MEZGER diz que Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, associando ao delito, como pressuposto, a pena como consequência(1). Este conceito, à luz de uma constituição liberal,permite dizer que o Direito Penal moderno é a limitação da vingança estatal. Mas o Direito Penal também pode ser pensado como normas que estipulam um modelo de comportamento humano, punindo vigorosamente condutas que não adotarem tal comportamento (2).
Já vimos que o homem é criador e criatura do mundo das regras (3), de modo que o que caracteriza a existência de uma sociedade é o mundo das regras. Mesmo da obra de WRANGHAM & PETERSON (4) resulta a convicção de que, nas sociedades de animais, também existem regras:
As tradições dos chimpanzés variam, de comunidade para comunidade, através de todo o continente africano. Em qualquer dia do ano, em algum lugar há chimpanzés procurando saúvas com gravetos inseridos em orifícios curvos... Alguns estarão colhendo mel de uma colméia com um simples graveto, enquanto outros pegam formigas atraindo-as para uma vara sem casca e depois deslizando-as entre os lábios.
O homem anatomicamente moderno surgiu no planeta há cerca de 200 mil anos e o homem comportalmente moderno surgiu há 45 mil anos. Este homo sapiens chegou à Europa há 38 mil anos, à Península Ibérica há 32 mil e à América há 14 mil anos. A vinda para a América estima-se que foi via Nordeste da Ásia. Em 1974 e 1975 foi encontrado, por uma missão arqueológica, um esqueleto humano em Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasil. Esta Missão Arqueológica Franco-Brasileira foi organizada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaine. O esqueleto e outros achados foram reanalisados por André Prous. Ao esqueleto, Walter Alves NEVES chamou de Luzia (veja a foto do crânio e o rosto de Luzia, reconstituído, aqui). E Prous defende uma idade de 11,5 a 11 mil anos (possivelmente mais próximo de 11 mil anos) para os restos humanos de "Luzia", o que a coloca entre os mais antigos esqueletos humanos da América, se não o mais “ antigo”(5).
A agricultura e a domesticação de animais surgiram no Velho Mundo por volta de 10 mil anos e, na América, por volta de 4 mil anos (6).
NEVES & PILÓ descrevem comportamentos prováveis para o povo de Luzia, ou seja, os brasileiros que aqui viveram 11 mil anos atrás. Os autores alertam, porém, que o uso da analogia etnográfica é um assunto polêmico entre os arqueólogos, cuja maioria entende que ela pode ter no máximo validade inspiradora, mas não linear. Ou seja, não é porque um ou outro grupo de caçador-coletador organiza sua sociedade e sua espacialidade de uma forma que todos tenham de fazê-la exatamente igual. Assim, o que se segue é a junção de várias fontes e tem grandes possibilidades de acerto em relação ao que aconteceu no passado.
O povo de Luzia era forrageador e, portanto, vivendo em bandos, ao contrário dos agricultores, que vivem em tribos. Forrageadores são caçadores-coletores e assim o eram os que viviam aqui na época de Luzia, que desconheciam completamente o cultivo de vegetais e a fabricação de vasilhas de cerâmica.
Nos grupos forrageadores, normalmente, ao final do dia, tanto homens como as mulheres e crianças retornam à aldeia com tudo que conseguiram caçar e coletar, e o alimento é repartido entre todos. Ninguém deixa de comer. Essa prática permite que os que não foram agraciados pela sorte hoje não passem fome, já que amanhã s situação pode se inverter. É um tipo de seguro-alimentação, baseado em um sistema de reciprocidade regido por leis severas que dificilmente são quebradas.
As sociedades de bando também se caracterizam pela falta de hierarquia e pela homogeneidade de status (sic) econômico, já que todos participam das atividades de obtenção de recursos alimentares. Não existem diferenças sociais. Todos têm acesso às mesmas coisas. Por isso são denominadas sociedades igualitárias. Tampouco há especialização do trabalho. Mas alguns indivíduos gozam de maior prestígio que outros, baseados em dotes pessoais, como liderança, por exemplo, mas não porque haja algum sistema formal de chefia.
(...)
E ainda que um grande caçador gozasse de enorme prestígio, ele jamais poderia se autoproclamar chefe ou cacique.
A prole destes grupos de caçadores-coletores não é grande, pois as mulheres amamentam até as crianças terem cerca de 4 anos (período durante o qual a mulher fica infértil), há uso de plantas abortivas e se matam crianças gêmeas, deficientes ou com sexo indesejado. Havia regras também para o enterro de pessoas (7).
Ou seja, as regras regulam a conduta de homens e bichos. Transgredir estas regras gera punições, exatamente para desencorajar os transgressores. Manter as regras de conduta, punindo com severidade os transgressores, portanto, é a finalidade do direito penal.
Notas:
1 - apud TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo, Saraiva, 5 ed., 1994, p. 1.).
2 - TOLEDO, obra citada, p. 3.
3 - Os conteúdos normativos da sociedade humana, sendo realidades institucionais, variam no tempo e no espaço, mas a existência de regras é um invariante formal (Lévi-Strauss, 1967a; Fortes, 1983); como tal, ele seria a característica distintiva da condição social, que deixa aqui de ser um dos atributos do Homo sapiens para definir a Humanidade como entidade singular, composta não mais de indivíduos, mas de sujeitos que são simultaneamente criadores e criaturas do mundo das regras.- VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2002, p. 298.
4 - WRANGHAM, Richard & PETERSON, Dale. O Macho Demoníaco – As Origens da Agressividade Humana. Trad. M. H. C. Côrtes. Rio, Objetiva, 1998, p. 20.
5 - NEVES, Walter Alves & PILÓ, Luís Beethoven. O povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos. São Paulo, Editora Globo, 2008, pp. 52, 58, 60, 132-136.
6 - NEVES & PILÓ, obra citada, p. 170.
7 - NEVES & PILÓ, pp. 272, 281, 293, 294, 295, 300 e 306.
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