante não poderá mais haver em salvo a renda da coisa apenhada, sem descontar do principal. E em outra maneira, todo o ganho, que se daí levasse sem desconto, seria usura.

 

                                                2. E se fosse vendida alguma raiz  por certo preço, e no contrato da venda fosse feita avença, que tornando o vendedor o preço ao comprador até certo tempo, ou quando quisesse, fosse a venda desfeita, e tornada a coisa ao vendedor, poderá o comprador licitamente haver os frutos e rendas da raiz assim vendida, depois que houver a posse dela per virtude da dita venda, em quanto não for a venda desfeita.

E isto haverá lugar, quando a raiz for vendida por preço razoado, pouco mais ou menos do justo preço. Porque, se o preço fosse muito pequeno, a pouquidade dele com a dita avença fariam o contrato ser usurário, como mais declaradamente dis­semos no Título 4: Da venda de bens de raiz, feita com condição, que tornando-­se, etc.

 

3. E se algum comprasse alguma raiz por preço certo, o qual logo pagasse, e não fosse entregue da raiz comprada, esperando de a receber logo, poderá em todo o tempo demandar ao vendedor todos os frutos e novos e rendas, que ele houve, ou que por sua culpa o comprador deixou de receber da raiz, que assim vendeu, de que recebeu o preço, e lha não entregou.

E bem assim dizemos no comprador, que recebeu a coisa comprada, e não pagou o preço, porque a comprou; porque em todo o tempo lhe poderá o vendedor demandar o preço principal, e mais a justa valia dos frutos que recebeu, ou poderá receber da dita raiz, depois que lha comprou, e foi dela entregue, e não pagou o preço ao ven­dedor.

 

4. E se o que trouxer alguma possessão por certo foro, ou prazo de algum senho­rio, a apenhasse ao dito senhorio por dívida alguma, sob tal condição, que o senhorio houvesse em salvo os frutos e rendas dela, até ser pago da dívida, em este caso poderá o senhorio haver as ditas rendas e novos em salvo, até ser pago da dívida, sem descontar dela coisa alguma; porque em quanto assim houver os frutos e rendas do dito foro, ou prazo não haverá a pensão, que lhe é devida em cada um ano, por virtude do contrato do aforamento, ou em­prazamento.

E sendo feito semelhante apenhamento entre outras pessoas, que não sejam o fo­reiro e o senhorio, tal contrato de ape­nhamento feito com cláusula, que o credor haja em salvo as rendas e frutos da coisa apenhada, até ser pago de sua dívida, será usurário, e haverão os contraentes as penas de usurários conteúdas neste título.

 

5. Declaramos ser lícito ganho de dinhei­ro, ou quantidade em todo o caso de câmbio de um Reino, ou lugar para outro, e bem assim ser lícito e verdadeiro o câmbio, quando logo se dá maior quantidade em um lugar, por lhe darem e pagarem em outro lugar mais pequena. E isto é assim permitido per Direito pelas des­pesas; que os Mercadores estantes, que recebem a maior quantia, fazem em manterem seus câmbios nas Cidades e Vilas, onde estão.

 

6. E dando-se primeiro alguma quanti­dade menor, por receber ao depois maior, ainda que o que dá a menor quantidade, receba em si todo o perigo, que por qual­quer maneira possa acontecer de um Reino, ou lugar para outro, não deixará por isso esse contrato ser usurário. E por tanto defendemos, que se não façam tais contratos, e quem os fizer, incorrerá nas penas de usurário.

 

7. Mandamos que as pessoas, que derem dinheiro a câmbio, ou o pagarem, não façam diferença de o dar, ou pagar em dinheiro de contado, a o dar e pagar por letras, ou livrança, levando mais interesse de dinhei­ro de contado, do que a tal tempo se cambiava, e corria na Praça comumente por livrança; e o que o contrário fizer, e der dinheiro de contado a maior preço, do que correr e valer na Praça em livrança, perca o dinheiro; e a pessoa, que o tomar, ou re­ceber, será obrigado de o fazer saber às Jus­tiças do lugar, aonde o tal caso acontecer, dentro de dez dias, e não o fazendo, incor­rerá em pena de perder outro tanto dinheiro como o que assim tomou e recebeu. E o Corretor, que o tal câmbio fizer, pagará por cada vez cem cruzados, das quais penas serão a metade para quem os acusar, e a outra para os Cativos.

