terça-feira, 28 de outubro de 2025

Empréstimos no Liv. 4 das Ordenações Filipinas (o mútuo)

        As modalidades de empréstimo de bens são muito antigos. Neste interessante trecho do Livro 4 das Ordenações Filipinas, podemos saber que, no século XVII não era só dinheiro que se emprestava, mas também outras coisas: vinho, azeite, trigo ou qualquer outro legume. Provavelmente, hoje em dia, talvez seja mais comum o empréstimo de dinheiro, mas o Código Civil admite mútuo de outras coisas além de dinheiro: "Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade."

        Ao ser regulamentada a necessidade de restituição da coisa objeto do mútuo, percebe-se que a palavra "espaço" é usada nas Ordenações no sentido de prazo, ou seja, significando "espaço no tempo".

        Nesta postagem também aparece a expressão "filhosfamílias". Não há um conceito expresso de filhofamília nas Ordenações. Este conceito se acha no Esboço de Hum  Diccionario Jurídico, Theoretico, e Practico, Remissivo às Leis Compiladas, e Extravagantes. Por Joaquim José Caetano PEREIRA E SOUSA;  Advogado na Casa da Supplicação. Obra posthuma. Tomo Segundo. F-Q; verbete "Filho": (...) "Filho famílias se diz aquele que está ainda debaixo do pátrio poder." (...) Neste ponto, é curioso que o texto das Ordenações aventa a possibilidade de os filhos matarem os pais por causa de dívidas.

        Em outro trecho do título relativo aos empréstimos, se fica sabendo que os filhosfamílias estudavam fora de seu lugar de moradia, mas também podiam se ausentar da casa para ir à guerra ou para servir ao Rei na Corte.

        Nas notas de Cândido Mendes de Almeida se pode ver o quanto de Direito Romano estava nas Ordenações, seja na reprodução literal das normas, seja justificando a mudança daquele Direito pelas Ordenações, seja indicando o Direito Romano como subsidiário do Direito Português. Além dessa continuidade das regras do Império Romano, muitos dos livros de Direito mencionados nas notas de rodapé eram escritos em latim, o que obrigava os operadores do Direito a serem versados neste idioma. As leis eram redigidas em português, mas a interpretação era em latim. Talvez por isso o desprezo pelos rábulas e leguléios, que provavelmente eram os operadores do direito que conheciam apenas os textos legais, já que - não sabendo latim - não podiam conhecer o pensamento dos jurisconsultos.  Também nas notas de Cândido Mendes de Almeida se pode ver que os contratos de empréstimo já existiam no Direito Romano e, pois, naquele tempo já se emprestavam dinheiro e coisas.

        O conceito de "mora" também já está nas notas de Cândido Mendes de Almeida e é esclarecedor até para os dias atuais. Nestas notas se vê que, em 1757, havia norma regulamentando os juros.

 

TÍTULO L.

Do emprestido[1], que se chama mútuo[2].

 

Toda a pessoa, que emprestar a outra coisa alguma, que consiste em número, peso, ou medida, como dinheiro[3], vinho, azeite, trigo ou qualquer outro legume[4], tanto que se recebe a tal coisa emprestada, fica a risco daquele que a recebeu[5]; porque pola entrega ficou própria, do que a recebeu, e fica sempre obrigado a pagar o gênero, que não podia perecer, que é outro tal dinheiro, trigo, vinho, ou azeite ou outro legume.

1. E esta coisa assim emprestada deve retornar ao devedor ao tempo e prazo, que lhe for posto, e não sendo declarado tempo, cada vez que o credor lha pedir, e desse tempo fica constituído em mora[6]. O qual não se deve entender logo, porque seria vão e frustatório o benefício, se logo se houvesse de pedir o que se empresta; polo que se darão ao devedor dez dias de espaço[7], como se dão ao que se obriga a pagar alguma coisa sem declaração de tempo, ou dilação, ou mais espaço, se ao Julgador parecer assim, segundo a qualidade das pessoas, tempo e lugar.

(...)

2. E porquanto de se emprestar dinheiro[8], aos mancebos filhosfamílias[9] se dá azo ao converterem em usos desonestos e ocasião de serem viciosos, e se pode presumir, que carregados de dívidas e apertados per elas procurem a morte a seus pais, ou lha desejem: para se isto evitar[10], mandamos que o que emprestar a algum filho, que estiver debaixo do poder de seu pai, quer seja varão, quer fêmea, perca o direito de o pedir assim a seu pai, como a ele, posto que os ditos filhosfamílias, a que se fez o dito empréstimo, saiam do poder de seus pais por morte, casamento ou emancipação[11]. E da mesma maneira se não poderá pedir aos fiadores que por eles ficaram.

3. Porém, se o tal filhofamílias estiver em alguma logea (loja?) de mercadorias, ou tiver algum trato de consentimento e mandado de seu pai; ou sem ele, será obrigado a pagar o que se lhe emprestar[12]. Porque, se por mandado de seu pai está no tal trato, fica o pai obrigado pelo empréstimo, que ao dito filho se fizer; e se o dito filho negociava sem mandado de seu pai[13], ficará ele obrigado até onde chegar o seu pecúlio[14], e mais não.

4. E quando o filhofamílias está em parte alongada e remota por causa do estudo, será o pai obrigado a pagar o que se emprestar ao dito para os gastos do estudo, não sendo porém mais que o que o pai lhe costumava dar. E o mesmo será no que se emprestar ao filhofamílias soldado, que estiver na guerra em parte remota, ou que andar na Corte em nosso serviço[15].

 

NOTAS DE CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA:

1] Emprestido, i. e., empréstimo.

 2] Mútuo, i. e., recíproco.

Vem do verbo latino – mutuare emprestrar.

Mastrofini na sua obra Discussão sobre a usura diz que, na opinião de alguns autores a palavra - Mutuum vem de meo e tuum, explicando a transferência de domínio neste empréstimo; transferência ou domínio que ele contesta no § 293 e seguintes:

Segundo Coelho da Rocha § 744 o mútuo é o contrato, pelo qual uma pessoa entrega à outra uma coisa fungível, para lhe ser tornada outro tanto em quantidade e qualidade. É a mesma definição desta Ord. pr. em termos mais reduzidos e claros.

