sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Riqueza, Protestantismo e Trabalho

O livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo é um estudo do sociólogo Max Weber sobre eventual influência da religião sobre a economia. Os trechos abaixo transcritos, da página 110 até a página 127, dão uma idéia de como o trabalho constante, somado à poupança e a uma vida onde a riqueza é uma forma de homenagear a Deus, podem levar nações à riqueza. Vamos aos trechos que selecionei:

Exemplos de condenação da procura de bens e de dinheiro podem ser encontrados em quantidade nos escritos puritanos, e comparados com a literatura da baixa Idade Média, muito mais liberal a este respeito.
E ela é levada absolutamente a sério com tais dúvidas - que merecem um exame mais cuidadoso para a devida compreensão de seu significado ético e das suas implicações. Isto porque, a verdadeira objeção moral refere-se ao descanso sobre a posse, ao gozo da riqueza, com a sua conseqüência de ócio e de sensualidade, e, antes de mais nada, à desistência da procura de uma vida "santificada". E apenas é condenável porque a riqueza traz consigo este perigo de relaxamento. Pois o "eterno descanso da santidade” encontra-se no outro mundo; na Terra, o Homem deve, para estar seguro de seu estado de graça, "trabalhar o dia todo em favor do que lhe foi destinado". Não é, pois, o ócio e o prazer, mas apenas a atividade que serve para aumentar a glória de Deus, de acordo com a inequívoca manifestação da Sua vontade.
A perda de tempo, portanto, é o primeiro e o principal de todos os pecados. A duração da vida é curta demais, e difícil demais, para estabelecer a escolha do indivíduo. A perda de tempo através da vida social, conversas ociosas, do luxo, e mesmo do sono além do necessário para a saúde - seis, no máximo oito, horas por dia - é absolutamente indispensável do ponto de vista moral. Não se trata assim do "Time is Money" de Franklin, mas a proposição lhe é equivalente no sentido espiritual: ela é infinitamente valiosa, pois, de toda hora perdida no trabalho redunda uma perda de trabalho para a glorificação de Deus. Daí não ter valor e, eventualmente, ser diretamente condenável a contemplação passiva, quando resultar em prejuízo para o trabalho cotidiano, pois ela é menos agradável a Deus do que a materialização de Sua vontade de trabalho. Para isso, existe o domingo, e, segundo Baxter, são os que não estão absortos em sua vocação, que nem para Deus têm tempo, na hora existente para esse mister.
De acordo com isso, apresenta-se, no principal trabalho de Baxter, uma pregação constante, às vezes quase apaixonada, em prol de um trabalho físico ou mental mais duro e constante. Isto é devido à ação conjunta de dois fatores. De um lado, o trabalho é o velho e experimentado instrumento ascético, apreciado mais do que qualquer outro na Igreja do Ocidente, em acentuada contradição com o Oriente, mas também com quase todas as ordens monásticas do mundo.
(...)
Mas, o mais importante é que o trabalho constitui, antes de mais nada, a própria finalidade da vida. A expressão paulina "Quem não trabalha não deve comer" é incondicionalmente válida para todos. A falta de vontade de trabalhar é um sintoma da ausência do estado de graça.
Aparece aqui, visivelmente, o desvio da posição medieval. Também São Tomás de Aquino havia interpretado essa frase. Depois dele, todavia, o trabalho foi considerado necessário naturali ratione para o sustento da vida individual e coletiva. Onde não há essa necessidade, cessa também a validez dessa prescrição. Ela só se refere à espécie, e não a cada um individualmente. Quem puder viver de sua propriedade sem trabalhar não depende dela, e, naturalmente, a contemplação, como forma espiritual de trabalho no reino de Deus, parece o significado literal. Além disso, para a teologia popular da época, a forma mais elevada de produtividade monástica, estava no aumento do Thesaurus ecclesiae, através da oração e do canto .
Essas conexões ao dever de trabalhar não só deixam de prevalecer naturalmente para Baxter, como ele ainda fez questão de frisar energicamente que a riqueza não eximia quem quer que fosse do mandamento universal. Nem o rico pode comer sem trabalhar, pois mesmo que não precise disto para o seu sustento, ainda assim prevalece o mandamento de Deus, que deve ser obedecido por ele, tanto quanto pelo pobre.
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A riqueza, desta forma, é condenável eticamente, só na medida que constituir uma tentação para a vadiagem e para o aproveitamento pecaminoso da vida. Sua aquisição é má somente quando é feita com o propósito de uma vida posterior mais feliz e sem preocupações. Mas, como o empreendimento de um dever vocacional, ela não é apenas moralmente permissível, como diretamente recomendada. A parábola do servo que foi desaprovado por não ter aumentado a soma que lhe foi confiada serve para expressar isso diretamente. Querer ser pobre, como repetidas vezes se disse, equivalia a querer ser doente, era reprovável do ponto de vista da glorificação do trabalho e derrogatório à glória de Deus. Especialmente a mendicância dos capazes de trabalhar não constitui apenas um pecado de preguiça, mas ainda, de acordo com a palavra do apóstolo, uma violação do dever de amor ao próximo.
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Combinando essa restrição do consumo com essa liberação da procura de riqueza, é óbvio o resultado que daí decorre: a acumulação capitalista através da compulsão ascética à poupança. As restrições impostas ao uso da riqueza adquirida só poderiam levar a seu uso produtivo como investimento de capital.
(...)
Transcrevemos aqui um trecho de John Isto, porque mostrara que os líderes desses movimentos ascéticos compreendiam muito bem as relações aparentemente tão paradoxais que aqui analisamos. Assim escreve ele:

"Temo que, toda vez que a riqueza aumenta, a religião diminui na mesma medida. Não vejo, daí, como é possível, na natureza das coisas, conservar durante muito tempo qualquer revivência da verdadeira religião. Porque a religião deve necessariamente produzir tanto a operosidade (industry) como o senso de economia (frugality), e essas só podem produzir riqueza. Quando esta aumenta, crescem o orgulho, a paixão e o amor ao mundo em todas as suas formas. Como será então possível ao Metodismo, isto é, a uma religião do coração, continuar neste sentido, por mais que agora esteja a florescer como uma árvore nova? Os metodistas tornaram-se laboriosos e econômicos em toda parte; consequentemente, aumenta a sua riqueza. E, proporcionalmente, crescem neles o orgulho, as paixões, os apetites da carne e do mundo, e a soberba da vida. Assim, embora permaneça a forma da religião, seu espírito rapidamente se desvanece. Não haverá algum meio para evitar essa decadência da pura religião? Não devemos deixar de recomendar às pessoas que sejam laboriosas e econômicas. Devemos exortar todos os cristãos a ganhar tudo o que for possível, e a economizar o máximo possível; isto é; em outras palavras, a se enriquecerem"
Segue-se a exortação de que "aqueles que ganham tudo o que podem e poupam quanto podem" também "devem dar tudo o que podem", para assim crescer na graça de Deus, e amealhar um tesouro no céu.
O que a época de grande religiosidade do século XVII legou a seus utilitários sucessores foi, todavia, uma consciência incrivelmente boa - podemos até dizer farisaicamente boa - do endinheiramento, enquanto ocorresse por vias legais. Com ela desapareceu todo o resto do Deo placere vix potest.
Uma ética profissional especificamente burguesa surgiu em seu lugar. Consciente de estar na plena graça de Deus, e sob a sua visível bênção, o empreendedor burguês, enquanto permanecesse dentro dos limites da correção formal, enquanto sua conduta moral fosse sem manchas e não fosse objetável o uso de sua riqueza, podia agir segundo os seus interesses pecuniários, e assim devia proceder. O poder da ascese religiosa, além disso, punha à sua disposição trabalhadores sóbrios, conscientes e incomparavelmente industriosos, que se aferraram ao trabalho como a uma finalidade de vida desejada por Deus. Dava-lhe, além disso, a tranquilizadora garantia de que a desigual distribuição da riqueza deste mundo era obra especial da Divina Providência, que, com essas diferenças, e com a graça particular, perseguia seus fins secretos, desconhecidos do homem.


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