               

8. Por quanto somos informado, que se fazem muitos contratos ilícitos entre Mercadores e outras pessoas, os quais por en­cobrirem as usuras, vendem mercadorias e coisas fiadas a pessoas necessitadas, que não são Mercadores, nem tratantes, para nelas haverem de tratar e ganhar, e que os compradores lhas tornam logo dar e vender por muito menos, do que as compram, por lhes darem o dito dinheiro para suprimento de suas necessidades, ou as vendem a ou­tros por muito menos preço, do que as compram, por lhes darem logo o dinheiro, de maneira que não somente recebem dano no preço, em que as compram fiadas, mas ainda na venda delas: E além disso ficam suas pessoas obrigadas a pagar o primeiro preço, por que lhe foram vendidas, e por não poderem pagar nos tempos limitados em seus contratos, fazem outras novas obri­gações, confessando a dívida com interesses, e fazendo dos ditos interesses dívida prin­cipal, de modo que de ano em ano e de feira em feira se vão embaraçando nas ditas dívidas e interesses delas: mandamos que nenhum Mercador, nem pessoa outra venda mercadorias e coisas fiadas, por si, ou por outrem, a pessoas, que  notoriamente for sabido, que nelas não hão de tratar, nem faça, nem use dos ditos contratos.

E o que o contrário fizer, perca por isso a ação, que por virtude do contrato podia ter para demandar o preço das ditas merca­dorias ao comprador, ou a seu fiador. E o comprador e seu fiador não ficarão obrigados a pagar coisa alguma por razão dos tais contratos.

E além disso o que der, ou vender as tais mercadorias per cada uma das ditas manei­ras, será degradado per dois anos para África, e pagará cinquenta cruzados, ame­tade para os Cativos, e a outra para quem o acusar. E isto não haverá lugar naquelas mercadorias, que cada um houver mister para sua casa; o que se verá pela qualidade das pessoas e quantidade das mercadorias, e pelo tempo em que lhas venderem.

E para prova dos tais contratos e traspas­sas, bastará venderem as ditas mercadorias e coisas às pessoas que notoriamente nelas não costumam tratar, não sendo as que houverem mister para a sua despe­sa. E sendo caso, que por defraudar esta Lei, ou a prova, que por ela  havemos por bastante, se façam assinados, ou escrituras das dívidas, confessando as pessoas, que as fizerem, que receberam as quantias delas em dinheiro, sem tratarem das ditas merca­dorias, se o Tabelião não afirmar, que v iu   contar e receber o dinheiro à feitura da escritura perante as testemunhas dela, não poderão os ditos Mercadores pelos tais as­sinados e escrituras receber, nem haver o dito dinheiro, sem provarem por testemunhas dignas de fé, como realmente viram receber as ditas pessoas o dinheiro conteúdo nos ditos assinados e escrituras.

 

9. E havendo alguns casos além dos aci­ma ditos, em que possa haver dúvida, se são usurários, ou se se pode per Direito levar usura, mandamos que se guarde sobre isso o que for achado per Direito Canônico. Porque, pois é coisa, que traz pecado e carrego de consciência, convêm acerca dis­so seguirmos e guardarmos o Direito Canônico, e determinações da Santa Madre Igreja.

 

10. E para que os que fizerem contratos usurários, possam ser punidos, e mais facil­mente se possam provar, queremos que se algum dos sobreditos, que tal contrato fez, o descobrir, a Nós, ou a nossas Justiças, an­tes que cada um deles por isso seja acu­sado, ou antes de per Nós ser feita mercê a alguma pessoa, de lhe perdoarmos todas as penas desta Ordenação, e que não incorra, em pena alguma: com tanto que no tempo, que per Nós ou per nossas Justiças lhe for assinado, prove ser o contrato usurário. E posto que o não prove, a confissão que de si mesmo fez, dizendo, que cometera com a outra parte contrária o dito contrato, não lhe prejudicará. Porém a parte contrária lhe poderá demandar sua injúria.

 

 

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