«Coisas fungíveis, diz T. de Freitas Consol. art. 477 nota, são objetos do Mútuo, i. e., as que forem suscetíveis de substituição por outras coisas da mesma espécie, da mesma qualidade, e na mesma quantidade.

«As coisas que se consomem com o uso são fungíveis por sua natureza, mas as partes podem convencionar que sejam fungíveis coisas que o não são por sua natureza. Isto pode acontecer até com ações de Banco e outras companhias, quando aquele que as recebe fica obrigado a restituir um número igual ao das ações recebidas.

«Em suma há mútuo sempre que a obrigação de restituir for genérica, e não se referir à própria coisa recebida, mas à outra da mesma espécie e qualidade qualquer que ela seja.»

É da natureza deste contrato o ser gratuito, bem que se possa ajustar prêmio, ou remuneração do mutuante, como em alguns casos permitia a antiga legislação (Ord. deste livro t. 67, Als. de  23 de Maio de 1698, e de 17 de Janeiro de 1757), e facultou-o sem embaraços a moderna (L. de 24 de Outubro de 1832). Mas neste caso o mútuo perde inteiramente todo o seu característico – a gratuidade, passando a ser o contrato todo de locação.

Os Romanos distinguiam estes dois contratos por estas duas palavras: mutuum era o empréstimo gratuito sem juros, e fænus o outro, o oneroso.

O mutuário não fica devedor da coisa individual, mas é tão somente da espécie (genus, na frase do Direito Romano) e, portanto fica logo tendo o domínio, correndo por sua conta os riscos. Esta doutrina, como já vimos acima, é contestada por Mastrofini.

Vide sobre este tit. Caminha – de Libellis ann. 10, Barbosa – com., Corrêa Telles – Dig. Port. to. 3 de n. 1177 a 1195, Coelho da Rocha Dir. Civ. de § 774 a 781, T. de Freitas – Consol. de art. 477 a 509, e Ramos – Apont. de  n. 442 a 484.

 3] Dinheiro. Vide Ord. deste liv. t. 67.

«Como o dinheiro amoedado, diz Rogron, é uma coisa estéril, que por si mesmo não pode servir às necessidades da vida, tem-se pretendido que era injusto exigir prêmios por esse empréstimo de dinheiro, mas convém observar que o dinheiro tendo um valor de convenção, e podendo servir para comprar todos os objetos necessários à vida, o que empresta uma certa soma priva-se de todos os objetos que poderia comprar, e de todos os benefícios que poderia colher do emprego de seu capital.»

Vide Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 2 nota (b) à pag. 233, Macedo – Dec 30, Moraes – de Execution. liv. 2 cap. 12, Pereira de Castro – Dec. 84 n. 3 e Arouca – All. 9 n. 10.

4] Legume, i. e., nome genérico de toda sorte de grãos, que nascem em bages, como favas, feijões, ervilhas, etc.

Mas aqui toma-se em sentido mais lato, máxime se a palavra latina legumen, vem de legere, no sentido de colher, e não no de ajuntar, ligar, etc.

 5 ] Sendo o Mutuatario, o dono, segue-se a regra de Direito – res suo domino perit. 

 6] Mora. Dando-se este fato o mutuário fica sujeito ao pagamento de juros e danos (Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 2 notas (a), (b), e (c) à pag. 234).

Chama-se Mora o retardamento da execução da obrigação. Não se tendo fixado prazo corre a mora desde a interpelação, protesto, ou qualquer outra intimação, ainda extra-judicial, a menos que outra coisa não tenha resolvido a lei (Coelho da Rocha – Dir. Civ. § 127 e128).

«E da mora em diante, diz T. de Freitas, não tendo havido estipulação de juros, o mutuário deve-os pagar? Para este efeito a nossa jurisprudência exige a interpelação judicial. Assim legislam os arts. 138 e 248 do Cód. do Com.»

Suzano resumindo Silva Pereira no Rep das Ords. to. 3 nota (a) à pag. 560 diz o seguinte:

«Mora se entende em razão da coisa, ou da pessoa: da coisa quando alguém não faz aquilo que por direito deve fazer (como quando tem alguma coisa furtada, e não restitui a seu dono; e nestes casos é o possuidor obrigado aos interesses, mesmos nos contratos co-respectivos, quando um cumpre da sua parte a condição, e o outro não); da pessoa, quando o credor chama o devedor em lugar e tempo competente, ou é chegado o dia convencionado: desde a chamada ou dia aprazado entra o devedor em mora.»

Vide Coelho da Rocha – Dir. Civ. § 128 e nota G, mui importante a consultar sobre esta questão.

Consulte-se também a Gazetta dos Tribunais n. 166, e  Nova Gazetta dos Tribunais n. 245 pag. 4.

 7] Se o mútuo é de pão, a regra em Portugal é que o mutuário é obrigado a dar a espécie até o dia 15 de Agosto seguinte, depois de passado esse dia pode pagá-lo a dinheiro pelo maior valor que tiver tido o gênero no intervalo (Ord. deste liv. t. 20).

Sendo de outros gêneros, a todo tempo satisfaz o mutuário, entregando-os, e não sendo possível paga-os pelo preço corrento ao tempo convencionado.

Mas se o mútuo é de dinheiro a juros, a cobrança não se pode fazer em menos de um ano (Al. de 17 de Janeiro de 1757), e nem se poderia contratar por menos tempo.

Segundo Correa Telles – Dout. das  Acç. § 407 nota (3), os juros do dinheiro deviam ser cobrados executivamente, visto como o Al. de 25 de Maio de 1698 os chama – Censos. Mas outra tem sido a prática:

O mutuante, é responsável pelo prejuízo, que resultar dos defeitos da coisa emprestada, que sabendo, ocultou.

 8] Dinheiro. E se o empréstimo for de outro objeto?

Geralmente se diz que não tem lugar esta lei (Borges Carneiro – Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 40).

