sábado, 20 de fevereiro de 2010

Cirne Lima e o Direito Administrativo


Recentemente saiu mais uma edição da obra "Princípios de Direito Administrativo", de Ruy Cirne Lima. O livro estuda o Direito Administrativo Brasileiro sob bases legais e doutrinárias.
Mas são bases legais e doutrinárias buscadas ao longo do tempo, buscando as influências da história político-jurídica brasileira. Ao contrário do comum dos autores brasileiros de Direito Administrativo, que o estudam como se os fatos e normas que regulam nossa Administração Pública fossem um mero prolongamento da história francesa, ou quiçá da norte-americana, Cirne Lima constroi, discorre e descreve o Direito Administrativo que foi plasmado pela nossa história. Suas citações são de obras escritas desde a colônia, passando pelo império; são de leis e atos que foram surgindo e gerando outros, até chegarmos no que temos hoje.
Vejamos alguns trechos (páginas 32-33 e 76-77):
(...)
Produziu resultados semelhantes o provincialismo implantado pelo Ato Adicional. Segundo tradição corrente, Bernardo de Vasconcelos, ao entregar à Câmara o projeto do Ato Adicional, de que fora relator, em uma frase lhe teria resumido as consequências: - «Entrego-lhes, haveria dito, o Código da Anarquia».

Nessa linha de menor resistência - o enfraquecimento da administração pública - posta a descoberto pelas duas experiências malogradas, revela-se, contudo, uma solução empírica para o problema. Diminuído o poder, enfraquecida a administração, avultam e se fortalecem as liberdades públicas.

Para fundamento dessa solução de acaso, procura-se logo, o apoio de uma fórmula de liberdade democrática. Essa fórmula é o princípio da igualdade perante a lei.

Enérgica, mas baldadamente lhe impugnam o cabimento. «A igualdade - clama Rêgo Barros - não é decepar tudo o que se ergue mais alto, como o romano que cortava a cabeça das papoulas; isto não é igualdade, é fúria de abater».

A fórmula, porém, subsiste e por ela é que se caracteriza a administração pública do Império: - equipara-se o poder ao cidadão, ao simples particular, - «a pretexto de que podem dar abusos».

Tal o pensamento dominante em todas as secções do Conselho de Estado o qual, a partir de 1842, era de seu restabelecimento, preside d'alto à vida administrativa do país.

Assim é que, embora tenhamos no Império uma administração pública normalmente exercida por autoridades permanentes e organizadas, não possuímos, contudo, igualmente desenvolvido, um Direito Administrativo.

Rege-se a administração pública pelo direito privado, excetuado o Contencioso Administrativo que meramente o aplica. Fora do direito privado, tudo se obscurece e confunde: - é o caos. Pode dizer-se, de resto, que essa é a expressão consagrada para caracterizar esse período de nossa administração: «administração no caos», chama-lhe o Visconde do Uruguai; «caos, administrativo», uma voz lhe chama, dentro do próprio Conselho de Estado.

Traço de nossa administração pública sob o Império é, pois, o que poderíamos denominar o privatismo, quer dizer, a subordinação da autoridade pública aos princípios e regras do direito privado.

8. A República, proclamada a 15 de novembro de 1889 e plasmada juridicamente na Constituição de 24 de fevereiro de 1891, transforma as antigas províncias em Estados; institui apenas três poderes, - Legislativo, Executivo e Judiciário; suprime a jurisdição administrativa do Conselho de Estado. Um presidente, eleito pelo povo, passa a exercer o Poder Executivo. Duas Câmaras, de formação e duração diferentes, fazem as leis. Duas jurisdições, a federal e a estadual, distribuem a justiça.

Larga e fecunda é a obra dos administradores republicanos. Eles empreendem e realizam a reconstrução do país. Adquire, por isso mesmo, a administração brasileira um sentido novo: flexibiliza-se, expande-se, move-se, vive. Não mais a contêm, agora, os quadros rígidos do direito privado.

Mostram-se, entretanto, os nossos doutores tardos em classificar-lhe os progressos sob a rubrica do Direito Administrativo. Escassa ou nenhuma é a atenção concedida a êsse ramo do direito, como disciplina autônoma e sistemàticamente organizada.

Reside a causa dessa indiferença pelo Direito Administrativo na própria base, sobre que se fêz assentar o nosso direito público. Foram as instituições dos Estados Unidos da América e os princípios da «common law» tomados para fundamento do nosso regime jurídico incipiente.

Estava, porém, o fundamento em contradição com o regime. Neste se estabelecia constitucionalmente a partição do direito objetivo em direito civil, comercial, criminal e processual (art. 34, nº 23, Const. de 1891). Ora, a «common law», oposta aos «statutes», abrange, no conceito norte-americano, os princípios que regem assim de uma parte a justiça repressiva, como, de outra, a direção dos negócios públicos e, de outra ainda, a conservação do interesse privado, a regulamentação das instituições domésticas, e a aquisição, fiscalização e transferência da propriedade; toca destarte todos os ramos da Ciência do Direito.

