quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Quando a lei permitiu cobrança de juros no Brasil

 

        A questão da cobrança dos juros parece ter despertado infindáveis discussões no Brasil  do século XIX. Talvez pela expansão do capitalismo (pós renascimento), talvez pela expansão do protestantismo, talvez pela crescente liberdade religiosa no mundo. Pelo texto das extensas notas de rodapé, a liberação da cobrança dos juros havia recém chegado ao Brasil  com a independência. Há um ensaio interessante, focado não no Brasil, mas no hemisfério norte ocidental, que trata do desenvolvimento do capitalismo pós idade média (HIRSCHMAN, Albert O.  As Paixões e os Interesses – Argumentos Políticos a favor do Capitalismo antes de seu triunfo. Tradução de Lucia Campello. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1979). Este avanço do capitalismo pode ter impulsionado a permissão da cobrança de juros no Brasil, logo após a independência.

        Este impulso na cobrança de juros e a contrariedade que a permissão legal causou em alguns juristas, é muito bem retratada nas notas de rodapé de Candido Mendes de Almeida. Passemos à primeira das interessantes notas de rodapé de Cândico Mendes de Almeida, no livro 4 das Ordenações Filipinas. Antes de transcrevê-la, noto que ele cita uma lei de 24 de outubro der 1832. Há pelo menos duas leis desta data: uma é a Lei Orçamentária (interessantíssima, mas não é a que Candido se refere). A Lei objeto de crítica é a que permite a cobrança de juros, que se encontra aqui, mas que transcrevo na íntegra, apesar de parte dela ser transcrita na nota de rodapé:

LEI DE 24 DE OUTUBRO DE 1832.             

Sobre o juro ou premio de dinheiro, de qualquer espécie. 

     A Regência, em Nome do Imperador do Senhor D. Pedro II, Faz saber a todos os súbditos do Império, que a Assembleia Geral decretou, e Ella Sancionou a Lei seguinte: 

     Art. 1º O juro ou premio de dinheiro, de qualquer especie, será aquelle que as partes convencionarem. 

     Art. 2º Para prova desta convenção é necessaria escriptura publica, ou particular, não bastando nunca a simples prova testemunhal. 

     Art. 3º Quando alguem fôr condemnado em Juizo a pagar juros que não fossem taxados por convenção, contar-se-hão a 6% ao anno. 

     Art. 4º Ficam revogadas as Leis e disposições em contrario. 

     Manda por tanto a todas as Autoridades, a quem o conhecimento, a execução da referida lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios da Justiça, a faça cumprir, publicar e correr. 

      Dada no Palacio do Rio de Janeiro em vinte e quatro dias do mez de Outubro de mil oitocentos trinta e dous, undecimo da Independencia e do Imperio. 

FRANCISCO DE LIMA E SILVA

JOSÉ DA COSTA CARVALHO

JOÃO BRAULIO MONIZ 

Este texto não substitui o publicado na CLIBR, de 1832 

     Honorio Hermeto Carneiro Leão 

     Carta de Lei pela qual Vossa Magestade Imperial manda executar o Decreto da Assembléa Geral, que Houve por bem Sanccionar, declarando a maneira por que as partes poderão convencionar o premio ou juro de dinheiro de qualquer especie, na fórma acima declarada. 

Para Vossa Magestade Imperial ver.

José Tiburcio Carneiro de Campos a fez. 

     Honorio Hermeto Carneiro Leão

      Registrada nesta Secretaria de Estado dos Negocios da Justiça a fls. 104 do Livro 1º de Leis. Rio de Janeiro em 9 de Novembro de 1832. - João Caetano de Almeida França.

      Publicada na Secretaria de Estado dos Negocios da Justiça, e sellada na Chancellaria do Imperio em 9 de Novembro de 1832.

 João Carneiro de Campos

 

        A cobrança de juros e polêmicas a respeito do continente e do conteúdo, atravessaram a República. Tanto é que a Constituição de 5 de outubro de 1988 limitou, no texto original, a cobrança de juros a 12 por cento ao ano (art. 192, § 3º), o dobro da lei de 1832. Mas este limitação durou até 29 de maio de 2003, quando foi totalmente revogada a norma constitucional que limitava os juros, pela EC 40

        Passemos à primeira das notas de rodapé de Candido Mendes de Almeida:

Contratos usurários.

Estes contratos, além de reprovados pela opinião, a moral e religião no nosso País, eram outr’ora consi­derados criminosos pela Lei.

Mas as doutrinas de Jeremias Bentham (Defesa da usura) e de outros Economistas da mesma escola, pro­pagadas entre nós, fizeram com que o usuário passasse de delinquente, a homem útil e até virtuoso.

Por esta causa no açodamento de reformas com que encetamos os trabalhos legislativos do nosso Parlamento inauguramos essa reforma, primeiro que nenhuma nação civilizada da Terra, promulgamos a Lei de 24 de Ou­tubro de 1832, i. e., realizamos no nosso País, a dou­trina e opiniões defendidas por Bentham, e reprovadas pela Religião que seguimos, e que na Constituição Política do Império, se diz ser a Religião do Estado.

Eis as disposições desta Lei que faz época no Brasil pelos desastres que têm causado à fortuna pública e privada:

« art. 1. O juro ou prêmio de dinheiro, de qualquer espécie, será aquele que as partes convencionarem.

«art. 2. Para prova desta convenção é necessária escritura pública ou particular, não bastando nunca a simples prova testemunhal.

« art. 3. Quando alguém for condenado em Juízo a pagar os juros que não fossem taxadas por convenção, contar-se-ão a seis por cento ao ano

Parece que na época, esta Lei passou sem relutância, mas os seus deploráveis efeitos foram logo sentidos, de sorte que em 1843 o deputado Rebouças, com uma coragem que se não pode assaz elogiar, reclamou a sua revogação.

Dizemos coragem, por que a doutrina contrária conta inúmeros partidistas nas classes letradas, e em nossas Faculdades de Direito, onde a inocência e a virtude da usura são proclamadas como verdade inconcussa.

O mesmo Deputado Rebouças nas suas Observações ao art. 391 nota da Consolidação, faz ainda a seguinte reclamação contra a doutrina dessa Lei:

«Intolerável é, porém, que os contratos desses juros quando enorme ou enormissimamente lesivos como quaisquer outros contratos feneratícios, não ficassem sujeitos à ação constante do § 6 e do final do tit. 13 da Ord. liv. 4; pois que nem a mesma Lei de 24 de Outubro de 1832, nem alguma outra excetua.

«Resultando de tão absurda prática e inteligência a ruína dos mutuários de dinheiro a prêmio ou juro absolutamente superior a todo o lucro possível do mesmo dinheiro; com quanto muito bem empregado em qualquer indústria rural ou fabril.»

Em verdade depois de uma tal Legislação parece inútil condenar-se a lesão enorme e enormíssima em outros contratos, quando neste são tais lesões santificadas.

E neste sentido poderíamos fazer outras ampliações, em que a imprevidência do Legislador, ou sua injustiça não podem ser defendidas.

Vide Ord. deste liv. t. 50, e nota (3) a respectiva rubrica.

Consulte-se Barbosa com., Cardozo – Praxis vb. usura,  Corrêa Telles - Dig. Port. to. 1 n. 269, e to. 3 de ns. 1138 a 1161, Coelho da Rocha §§ 779 e 780, T. de Freitas - Consol. do art. 361 usque 365, e Ramos - Apont. n. 455 e seguintes.

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