Entretanto se esta Ord. não se deve entender taxativa, mas demonstrativamente (Borges Carneiro sob n. 37), o empréstimo condenado dever-se-ia estender a outros objetos, por que como bem diz o mesmo Jurista n. 41, pode dar-se dolo, como no contrato de mohatra da Ord. deste liv. t. 67 § 8.  

Cumpre notar que este mútuo é proibido, com ou sem juros.

 9] Filhos-famílias. Estas palavras, diz-se, se entendem demonstrativa e não taxativamente. Entretanto o contrário foi decidido na Casa da Suplicação no ano de 1642, na causa de Antônio Luiz de Oliveira, filho natural de Diogo Luiz de Oliveira, outr’ora Governador da Capitania  da Bahia, assunto da Dec. 151 de Themudo, segunda parte.

Vide Borges Carneiro – Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 37.

Parece de equidade, que se o filho natural estiver sob o poder do Pai, deve também gozar deste benefício, máxime achando-se reconhecido na conformidade da L. de 2 de setembro de 1847, visto como a razão daquele aresto fundava-se na Ord. deste liv. t. 92 § 1.

 10] Esta disposição foi tirada da l. 7 § 3 e 9 ff.  ad. Senat. Cons. Maced.

Os Senatus-Consultos ou decretos do Senado tiravam de ordinário o seu nome do Cônsul ou Cônsules em cujo governo eram promulgados, mas algumas vezes do nome dos indivíduos, em ódio de quem eram expedidos.

O Senatus-Consulto Macedoniano, fonte desta lei está neste caso.

A lei Romana deste nome teve origem no reinado do Imperador Cláudio, quando vivia em Roma um famoso usuário chamado Macedo ou Macedon, que assolava com suas usuras a cidade eterna.

Esta é a opinião de Gothofredo a quem segue Lima com., mas Vicat no seu Vocabulário, sustenta que o nome da lei proveio de certo Macedo filho-famílias, uma das mais notáveis vítimas dos usurários de Roma.

Mas esta lei parece que caiu logo em desuso, por isso o Imperador Vespasiano a renovou, e fez-lhe dar todo o vigor.

Segundo Godofredo a lei promulgou-se no quarto Consulado de Cláudio e no terceiro de Vitelio no ano de 799, da República, e 46 de Cristo, segundo Pedro Faber, data que é contestada por Bach, e Warnkænig que julgam que a promulgação verificou-se no ano 800 da República, e 47 de Cristo.

Vide Suetonio na vida de Vespasiano cap. 12, Gothofredo – Digesto liv.  14 t. 6, Vicat – Vocabularium ultriusque juris, arts. Macedo e Macedonianum, e Lima – com. n. 3.

 11] E também por emprego e função pública que importe emancipação.

 12] Esta Ord. deve-se entender de acordo com o art. 1 § 3 do Cód. Com. que diz:

«art. 1° Podem comerciar no Brasil:

«§ 3. Os filhos-famílias que tiverem mais de dezoito anos de idade, com autorização dos pais, provada por escritura pública.

«O filho maior de vinte um anos que for associado ao comércio do pai, e o que com sua aprovação, provada por escrito, levantar algum estabelecimento comercial, será reputado emancipado e maior para todos os efeitos legais nas negociações mercantis.»

 13] Atualmente, como bem diz T. de Freitas Consol. art. 486 nota (5), só pode ter lugar com infração da lei, em vista do Cód. Com  art. 1 § 3 supracitado.

 14] Este pecúlio não deve-se entender o profecticio, por que neste tem o pai usufruto.

Borges Carneiro parece entender o contrário ( Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 19.)

  15] Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Silva Pereira – Rep. das Ords. to 2 nota (b) à pag. 236, Almeida e Souza – Notas a Mello to. 2 pag. 113 a 155, e Obrig. pag. 29, 89 e 98, e Borges Carneiro – Dir. Civ.. liv. 1 t. 21 § 191 de n. 46 a 57.

domingo, 19 de outubro de 2025

Origem da Trapaça e o Conceito de Anatocismo

        Em um trecho do livro 4 das Ordenações Filipinas vamos encontrar uma provável origem da palavra TRAPAÇA. Segundo nota de rodapé, era chamada "trapaça"  a venda fictícia feita para um terceiro (um laranja) por um alto preço, que a revendia para o verdadeiro comprador, por um preço bem mais baixo. A diferença entre o alto e o baixo valor era a forma de burlar a proibição de cobrança de juros. A esta operação se chamou TRAPAÇA.  

No mesmo trecho do Livro 4 das Ordenações Filipinas vai-se encontrar o conceito de Anatocismo (a cobrança de juros sobre juros).

 

8. Por quanto somos informado, que se fazem muitos contratos ilícitos entre Mercadores e outras pessoas, os quais por en­cobrirem as usuras, vendem mercadorias e coisas fiadas a pessoas necessitadas, que não são Mercadores, nem tratantes, para nelas haverem de tratar e ganhar, e que os compradores lhas tornam logo dar e vender por muito menos, do que as compram, por lhes darem o dito dinheiro para suprimento de suas necessidades, ou as vendem a ou­tros por muito menos preço, do que as compram, por lhes darem logo o dinheiro, de maneira que não somente recebem dano no preço, em que as compram fiadas, mas ainda na venda delas (1): E além disso ficam suas pessoas obrigadas a pagar o primeiro preço, por que lhe foram vendidas, e por não poderem pagar nos tempos limitados em seus contratos, fazem outras novas obri­gações, confessando a dívida com interesses, e fazendo dos ditos interesses dívida principal (2).

 

[1] Segundo Barbosa no com., este contrato era conhecido pelos Italianos pela designação de Trochi Varochi, entre os Espanhóis pelo nome de Mohatras, tendo em Português o nome de Trapaças.

A Lei de 24 de Outubro de 1832 dando ampla latitude ao contrato dos juros acabou com esse fraudulento recurso, sem melhorar a sorte das vítimas da usura.