O resultado dessa contradição é a incerteza das categorias jurídicas no nosso Direito Administrativo: - é o desconhecimento de pessoas administrativas, fora, da União, dos Estados e dos Municípios; é o desconhecimento dos limites do domínio público, além dos que lhe assinala a propriedade da União, dos Estados ou dos Municípios; é o desconhecimento da doutrina dos atos administrativos, acima das prescrições do direito privado.

Traço característico dêsse momento histórico é, destarte, o exotismo, mais político do que jurídico, do qual decorre, paradoxalmente, em contraste com o largo desenvolvimento material do Direito Administrativo, o desconhecimento formal deste.

9. Na Constituição de 16 de julho de 1934 empreende-se a atualização do aparelho governamental do país, de acordo com os dados da tradição republicana. São mantidos os três poderes fundamentais - Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário. Perdura a dualidade das jurisdições, federal e estadual. Dá-se expressão constitucional à parte, porém, às funções de coordenação e de cooperação, ínsitas já na antiga organização governativa. Faz-se do Senado o órgão de coordenação dos poderes constitucionais; definem-se o Ministério Público...

(...)
Mais adiante, ao falar do domínio público:

Assim, também, incorporada ao, patrimônio administrativo e tornada bem de uso especial será a propriedade particular, que fôr usada pelas autoridades competentes, até onde o bem público o exigir em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina (art. 591, Cód. Civ.).

Aplicações dêste princípio se encontram já, de resto, no artigo 3, do Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, no qual se declara que o registro no cartório Imobiliário dos documentos relativos ao loteamento de terrenos, destinados à venda em prestações, «torna inalienáveis por qualquer título, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e planta»,-como, por' igual no artigo 19, I, b, do Código do Ar (Decreto-Lei nº 483, de 8 de junho de 1938), segundo o qual «se consideram aeronaves públicas as utilizadas pelo Estado em serviço público».

Devemos ampliar, portanto, o nosso primitivo conceito a êsse propósito. Não rejeitaremos, porém, a classificação do Código Civil nessa matéria. O Código Civil nessa secção ocupa-se dos bens, considerando-os relativamente a seus proprietários; fiel a êsse critério geral, a sua classificação se restringe aos bens públicos, isto é, aos de propriedade das pessoas administrativas. Pensamos nós que nessas mesmas classes, perfeitamente nítidas e exatas" cabem ainda outros bens que não pertencem a tais proprietários? Não diz o Código o contrário.

Podemos dizer conseqüêntemente, sem ofensa ao Código, que formam o domínio público e o patrimônio administrativo todos os bens, pertençam a quem pertencerem, que participam da atividade administrativa e se acham, por isso mesmo, vinculados aos fins desta.


5. A relação jurídica, na qual os bens do domínio público e do patrimônio administrativo se inserem como objeto, é a relação de administração, relação, que aqui se nos depara como análoga, mas distinta da de propriedade.

Na propriedade, cabe ao proprietário a faculdade de excluir; no domínio público, quanto aos bens de uso comum, ao utente, a pretensão a não ser excluído, enquanto se adscreve no uso à destinação do bem. Salva, porém, essa diferenciação, de resto, fundamental, a analogia entre as duas situações é manifesta. Quanto aos bens do patrimônio administrativo, a analogia ainda é mais flagrante. O uso especial assemelha-se ao exercício do domínio, ainda que, aqui também, a destinação da cousa elimine todo o arbítrio na utilização dela, diretamente pelo Estado ou outra pessoa administrativa.

Dá-nos a relação de administração, a seu turno, e não a propriedade, a medida de participação do bem, de que se cuida, na atividade administrativa.

Mas a relação de administração e a propriedade não se excluem, ainda que coincidentes sôbre os bens do domínio público e do patrimônio administrativo. Aquela domina e paralisa esta, superpõe-se-lhe, mas não a afasta.

6. As duas expressões «domínio público» e «patrimônio administrativo» não possuem, quanto ao conteúdo, a mesma intensidade; antes designam duas proporções diferentes de participação dos bens na atividade administrativa.
Sob êsse aspecto, pode o domínio público definir-se como a forma mais completa da participação de um bem na atividade de administração publica. São os bens de uso comum, ou do domínio público, o serviço mesmo prestado ao público pela 'administração. Assim, as estradas, ruas e praças (art. 66, I, Cód. Civ.).

Pelo contrário, os bens do patrimônio administrativo são meramente instrumentos de execução dos serviços públicos; não participam propriamente da administração pública, porém do aparelho administrativo; antes se aproximam do agente do que da ação por êste desenvolvida. Assim, os edifícios das repartições públicas (art. 66, II, Cód. Civ.).

(...)


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