quinta-feira, 3 de julho de 2025

Escravos 1 (no Livro 4 das Ordenações Filipinas)

         O livro 4 das Ordenações Filipinas (íntegra aqui) e as notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida contêm muitas normas sobre escravidão. É imprudente aqui dizer que ali está toda a legislação a respeito, mas é razoável estimar que ali esteja boa parte do que vigorou até 13 de maio de 1888. Trata-se de tema por si só doloroso, mas que se mostra também cruel se o estudarmos no Direito do tempo em que a servidão era lícita no Brasil, pois ali temos normas obrigatórias e soluções que deviam ser impostas coercitivamente quando fosse pedida a tutela jurisdicional. 

        Vejamos a seguir o que há no livro 4 das Ordenações Filipinas e em suas notas de rodapé sobre escravidão.

        Antes, porém, algumas informações gerais.

    Conforme menciono em meu livro Direito Administrativo para Concurso de Juiz do Trabalho (EDIPRO, 2011, p. 225) , a palavra “escravo” passou a ser usada no século X: “Foi depois das campanhas de Otão, “o Grande”, e seus sucessores contra os povos eslavos que o grande número de cativos reduzidos à escravidão e distribuídos pelas várias partes do Império fez chamar slavussclavus – escravo ao servo [em nota de rodapé cito CAETANO, Marcello. História do Direito Português – Fontes – Direito Público. (1140-1495), 3ª ed. Lisboa: Verbo, 1992, p. 180.]

        Pela origem da palavra escravo e pela história da escravidão, já se sabe que não era a cor da pele das pessoas que as levaria à servidão. Alberto da Costa e SILVA traz a informação do tempo em que a cor da pele das pessoas passou a determinar a escravidão: “Teria sido no mundo islâmico - escreveu o historiador queniano Bethwell A. Ogot - que a pele negra se tornou símbolo de inferioridade e a África sinônimo de escravidão.” (A manilha e o libambo: a África e a escravidão. Rio de Janeiro : Nova Fronteira : Fundação Biblioteca Nacional, 2002, p. 59). Isto não significou que tenha cessado a escravização de pessoas brancas, pois isso continuou ocorrendo até o século XVIII - veja-se aqui e aqui. Tanto é que o livro 4 das Ordenações Filipinas usa as palavras “escravo” e “cativo”, que, como veremos, têm significados diferentes naquele contexto.

        No livro 4, pesquisando-se por “escrav”, vai-se encontrar 173 menções, entre texto e notas de rodapé. A primeira menção se dá ao se tratar de compras e vendas, pois, como se sabe, o escravo era vendável. Aqui já há uma nota de rodapé informativa:

T. de Freitas – Consol. arts. 550 e 586 § 6 notas diz o seguinte:  

«Nas vendas dos escravos são lícitas as seguintes cláusulas:

  «De serem libertados l. 16 pr., e l. 30 pr. ff. qui et à quib. manumiss, l. 20 § 2 ff. de manumiss.

  «De não serem libertados l. 9 § 2 ff. qui et à quib, manumiss. et. l. 9 ff. de manumiss.

  «De serem vendidos para fora de um lugar.

  «Nos dois primeiros casos acima é inútil a estipulação de cláusulas penais.

  «Assim como é livre vender escravos com a cláusula de não serem libertados (not. ao art. 530), também é possível deixá-los em testamento com esta mesma cláusula. – l. 9 § 2 ff. qui et à quib. manumiss. e l. 9 ff. de manumiss

   A cláusula de não serem libertados os escravos é imoral, se acha em desacordo com as nossas instituições religiosas e políticas, e não pode ser tolerada, máxime em vista do § 10 da L. de 18 de agosto de 1769; assim como a de ser vendido o escravo para fora do Império, por isso que o senhor entre nós é somente dono dos serviços do escravo, e não do seu corpo, como entre os Romanos.

  O Estado lhe deve proteção quando se quiser tentar semelhante expatriação (P. de 29 de Novembro de 1779).

  Consulte-se também sobre esta Ord. Silva Pereira – Rep. das  Ords. to. 3 notas (b) e (a) a pags. 859 e 863, importantes para consultar.

  O vendedor tem direito, no prazo da remissão, de reclamar o objeto vendido do poder do terceiro, e nesse sentido registra o mesmo Silva Pereira a seguinte nota do Des. Oliveira:

  «An hoc pactum producat actionem realem  contra tertium? Vide Berlich p. 2 concl. 2 ex. n . 11, Harpect. in § 4. Inst. de empt. et vend. n.11, Fontanel. – decs. 79 e 80, Corlead. – dec. 149 n. 56. Sed nos negative judicavimus na causa de apelação de Portalegre de João Tavares com Álvaro Pires, Escrivão Francisco Corrêa de Brito, em Fevereiro de 1678.»

        A próxima nota de rodapé também traz informações interessantes:

As causas de liberdade pelo nosso antigo Direito sempre foram reputadas causas pias (Barbosa com. n. 2), e por conseguinte gozando de todo o favor.

Entretanto uma decisão do Supremo Tribunal de 9 de Julho de 1832 publicada no Diário do Rio de Janeiro de 25 de Agosto do mesmo ano declarou, que não se podia conceder nestes casos liberdade aos escravos em prejuízo dos direitos de propriedade, i. e., contra o princípio aqui firmado.

Em vista de que diz este § em seu princípio toda a legislação Romana e Canônica em pró da liberdade dos cativos deve ser aceita e executada; nem seria possível que em uma época de liberdade a legislação outr’ora executada com tanto favor em pró dos escravos, se tornasse sem nenhum motivo ou lei de repugnante dureza.

São corolários da doutrina desta Ord. 1º - as Cartas Régias de 20 e 25 de Março de 1688 relativas ao excesso de castigo, que os senhores faziam nos escravos, registradas nos livros do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, e no Livro Verde da Relação da Bahia f. 87 v. in fine, criando-se para castigar os escravos uma casa pública com esse fim.

2º - 0 Decreto de 16 de Novembro de 1693 vedando lançar ferros, e pôr em cadeias os escravos por mandado somente de seus Senhores.

3º - 0 Decreto de 21 de Junho de 1702 mandando julgar breve e sumariamente na Relação da Bahia a queixa sobre a crueldade de um senhor com uma sua escrava, autorizando os Juízes para punirem o réu como julgassem digno, obrigando-o a vender as escravas que tinha, e declarando-o inábil  para  possuir outras. Pizarro – Memórias t. 5 pag. 251 nota (7).

4º - 0 Alvará de 10 de março de 1682 reduzindo a cinco anos o prazo da prescrição para a escravidão, e consignando quanto à prova da liberdade dos escravos e respectivo processo, a seguinte doutrina:

«Sendo caso que alguns dos que por benefício desta Lei devem ser livres estejam cativos: nos termos do fato notório serão repostos, por ofício de Juiz, em sua liberdade; e quando o fato não seja notório, e eles pretendam demandar os senhores poderão em todo o tempo usar de seu direito perante o Juiz competente, que obrigará os tais senhores lhes deem livres os dias necessários para se aconselharem e requererem suas Justiças, nomeando-lhes advogado que os defenda, o qual será pago à custa de minha Fazenda, quando constar ao dito Juiz que eles carecem de meios com que o possam satisfazer, e em um e outro caso será o conhecimento da causa sumário, pelos danos que do contrário resultariam, tanto aos senhores como aos escravos, da demora das causas ordinárias.

«A prova destes casos, arbitrária dos Julgadores que procuram conformar-se com as minhas Ordenações e na falta delas com as opiniões mais comuns dos Doutores, não excedendo, nem deixando de guardar as que justamente se introduziram em favor da liberdade, e dando sentença contra os escravos apelarão sempre ex-ofício, e dando-a, porém, contra os Senhores, a receberão se as partes a pedirem.»

5º - Por estilo da Casa da Suplicação, as causas de liberdade eram reputadas de maior quantia, para subirem por apelação, menos quando decabia o Senhor, que tinha de apelar.

Outros casos existem que provam o privilégio destas causas, e que se pode obrigar o Senhor a abrir mão de seu direito aos serviços do escravo, e que se pode ver em Perdigão Malheiros - A Escravidão no Brasil de § 95 usque 100.

Nos aditamentos (nota de JMBN: os aditamentos não estão incluídos na versão digital que publiquei)  a este liv. consulte-se a Provisão de 29 de Novembro de 1779, e Avs. de 15 de Dezembro de 1831, n. 263 - de 25 de Novembro de 1852, n. 388 - de 21 de Dezembro de 1855, e n. 480 - de 17 de Outubro de 1862.

        Como o tema é bastante volumoso, prosseguirei na próxima postagem.