Ferreira Borges no seu Dicc. art. Mohatra diz o seguinte:

«Mohatra. É este o nome que alguns Casuístas deram ao contrato usurário, que se pratica quando alguém vende por muito alto preço a crédito, e compra a mesma coisa ao comprador a vil preço (Crivelli, Jorio.)

«Não nos lembra de haver encontrado na Jurisprudência Romana menção deste contrato: é todavia certo que a malícia do homem, e as infinitas con­venções comerciais o inventaram, e nós vimos em nossos dias um grande exemplo desta espécie, e uma Carta Régia expedida para salvar um usurário, que no rigor da nossa Legislação teria pelo menos visitado as praias malignas da adusta África.

 

[2] É este o contrato chamado Anatocismo, pelo qual os Juros vencidos acrescerão ao capital, ficando também a vencer juros.

A Lei de 24 de Outubro de 1832 autoriza estas acumulações, que aliás não permite o Código Comercial no art. 253, que assim dispõe :

«É proibido contar juros de juros: esta proibição não compreende a acumulação de juros vencidos aos saldos liquidados em conta corrente de ano a ano.

«Depois que em Juízo se intenta ação contra o devedor, não pode ter lugar a acumulação de capital e juros.»

T. de Freitas na Consol. art. 361 nota (1) sustenta a nosso ver sem fundamento que o Cód. Com. no artigo supra citado, não reprova o anatocismo.

Corrêa Telles no seu Dig. Port. to. 3 art. 1144, propõe de conformidade com a Lei 10 Cod. de usuris, e Cód. Civil Francês  art. 2277, que se não possam acumular juros de mais de cinco anos.

sábado, 18 de outubro de 2025

As Companhias (hoje S/A) no Liv. 4 das Ordenações Filipinas (2)

         Se compararmos o texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas (ver postagem anterior) com as notas de rodapé, perceberemos que, entre 1603 e 1870 ocorreram modificações no conceito de companhia. Só para lembrar: o Livro 4 das Ordenações Filipinas é de 1603 e as notas de rodapé estão na edição brasileira de 1870. Perceberemos, também, que já no Século XIX estava consolidada a noção de sociedade anônima. Esta consolidação é uma das informações interessantes das notas de rodapé. Outra informação interessante é a relação exemplificativa das companhias portuguesas existentes no século XVII. Também se vê nas notas uma discussão sobre a regulação jurídica no Brasil das sociedades comerciais e as civis no século XIX.

Sociedade e Companhia. Estas palavras em outro tempo eram sinônimas, atualmente a segunda designa tão somente as sociedades anônimas. Assim a distingue o Código Comercial no tít. 15, em todos os seus Capítulos do art. 287 usque 353.

Ferreira Borges na sua obra – Jurisprudência do contrato mercantil de Sociedade p. 1 secç. 2 art. n. 3 § 29 nota, diz a este respeito o seguinte:

«Companhia antigamente era entre nós sinônimo de sociedade. A cit Ord. liv. 4. tit. 44 inscreve-se do contrato da sociedade e companhia – e daí em todo o título fala em companhia. Hoje ainda que se possa dizer companhia por sociedade, companheiro por sócio, contudo, estritamente falando, hoje, em acordo com todas as nações comerciais, entende-se por companhia  a associação incorporada por carta ou alvará de instituição; tal como o foi entre nós a Companhia do comércio da Índia, que teve Regimento em data de 26 de Agosto de 1628: - a Companhia do comércio do Brasil com instituição confirmada por Alv. de 10 de  Março de 1649: - a de Cabo verde e Cacheu. Alv. de 4 e Janeiro de 1690; de Guiné e Macao: a Companhia geral do Grão Pará e Maranhão de 7 de junho de 1755, a Companhia geral d’agricultura dos vinhos do alto Douro,  Alv. de 10 de Setembro de 1756: a Companhia geral das reais pescarias do Algarve,  Alv. de 15 de Janeiro de 1773; e a Companhia geral do comércio de Pernambuco e Paraíba,  Alv. de 13 de Agosto de 1759.»

A sociedade ou companhia de que trata esta Ord. é inteiramente Civil.

O Legislador não curou das sociedades comerciais (Ferreira Borges – Jurisp. § 17 nota).

O Av. n. 231 – de 21 de Agosto de 1855, declarou que o Código Comercial na p 1. t. 15, só é concernente às sociedades mercantis, sendo indiferente que uma ou ambas as partes sejam comerciantes, por que neste caso a jurisdição nasce em razão somente dos atos e não das pessoas.

Sobre as sociedades comerciais consulte-se o Cód.Com. nos lugares supra citados.

Pelo que respeita às Companhias ou sociedades anônimas, consulte-se nos aditamentos o D. 2711 - de 19 de Dezembro de 1860; assim como sobre as sociedades em comandita o D. n. 1.487 - de 13 de Dezembro de 1854.

Consulte-se sobre a matéria deste título, além de Barbosa, e Lima nos com., Cardoso - Praxis, verbo - Societas, Costa Franco - Tratado prático, jurídico, e cível p. 1 em que trata especialmente do Contrato da Sociedade; Companhias em dezesseis capítulos; Ferreira Borges obra supracitada, e Dicionário Comercial art. Companhia, Correa Telles- Dig. Port. to. 3 tit. 11 de n.1053 a 1.137, e Doutr. das Acç. de § 410 a 412, T. de Freitas - Consol. cap.10 do art. 742 a 766, e Ramos - Apontamentos Cap. 11 a 1501, etc.

 

         Em outra nota de rodapé se vai perceber que a religião permeava o direito secular, pois atos jurídicos nulos eram tidos como também pecaminosos:

 

O Al. do 1º de Agosto de 1774 declarou que os contratos feitos em positiva desobediência das leis são nulos e pecaminosos em si mesmos, por que elas obrigam em um ou outro foro.

O Art. 287 do Cód. Com. também declara que é da essência das Companhias e sociedades que o objeto e fim a que se propõem seja lícito.

Considera-se ilícita a associação cujo fim é monopolizar os gêneros de primeira necessidade, ou qualquer ramo do comércio (D. n. 2711 – de 19 de Dezembro de 1860 art.9 n.1, art. 27 regra segunda, e arts. 33 e 34).

As sociedades secretas não estando nas condições legais estão sujeitas às penas dos arts. 282, 283 e 284 do Cód. Crim., e sob a vigilância da Polícia (D. n. 2711 – de 1860 art.34).

     A prova da existência das sociedades civis é outro problema tratado nas notas de rodapé. É que não havia o registro civil até o século XIX, razão da impossibilidade do registro destas sociedades. Registros de nascimento e casamento ficavam restritos à Igreja (exceto quando os casamentos eram objeto de contrato, matéria largamente tratada no livro 4 das Ordenações Filipinas). As normas sobre registro civil no Brasil surgiram depois da independência, mas ainda se vinculavam ao registro religioso. O Decreto nº5.604, de 25 de abril de 1874 disciplinava o registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos, mas o art. 51, item 6º (não se usava a nomenclatura "parágrafo" na época) só permitia a colocação do nome do nascituro se já fosse batizado. O Decreto nº 9.886, de 7 de março de 1888 também só tratava do registro de nascimentos, casamentos e óbitos, mas já se mostrava um pouco mais secular na questão do nome (Art. 58. O assento do nascimento deverá conter: (...) 5º O nome e sobrenomes que forem ou houverem de ser postos a criança (...). Mas ainda se vinculava à Igreja (Art. 59. Podem ser omitidos, si daí resultar escândalo, o nome do pai ou o da mãe ou os de ambos, e quaisquer das declarações do artigo antecedente, que fizerem conhecida a filiação, observando-se a este respeito as reservas estabelecidas para os assentos de batismo na Constituição eclesiástica n. 73.) A Constituição Eclesiástica eram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1710. O Código Civil de 1916 já determinava o registro das sociedades civis (artigos 18 e 19), mas remetia para lei especial. Mas não foi uma lei que fez a regulamentação, mas sim o Decreto nº 4.827, de 7 de fevereiro de 1924 (art. 3º).

 

T. de Freitas na Consol. art. 747 nota (2) diz o seguinte:

«Aqui se trata das sociedades particulares em contraposição às universais. Em que casos as sociedades particulares se deviam reputar civis ou comerciais? Não se pense que as sociedades reguladas no Cód. Com. são sempre comerciais; pois que também podem ser civis, como se deixa ver o D. n. 2711 – de 19 de Dezembro de 1860, ao menos quanto às sociedades anônimas.»

Continuando diz mais adiante:

«A nossa legislação civil é omissa sobre a forma e prova dos contratos de sociedade civis, excetuadas as anônimas reguladas hoje pelo citado D. 2811 – de 19 de Dezembro de 1860.

«Será essencial a forma escrita, como exige o art. 300 do Cód. do Com. para as sociedades comerciais, excetuada a sociedade em carta de participação? Entendo que a forma escrita  é essencial sempre que as sociedades civis forem das mesmas espécies para as quais o Cód. do Com. a exige; não assim quando não forem dessas espécies, quando não tiverem firma social, casos em que domina a regra geral do Al. de 30 de Outubro de 1793 consolidado no art. 368 supra.

«Deverão porém os contratos de sociedade civis ser registradas (sic), quando eles forem de espécies que o Cód. do Com. manda registrar? A razão é a mesma, porém  não é possível registrar nos Tribunais do Comércio contratos de sociedade civis.»

Vide Ferreira Borges – Jurisp. to. 1 §§ 16 e 17 e notas, e Costa Franco – Trat. Prat. to. 2 p. 1 cap.4.

 


 

        Em outra nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas tem-se um dos diversos pontos em que se pode perceber a difícil situação jurídica das mulheres no século XIX e tempos anteriores.

 

T. de Freitas na Consol. art.758 § 1 nota (2) diz o seguinte:

«A sociedade não se dissolve pelo falecimento da mulher de qualquer dos sócios, ainda que os herdeiros sejam menores, continua como o viúvo, ficando reservado para sobre partilha do casal o que ele vier a receber da partilha social em tempo próprio.

«A incapacidade civil que sobrevêm a qualquer dos sócios por alienação mental, e declaração judicial de falência (Cód. Crim. art. 335 n. 2), está no mesmo caso do falecimento, e dissolve a sociedade. Não está porém no mesmo caso a incapacidade civil superveniente pelo fato de casamento da mulher sócia, e esta passa a ser representada por seu marido.

«Posto que a sociedade se dissolva por morte de qualquer dos sócios, são válidas e obrigatórias para os herdeiros do sócio falecido, e para os outros sócios, os atos e contratos sociais que se tenham feito antes da notícia morte, ainda que o resultado dele não seja vantajoso.»

Consulte-se também a nota ao art. 653 da mesma obra.

         Também se vê em nota de rodapé que, ainda no século XIX, não se praticava a soberania jurídica, pois se usava como fonte do direito subsidiária normas de Direito Romano e de outros países.

 Texto das Ordenações:

 

Porém o que algum dos companheiros gastou fora da Companhia ainda que fosse em algum acontecimento, que tivesse origem por ocasião da Companhia, não se tirará, nem pagará.

Nota de rodapé:

Ferreira Borges na Jurisp. § 105 nota, acha inconciliável esta disposição com a do  § 10 que começa da mesma maneira, e mostra que os compiladores Portugueses seguiram aqui a opinião do Jurisconsulto Labeon, chefe da escola dos Proculeanos, que sustentavam o principio de que estas despesas não tinham tido lugar por negócios da sociedade, que disso apenas havia sido a causa ocasional.

A opinião contraria era defendida pelo Jurisconsulto Juliano, da escola dos Sabinianos.

Os Códigos da Prússia, e o Civil da França no art. 1852 seguiram a ultima opinião, mais razoável e mais justa.

Lima no com. ao § 10 n.2, e a este § n. 3 e 4, explica a doutrina à maneira de Labeon: Eis suas palavras:

«Quibus non obstatibus, vera est nostra assertio: quia aliud est damnum contingens in rebus ad socitatem spectantibus, seu causa societatis, et aliud est damnum contingens origine societatis; ita ut prætium sit solvendum de communi, ut disponit text in § 10 hujus tituli; secundum, cum sit factum extra societatem nom est de illa solvendum, ut text. hic.»

