Dona Cidinha gostava de comer peixes frescos. De classe média, vivia em Itajaí e veraneava em Balneário Camboriú, onde tinha a casa de veraneio. Era o mês de janeiro de um dos primeiros anos da década de 1960 e Balneário Camboriú ainda se chamava Praia de Camboriú. De manhã, todos os dias, pescadores "puxavam rede". Mais tarde se passou a chamar este tipo de pesca de "arrastão". Antes de puxar a rede, os pescadores a colocavam no mar: as duas pontas da rede eram amarradas em cordas muito compridas; um ou dois pescadores ficavam, na praia, segurando a corda ligada a uma ponta da rede e os demais entravam no mar soltando corda; depois de soltarem uns cem metros de corda no mar, passada a zona de arrebentação das ondas, começavam a soltar a rede, fazendo um arco e voltavam; faltando uns cem metros para chegarem na praia, a outra ponta da rede acabava e ficava a segunda corda, que era levada até a areia. Então iam puxando a rede, primeiro a parte com corda e depois a rede. Os pescadores usavam chapéus, uma camisa de mangas compridas arregaçadas; a camisa era amarrada na cintura (talvez por não poderem substituir botões perdidos); as calças compridas arregaçadas até as canelas; e estavam descalços. À medida que puxavam a corda, os pescadores iam formando rolos no chão (eram uma perfeição estes rolos: a corda era colocada em círculos, que ficavam sobrepostos, formando um cilindro de corda). E a forma de puxar a rede era muito peculiar (veja fotos atuais aqui e aqui): os pescadores ficavam em diagonal, em relação ao chão e usavam um cinturão de pano de saco (ou saca) de alinhagem (ou linhagem), que tinha por fivela dois tocos de madeira, em forma vertical, um costurado em cada ponta do cinto. No meio de cada um dos dois cilindros de pano de linhagem que envolviam os respectivos tocos, havia um buraco, por onde passava a corda que, numa ponta amarrava o cinturão na cintura do pescador e na outra, prendia o cinturão na rede, de forma que a força para puxar a rede fosse feita mais com o corpo do que com os braços.
A ponta da corda do cinturão que se prendia na corda da rede tinha um nó na ponta, mas se fixava na corda da rede por uma volta (a corda do cinto abraçava a corda da rede, servindo o nó da ponta para impedir que o abraço se desfizesse). E assim os pescadores iam puxando a rede, enrolando a corda e fechando o arco lá no fundo do mar; e os dois grupos de pescadores, um em cada ponta da rede, iam se aproximando à medida que a rede chegava na areia da praia. Neste arco, que se fechava em U, vinham presos os peixes que estavam na região do mar em que a a rede passava. Enfim, depois de puxada a corda, chegava a rede e os peixes pulando dentro dela
ou presos em suas malhas. Alguns vinham nadando na parte de dentro do U, até toda a rede tocar a areia.
Todo o preparo da pesca, ou seja, a chegada dos pescadores no barco, a colocação do barco na água (o barco deslizada em cima de cilindros de madeira, que eram tirados da parte de trás, à medida que saíam de debaixo do barco e colocados de novo em baixo do barco, agora na frente, para dar continuidade ao traslado), a colocação da rede no mar e o puxamento da rede, serviam como chamariz da venda do peixe que fosse capturado. Assim, tão logo a rede era arrastada pela areia, cheia de peixes, uma pequena multidão já se acercava dos pescadores para simplesmente ver ou para comparar peixe. O acontecimento também servia de diversão para crianças: os tempos eram de abundância e politicamente incorretos, de modo que meninos e meninas iam catar os pequenos peixes que não serviriam para venda. Catavam-se os peixinhos, que eram colocados em baldinhos de brinquedo ou amarrados pela guelra, com o caule de umas plantinhas que germinavam nas dunas da praia (naquele tempo não existia a Avenida Atlântica e havia dunas com vegetação na beira da praia - mas havia também carros trafegando livremente pela areia da praia). Estes peixinhos ou eram jogados fora (depois de as crianças se divertirem com a captura) ou - a depender da paciência ou gula das mães - eram fritos e devorados por toda a família (especialmente pelas crianças que os cataram, que assim se poderiam se orgulhar de ter contribuído com o sustento da família).