 


domingo, 12 de outubro de 2025

As Companhias (hoje S/A) no Liv. 4 das Ord. Filipinas (1)

         O Livro 4 das OrdenaçõesFilipinas já regulamentava as Companhias. A legislação atual (Lei nº  6.404/1976) torna equivalentes os nomes “companhia” ou “sociedade anônima” e denomina seus integrantes de sócios ou acionistas. A existência, porém, deste tipo de sociedade, remonta, no direito  luso-brasileiro, desde, pelo menos, o século XVII. Talvez tenham sido pouco faladas estas sociedades, mas provavelmente a Sociedade das Índias Ocidentais ficou famosa entre nós. Era a Companhia que explorou o Nordeste brasileiro, no tempo dos flamengos (os holandeses). Tempo dos Flamengos é um livro de José Antônio Gonsalves de Mello, que trata da invasão holandesa no Nordeste.  Sobre a Companhia das Índias Ocidentais, Roberto Chacon de Albuquerque  diz que esta...

 

“não nasceu motu proprio com a livre subscrição de seu capital social, como ocorre com as sociedades anônimas pela integralização de suas ações. Para que a Companhia surgisse em 3 de junho de 1621, foi  necessário que os Estados Gerais, o Governo Central dos Países Baixos, interviesse com a expedição de uma carta-patente que lhe outorgou o privilégio durante vinte e quatro anos na exploração da navegação e do comércio com as Américas e a África Ocidental. A Companhia das índias Ocidentais deve suas origens a um ato de Estado que lhe conferiu o controle da navegação e do comércio com as Américas e a África Ocidental, com características de monopólio. A Carta-Patente da Companhia tinha quarenta e cinco artigos, com um conteúdo semelhante ao da Companhia das índias Orientais, de 1602.”

 (A COMPANHIA DAS ÍNDIAS OCIDENTAIS: UMA SOCIEDADE ANÔNIMA?).”

        O fato é que, já em 1603, as Ordenações Filipinas regulavam as sociedades do tipo "companhias". Seus integrantes não eram chamados de sócios ou acionistas, mas sim “companheiros”. Vejamos o texto das Ordenações.

                                                          

 TÍTULO XLIV.

Do contrato da Sociedade e Companhia.

Contrato de Companhia é o que duas pessoas, ou mais fazem entre si, ajuntando todos os seus bens, ou parte deles para para (sic)  melhor negócio e maior ganho.

E algumas vezes se faz até certo tempo, outras vezes simplesmente sem limitação dele; mas ainda que se faça sem limitação de tempo, morrendo qualquer dos companheiros, logo acabará o contrato da companhia, e não passará a seus herdeiros, posto que no contrato se declare, que passe a eles; salvo se Companhia fosse de alguma renda nossa, ou da República, que algumas pessoas houvessem tomado juntamente; porque nestes casos, ainda que alguns dos companheiros na renda faleça, passará o tal arrendamento a seus herdeiros pelo tempo, que ele durar, se assim foi dito no contrato declarado, e o herdeiro é pessoa diligente e idônea para perseverar na dita Companhia. 

1. Se o contrato da Companhia for feito entre algumas pessoas de todos os bens, que tiverem, logo o senhorio e posse dos tais bens se traspassará reciprocamente nos companheiros, sem ser necessária alguma apreensão corporal, ou ato algum, per que se alcance senhorio, ou posse de alguma coisa. E tudo o que qualquer dos companheiros adquirir, depois de feita a tal Companhia de todos os bens, per qualquer título que seja, se comunicará entre todos, e o domínio e posse deles se traspassará nos ditos companheiros. 

2. E quando o contrato da companhia não for de todos os bens, mas de parte deles, assim como de certo trato, ou negócio, aquilo somente se comunicará entre os companheiros, que cada um deles houver por seu trabalho, ou indústria no mesmo trato, ou negócio, e não aquilo, que cada um deles houver per outro modo fora da Companhia por respeito da sua pessoa, ou per benefício particular, que de alguém recebeu, assim como uma herança, ou legado, doação, ou outra coisa semelhante.

3. E fazendo algumas pessoas contrato de Companhia em matéria ilícita e reprovada, assim como em roubar, ou outra semelhante, o tal contrato será nulo, e de nenhum efeito e vigor. E se algum companheiro de Companhia lícita houver algum ganho per via ilícita, não poderá pelos outros companheiros ser constrangido e dar-lhes parte dele. Porém, se ele a der voluntariamente, e depois for condenado per sentença a restituir o que assim ganhou per meio ilícito, serão obrigados os ditos companheiros a restituir a parte do ganho ilícito que em si têm. Porém não serão obrigados a pagar a pena, em que o companheiro fosse condenado, salvo se fossem sabedores, que o dito ganho se houvera per modo ilícito, e com tudo quiserem haver sua parte dele, porque em tal caso pagarão as ditas penas.

4. O contrato de Companhia se desfaz por morte natural de qualquer dos companheiros. E ainda que fiquem outros alguns vivos, também quanto a eles acabará o dito contrato, salvo se a princípio se acordasse entre todos, que o tal contrato durasse entre os que vivos ficassem.

5. E assim mais se desfaz a Companhia, quando algum dos companheiros a renunciar, dizendo aos outros per si, ou per seu Procurador, que não quer mais ser seu companheiro, e isso quando no contrato da Companhia se não declarou o tempo, que havia de durar.

6. Porém quando o companheiro, que renunciar à Companhia no dito caso, o fizer por manha e engano, nem por isso ficará desobrigado da Companhia. (...)

(...)

8. E posto que antes do tempo da Companhia ser acabado nenhum dos companheiros se possa afastar dela, todavia em certos casos o poderá fazer:

Assim como, se algum dos companheiros for de condição tão áspera e forte, que com ele se não possam avir.

Ou se o que se afasta da Companhia alegar que é enviado per Nós, ou  pela República  a algum negócio:

Ou que lhe não é cumprida alguma condição, com a qual entrou na Companhia:

Ou se lhe foi tomada, ou embargada coisa, em que a Companhia é feita.

9. Não se declarando no contrato da Companhia, quanta parte do ganho, ou perda haverá cada um dos companheiros, entender-se-á, que cada um haverá assim do ganho, como da perda, iguais partes.

Não tolhemos porém, que os companheiros logo no tempo do contrato possam repartir entre si a perda e o ganho doutra maneira; porque poderá muitas vezes a indústria e saber de algum deles ser de mor valia e proveito para a mesma Companhia, que o cabedal, que os outros meterem, e assim será justo, que este tal tenha mais no ganho e menos na perda; não poderão porém os companheiros por tal pacto e condição, que um companheiro leve o ganho todo, e na perda não tenha parte, porquanto o tal contrato, como este, é ilícito e reprovado.

10. As dívidas, que se fizerem por respeito da Companhia e sociedade, dela mesma se hão de pagar, posto que a esse tempo seja já acabada.

E da mesma maneira se há de tirar da Companhia a perda e dano, que houve nas coisas dela, ou que aconteceu a qualquer dos companheiros nas suas coisas próprias por causa da tal Companhia.

Assim como, se sendo mandado um deles a certo negócio tocante à Companhia, o roubarem os ladrões no caminho, ou lhe matarem o cavalo, em que for, ou o escravo,  que levar.

11. E pelo mesmo modo toda a despesa e gasto, que se fizer em benefício da Companhia, se há de pagar dela.

Porém o que algum dos companheiros gastou fora da Companhia ainda que fosse em algum acontecimento, que tivesse origem por ocasião da Companhia, não se tirará, nem pagará dela. 

Assim como, se trazendo um companheiro a seu cargo escravos da Companhia, fosse ferido por algum deles, por lhe querer tolher que não fugisse; porque em tal caso o que gastar em se curar, não o haverá pela Companhia, mas ficará por sua conta e despesa particular.


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

OS JUROS NAS ORDENAÇÕES 4

           Já mencionei em outras postagens que, durante a vigência das Ordenações do Reino e mesmo no Império, o Brasil era um estado teocrático. Ainda farei outras postagens sobre este tema. No tocante aos juros, transcrevo a seguir notas de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas, onde constam extensas considerações sobre a proibição de cobrança de juros por parte das normas religiosas.

    As Constituições do Arcebispado da Bahia de 1710 definiam a usura como crime (parágrafo 940 – p. 327).



    Vejamos as considerações e transcrições efetuadas por Candido Mendes de Almeida, a respeito do entendimento da religião Católica sobre juros, até o século XIX:

 Direito Canônico

O Al. de 31 de. Janeiro de 1775 § 4 declarou que o dinheiro a juro é contrato proibido pelo Velho e Novo Testamento, e só tolerado em benefício do Co­mércio.

Barbosa no com. diz que em matéria de usuras, mais se devera atender aos Doutores de Direito Pontifício, do que aos Mestres em Teologia. Provavelmente pelo rigorismo que interpretavam as Sagradas Escrituras.

Direito Canônico e determinações da Santa Madre Igreja.

(...) para conhecimento dos leitores cató­licos, e que nesta matéria desejam saber o que pensa a Santa Madre Igreja, aqui expendemos o que diz o Cardeal Gousset no seu com. no art. 1905 do Código Civil Francês (...):

«Art. 1905. É permitido estipular interesses no simples empréstimo, seja de dinheiro, mercadorias, ou outras coisas móveis.»

Eis o com. de Gousset:

«Entende-se por interesse ou prêmio tudo que o emprestor recebe além da soma ou da coisa empres­tada, que se chama comumente capital, sorte prin­cipal, ou simplesmente principal.

«Pothier distingue, segundo os Teólogos, duas espécies de interesse; o interesse compensatório e o interesse lucrativo.

«O interesse compensatório é o que se percebe como garantia da perda causada pelo empréstimo, em indenização dos benefícios que o emprestor tiraria do seu dinheiro ou de qualquer outra coisa emprestada, se para si reservasse o uso. Este interesse não é um proveito para o emprestor; não é senão uma indenização que pode em consciência perceber.­

«O interesse lucrativo é o que se exige como uma recompensa, como o preço do empréstimo; é o in­teresse lucrativo, o lucro do empréstimo, que propria­mente se chama usura.

«Assim define-se comumente a usura, todo o interesse, todo o proveito além da sorte principal exi­gido do tomador, precisamente em virtude de emprés­timo do consumo; ou como s’exprime o  mesmo Juris­consulto,  lucrum supra sortem exactum, tantum propter officium mutuationis; lucrum ex mutuo exactum.

«O interesse é pois reputado lucrativo e usurário, todas as vezes que não pode ser considerado como uma justa compensação da perda ou da privação do proveito que se sofre, privando-se do seu dinheiro em benefício de outrem. Porquanto pode-se sem dúvida exigir-se interesses, ou antes uma indenização, quando há para o emprestor lucro cessante, ou dano emergente, em razão do empréstimo, ou qualquer outro título extensivo do empréstimo, i. e., que não entra na natureza do empréstimo, mas que é verdadeiramente separável do empréstimo: tal é o perigo extraordinário de perda da sorte principal, ou capital.

«Mas quando o emprestor não pode invocar nenhum destes títulos, e que a percepção dos interesses teria lugar precisamente vi mutui, julgamos que ele não pode em consciência, não obstante a lei civil, perceber interesses, por módicos que sejam.

«Foi sempre e é ainda, diz Bento XIV, a doutrina da Igreja Católica, estabelecida por acordo unânime de todos os Concílios, dos Padres, e dos Teólogos, que todo o proveito extraído do empréstimo, precisamente em razão do empréstimo, i. e., segundo a linguagem da Escola, sem que o emprestor tenha o título de lucro cessante, ou dano emergente, ou qual­quer outro título extrínseco ao empréstimo, é usurário e proibido pelo Direito natural, divino, e eclesiástico (de Synodo Diocesano liv. 7 cap. 47).

Continuando diz ainda Gousset:

«Este grande Papa ensinou a mesma doutrina em uma Carta Encíclica, dirigida aos Patriarcas, Arcebispos, Bispos e Ordinários da Itália. Essa Carta, que começa por estas palavras Vix pervenit, contém as se­guintes disposições:

«1o A espécie de pecado que se chama usura, e que tem o seu assento próprio no contrato de empréstimo (mutuo), consiste em que aquele que empresta, quer que em virtude do próprio empréstimo, que por sua natureza pede que se restitua somente tanto quanto se recebeu, se lhe dê mais do que se não emprestou; e pretende-se por isto, que além do seu capital se lhe dê um lucro em razão do empréstimo.

«É por isto que todo o lucro desta natureza é ilícito e usurário: Omne propterea hujus modi lucrum quod sortem superat, illicitun et usurarium est.

«2o Para desculpar esta mancha da usura, em vão se alegaria que este lucro não é excessivo, mas moderado; que não é grande, mas pequeno; que aquele de quem se exige em razão do empréstimo não é pobre mas rico; que empregará mui utilmente, quer em me­lhorar sua fortuna, quer na aquisição de novas pro­priedades, quer em um comércio lucrativo; porquanto consistindo a essência do empréstimo na igualdade entre o que é fornecido e restituído, esta igualdade uma vez restabelecida pela restituição do capital, o que pretende exigir, de quem quer que seja, alguma coisa mais em razão do empréstimo, vai contra a natureza deste contrato, que se acha já plenamente satisfeito pelo reembolso de uma soma equivalente; por conseguinte, se o emprestor recebe alguma coisa além do capital, está obrigado a restituir, por uma obrigação desta justiça que se chama comutativa, a qual ordena de guardar inviolavelmente nos contratos a igualdade própria a cada um, reparando-a exatamente, se for  violada.

«3o Mas, estabelecendo estes princípios, não se pretende negar que certos títulos, que não são intrínsecos ao empréstimo, nem inteiramente ligados à sua natureza, não possam algumas vezes concorrer fortuita­mente com ele, e dar um direito justo e legítimo de exigir alguma coisa acima do principal. Também não se nega que haja muitos outros contratos, de natureza inteiramente diferente do empréstimo, pelos quais pode-se colocar ou empregar o seu dinheiro, seja para obter rendas anuais, seja para fazer um comércio e tráfico lícitos, tirando disto lucro honesto.

«4o  Ora, como nesta multidão de diversos gêneros de contratos, se a igualdade não for observada, tudo  o que um dos contratantes receber de mais, produz, não a usura (não havendo empréstimo real ou paliado), mas outra espécie de injustiça que, não é menos real, e que consigo traz a obrigação de restituir. Pelo con­trário, se tudo aí se acha regulado conforme a jus­tiça rigorosa, não é duvidoso que estes diferentes gêneros de contratos não forneçam muitos meios lícitos de entreter e alargar o comércio pelo bem público.

Mas não permita Deus que Cristãos pensem que sejam as usuras, ou semelhantes injustiças, que possam concorrer para fazer florescer os comércios úteis, por isso que os oráculos sagrados nos dizem que é a justiça que eleva as nações e que o pecado torna os povos mise­ráveis (Provérbios cap. 14 v. 34).

«5o Mas é mister observar com cuidado que seria falsa e temerariamente que alguém se persuadisse, que se acha sempre, ou com o empréstimo, outros títulos 1egítimos, ou mesmo separadamente do empréstimo, outros contratos justos, por meio de cujos títulos ou contratos, todas as vezes que se empresta a outrem, o que quer que seja, dinheiro, trigo, ou qualquer outra coisa do mesmo gênero, sempre se permita receber algum lucro moderado, além da sorte principal assegurada ou inteira.

«Se alguém assim pensar, sua opinião seria por certo contrária, não só às divinas Escrituras, e ao juízo da Igreja Católica sobre a usura, como ao senso comum e à razão natural.

«Ninguém pode ignorar que se é obrigado, em muitos casos, a socorrer ao seu próximo pelo em­préstimo puro e simples, segundo estas palavras de Jesus Cristo: Não repilais quem vem pedir-vos emprestado (Mateus, cap. 5 v. 42); e que haja muitas circunstâncias em que se não possa fazer outro contrato justo e lícito senão o empréstimo.

«Assim quem quiser velar na segurança de sua consciência, deve primeiro que tudo examinar com cuidado se há  verdadeiramente, com o empréstimo, um título legítimo ou um contrato diferente do em­préstimo, que possa justificar ou isentar de qualquer mancha de usura o lucro que se trata de procurar.»

Terminando o seu com. diz ainda Gousset:

«Os Moralistas têm explicado as condições que se exigem para os diferentes títulos em virtude dos quais é permitido perceber algum lucro do empréstimo.

«Temendo afastar-me de mais do meu fim, conten­to-me em observar, que os Teólogos não concordando em todos os pontos que se ligam à questão da usura, de­ve-se  temer de cair em um rigorismo que não seria menos funesto à Moral Evangélica que o relaxamento dos que pretendem que pode-se sempre ter um  titulo legítimo em pró do interesse, prêmio, ou lucro de empréstimo ou mútuo.»

Perin no seu opúsculo - a Usura e a Lei de 1807 aponta quatro títulos por onde no mútuo é lícito o lucro: 1o lucrum cessans (a perda de um emolumento que provavelmente se colheria se se não emprestasse o dinheiro): 2o Damnum emergens (a saber, o dano de que o empréstimo seria a fonte direta): 3o periculum sortis (isto é, o perigo de perder o capital em razão da insolvabilidade do tomador): 4o  titulum legis (em virtude do qual se considera legítimo o lucro desde que é autorizado pela lei civil).

Mas este último título baseia-se num fato que pode ser contrário à moral, desde que o Legislador, ou por erro ou por iniquidade, promulgar uma lei contrária à severa moral e aos legítimos interesses da sociedade.

(...)