Na pequena multidão que se acercava da rede estava Dona Cidinha, esperando para comprar alguns peixes. Ela esperou que a rede fosse totalmente colocada na areia, que os peixes fossem selecionados (alguns sendo colocados para venda, outros atirados fora ou dados para mendigos ou crianças) e que começassem, enfim, o comércio que determinara toda aquela atividade. Chegou para o pescador Manoel e perguntou-lhe o preço de um peixe. Manoel lhe disse e Dona Cidinha respondeu que o preço estava caro e pediu um desconto. Manoel deu a resposta errada: disse para Dona Cidinha que praia era lugar para rico e quem não tinha dinheiro para vir para praia, deveria ficar em casa. Dona Cidinha foi embora, sem seu peixe.
Seu Manoel e os demais pescadores, depois de venderem o peixe, distribuíram entre si o que sobrou e foram recolher os equipamentos: os remos eram enfiados no meio dos rolos de corda e eram transportados nos ombros dos pescadores até o barco; a rede era lavada e colocada em dobras no barco, de modo a já estar pronta para a próxima pescaria; o barco era levado - de novo em cima dos cilindros de madeira - até as dunas da praia, onde ficaria até a próxima pescaria.
Dona Cidinha ficou em Balneário Camboriú até o final da temporada, ou seja, até a semana de carnaval. E voltou para sua casa em Itajaí.
Na década de 1960 a temporada de veraneiro, em Balneário Camboriú, começava em torno do dia 3 de janeiro e terminava na semana de carnaval.
Em junho, Dona Cidinha estava em sua casa, em Itajaí, quando lhe batem à porta. A casa de Dona Cidinha não era luxuosa, mas muito confortável e de boa qualidade: alvenaria, dois andares, duas cozinhas, dois banheiros, copa, pequena biblioteca, sala de estar, sala de jantar, sala de visitas e, no andar superior, quatro quartos.
Dona Cidinha foi atender à porta e um homem lhe pediu um prato de comida. Era normal pessoas pedirem comida nas casas e Dona Cidinha era generosa com os pedintes. Era uma mulher dura, pois, como dizia, "não era de dar milho a pinto": doava comida, roupas, enfim, utilidades, mas se enfurecia se lhe pedissem dinheiro.E não perdia a oportunidade de admoestar quem não se comportava conforme seus padrões.
Dona Cidinha reconheceu o pescador Manoel. Nada disse e apresentou ao pedinte um bom prato de comida e um copo d'água. Esperou seu Manoel comer e quando foi buscar o prato, não se conteve:
"- O Sr. é pescador na Praia de Camboriú, né?
- Sim, Senhora.
- Pois olhe que com tantas casas aqui em Itajaí e o senhor veio bater logo na minha porta. Veja como Deus é justo: um dia, eu estava na Praia e fui comprar peixe com o senhor. Reclamei do preço e pedi para deixar mais barato e o senhor me disse que pobre não devia vir à praia. E olhe onde Nosso Senhor lhe mandou: à minha casa,pedir comida."
Seu Manoel ficou envergonhado e, certamente, arrependidíssimo do que fizera.Restou-lhe pedir desculpas a Dona Cidinha e reconhecer que se comportara muito mal ao humilhá-la. Entregou o prato vazio de comida e, pedindo mil vezes desculpas, saiu da varanda da casa, transpôs e jardim e mal fechou o portão. Em duas passadas atravessou a calçada, cruzou a Rua Guarani e foi em direção ao Cine Luz. Era o caminho que se fazia para chegar na Rodoviária e voltar para a Praia de Camboriú.
Foi Dona Cidinha quem me contou esta história. E a contava como forma de ilustrar o dever de tratar as pessoas respeitosamente, sem humilhar aquelas que, num dado momento, estão numa posição de desvantagem em relação a nós. Pois a situação poderia se inverter.
Dona Cidinha deixava claro que o motivo para tratar bem as pessoas, para não ofendê-las, era a possibilidade de se precisar delas algum dia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário