quinta-feira, 31 de julho de 2025

Penhora de Escravos no Livro 4 das Ordenações Filipinas

         O livro 4 das Ordenações Filipinas não menciona expressamente a penhora de escravos, mas há nota de rodapé (ou comentário) a respeito. Há notícia de que o Museu do Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem, em seu acervo, um livro de registros de penhora de escravos.

        Quando um escravo era penhorado para garantir uma dívida, ele podia ser depositado em mãos de um depositário, como se pode ver no acórdão publicado em nota de rodapé:

Por acórdão da Relação do Rio de Janeiro de 29 de Abril de 1856 se decidiu, que o depósito do escravo que fugiu andando a jornal, tendo dado fiança para o fazer, não obriga o Depositário à entrega do mesmo escravo, uma vez que prove que não houve dolo ou culpa de sua parte; e nem sujeita-o às penas desta Ord. e nem às do t. 76 § 5.”

        Mesmo assim, a penhora de escravos sofria limitações, como se vê em outra nota de rodapé: “Esse mesmo art. 273 do Cod. do Com. em sua segunda parte proíbe dar-se em penhor comercial escravos e outros semoventes, o que está revogado pelo cap. 2 § 12 da novíssima lei hipotecária de 24 de Setembro de 1864.”

        O art. 273 do Código Comercial - Lei nº 556, de 25/06/1850.- revogado pelo Código Civil de 2002 - Lei nº 10.406, de 10/01/2002 - acesso em 28/7/2025) tinha o seguinte teor:

Art. 273 - Podem dar-se em penhor bens móveis, mercadorias e quaisquer outros efeitos, títulos da Dívida Pública, ações de companhias ou empresas e em geral quaisquer papéis de crédito negociáveis em comércio.


Não podem, porém, dar-se em penhor comercial escravos, nem semoventes.


Esta proibição durou 14 anos, pois a disposição da lei hipotecária mencionada (Decreto nº 1.237, de 24/09/1864 - acesso em 28/7/2025) tinha o seguinte teor: 


Art. 2º A hypotheca é regulada sómente pela Lei civil, ainda que algum ou todos os credores sejão commerciantes. Ficão derogadas as disposições do Codigo Commercial, relativas á hypotheca de bens de raiz.


    § 1º Só podem ser objecto de hypotheca:


  (...)


    Os escravos e animaes pertencentes ás propriedades agricolas, que forem especificados no contracto, sendo com as mesmas propriedades.


  (...)

    

    § 12. Fica derogado em sua segunda parte o art. 273 do Codigo Commercial.


        Não encontrei o conceito de penhora no Livro 4 das Ordenações Filipinas, nem nos livros 1, 2 e 3. Assim, transcrevo o conceito de penhora adotado no século XIX, em obra mencionada nas notas de rodapé do referido Livro 4, especialmente pelas informações extras ali contidas, quanto ao Direito da época relativo às penhoras.


Penhora é o ato judicial, pelo qual, em virtude do Mandado do Magistrado, se tiram os bens do poder do condenado, e se põe debaixo da guarda da Justiça, para segurança da execução.

Penhoras se não podem fazer por dívidas modernas nas rendas do Senado, que tem já aplicações cer tas, anteriores às ditas dívidas, Decreto de 11 de Junho de 1734. Assim mesmo se não podem fazer nos bens dos Concelhos, que têm aplicação própria, ou estão consignados  para dívidas mais antigas, Decreto da mesma data. Não pode fazer-se em Ofícios, nem em seus rendimentos, Decreto de 26 de Junho de 1689, vej. Resoluções de 7 de  Agosto de 1760, e de 9 de Junho de 1780, e Alvará de 7 de Janeiro de 1766; nem nas Tenças das Sortes, Alvará de 30 de Março de 1703, nem nos bens hipotecados à Misericórdia de Lisboa, para seguranca dos dinheiros, que ela dá a juro, nem ainda por dívidas Fiscais, Alvará de 22 de Junho de 1768 § 4. Penhora é proibido fazer-se nas Tenças assentadas no rendimento da Obra Pia, nem em outras quaisquer adições de Tenças, e Ordinárias, que andarem nas Folhas de outros quaesquer Almoxarifados, dadas a título de esmola, por servirem de alimentos a pessoas necessitadas, e a Comunidades Religiosas, Alvará de 24 de Julho de 1773. Ordenou-se pelo Alvará de 9 de Julho de 1761 que no Estado do Brasil se não pudesse fazer Penhora, Embargo, ou Execução alguma nos Escravos, que a Companhia do Grão Pará, e Maranhão vendesse, sem esta se achar inteiramente pa ga. Não pode fazer-se nos Ordenados, vencimentos, e emolumentos dos Guarda-Livros, e Caixeiros das Casas de Comércio, dos Pilotos, Mestres , Contra-mestres, Oficiaes,  Marinheiros, e mais pessoas das Equipagens dos Navios Mercantes, Artífices, e Serventes, que trabalham por jornal nos Arsenais Reais  da Cidade de Lisboa, e seu Termo, Alvará de 16 de Março de 1775, vej. Decreto de 13 de Dezembro de 1782; nem nos soldos dos Militares, nem nos mais bens necessários para serviço dos Quarteis, ou da Campanha, Alvará de 21 de Outubro de 1763 § 13. Mandou-se pelo Alvará de 17 de Janeiro de 1766 que não se fizessem penhoras em Ofícios, ou seus rendimentos; e todas as que estivessem feitas fossem nulas, impondo penas aos Juízes, e Oficiais, que tais Execuções ordenassem, e fizessem. (SOUZA, Joaquim José Caetano Pereira e. Esboço de um Dicionário Jurídico, Teorético, e Prático, remissivo às leis compiladas, e Extravagantes. Lisboa, Typographia Rollandiana, 1825, Tomo II,  verbete “Penhora”. - acesso em 28/7/2025) 

        O conceito de penhora do século XIX é basicamente o mesmo de hoje, que, em palavras simples, pode ser definida como a garantia dada na Justiça (bens móveis, imóveis, ou dinheiro), para que se possa contestar um processo de execução. O processo de execução é aquele em que se cobra dívidas ou outras obrigações (de fazer ou não fazer).

        No caso da jurisprudência acima citada, houve, provavelmente, o seguinte fato: João foi condenado - em processo civil - a pagar alguma dívida a Pedro. João não pagou a dívida voluntariamente. João era proprietário de escravos. Pedro  prosseguiu com o processo judicial contra João para executar a sentença de modo a cobrar a dívida. João ofereceu um escravo em penhora, ou a Justiça penhorou um escravo de João, para garantir o pagamento da dívida e para que João pudesse contestar a execução. O escravo foi “depositado” em mãos de um depositário judicial. Este depositário colocou o escravo para trabalhar a ganho, ou seja, realizar trabalhos (significado de "andar por jornal"), provavelmente repassando o que ganhasse para o depositário ou para pagar a dívida; enquanto “andava a jornal” o escravo fugiu e se passou a discutir em Juízo se o depositário tinha que reparar o prejuízo entregando o mesmo escravo ou outro escravo. E decidiu-se que o Depositário não estava obrigado a entregar o mesmo escravo, desde que provasse que não agiu com dolo ou culpa; e nem sofreria as penas prescritas nas Ordenações.

        Caso o leitor queira saber mais sobre a execução de sentença nas Ordenações Filipinas, procure, no Livro 3, a palavra “execução”.


domingo, 27 de julho de 2025

Casamento de Escravos no livro 4 das Ordenações Filipinas

         Não encontrei no texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas menção expressa ao casamento de escravos com pessoas livres. Mas, em nota de rodapé, se informa que era admitido o casamento do homem livre com mulher escrava, ou do homem escravo com mulher livre. Mas desse casamento não podia resultar comunhão de bens. As regras da Igreja Católica também regulavam o casamento de pessoas livres com pessoas escravas, segundo outra nota de rodapé: “Há mesmo nos casamentos católicos limitações a esta regra, como a Ord. deste liv. t. 105, e nos casamentos de pessoas livres com escravas.” As normas da Igreja Católica sobre casamentos com ou entre escravos estavam nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 (acesso em 26/07/2025). Estas regras são as seguintes:

CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA DE 1710

(...)

TÍTULO LXXI.

DO MATRIMÔNIO DOS ESCRAVOS

303. Conforme a direito Divino, e humano os escravos, e escravas podem casar com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhe não podem impedir o Matrimônio, nem o uso dele em tempo, e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento ou não possa seguir, e fazendo o contrário pecam mortalmente, e tomam sobre suas consciências as culpas de seus escravos, que por este temor se deixam muitas vezes estar, e permanecer em estado de condenação. Pelo que lhe mandamos, e encarregamos muito, que não ponham impedimentos a seus escravos para se casarem, nem com ameaças, e mau tratamento lhes encontrem o uso do Matrimônio em tempo, e lugar conveniente, nem depois de casados os vendam para partes remotas de fora, para onde suas mulheres por serem escravas, ou terem outro impedimento legítimo, os não possam seguir. E declaramos, que posto que casem, ficam escravos como de antes eram, e obrigados a todo o serviço de seu senhor.

304. Mas para que este Sacramento se não administre aos escravos senão estando capazes, e sabendo usar dele, mandamos aos Vigários, Coadjutores, Capelães, e quaisquer outros Sacerdotes de nosso Arcebispado, que antes que recebam os ditos escravos, e escravas, os examinem se sabem a Doutrina Cristã, ao menos o Padre nosso, Ave Maria, Creio em Deus Padre, Mandamentos da Lei de Deus, e da Santa Madre Igreja, e se entendem a obrigação do Santo Matrimônio, que querem tomar, e se é sua tenção permanecer nele para serviço de Deus, e bem de suas almas; e achando que a não sabem, ou não entendem estas coisas, os não recebam até as saberem, e sabendo-as os recebam, posto que seus Senhores o contradigam, tendo primeiro diligências necessárias, e as denunciações correntes, ou licença nossa para os receber sem elas, a qual lhe daremos, constando que se lhes impedirá o Matrimônio, fazendo-se as denunciações antes de se receberem. E conformando-nos com a Bula do Papa Gregório XIII, dada em 25 de Janeiro de 1585, mandamos que todos os Párocos, quando receberem alguns escravos dos novamente convertidos, em que haja suspeita de que estão casados na sua terra, (posto que não sacramentalmente) com eles dispensem no dito antigo Matrimônio.

        As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia não tinham eficácia restrita à comunidade eclesiástica. Como a Religião Católica era a oficial do Reino Português e, depois da independência, do Império do Brasil, suas normas também tinham eficácia no mundo secular (ou “braço secular”, segundo a linguagem de então). Isto porque o Direito Canônico era fonte subsidiária das Ordenações, conforme se vê não só do trecho a seguir do livro 4 das Ordenações Filipinas, como de diversos outros trechos (pesquise-se no livro 4 “cânones” e “Direito Canônico”):

Os Corregedores das Comarcas e Ouvidores dos Infantes, Mestres, Prelados, Condes, Capitães, e de quaisquer Senhores de terras, que forem postos em alguma Comarca, Cidade, Vila, ou em algum outro lugar, e os Juízes temporais, e aqueles que pomos em algumas Cidades, ou Vilas, sem limitação de tempo certo, durando o tempo de seus Ofícios, não poderão fazer casas de novo, nem comprar, nem aforar, nem escaimbar, nem arrendar bens alguns de raiz, nem rendas algumas, nem poderão receber doação de nenhuns bens móveis, ou de raiz, que lhe seja feita per alguma pessoa de sua jurisdição; salvo se for de seus ascendentes, ou descendentes, ou transversais dentro  no segundo grau inclusive, contado segundo Direito Canônico.


sábado, 26 de julho de 2025

Escravos de Companhias no Livro 4 das Ordenações Filipinas

             No livro 4 das Ordenações Filipinas, se fica sabendo que os proprietários de escravos podiam ser pessoas estatais, pessoas jurídicas, pessoas físicas e outros. As empresas eram chamadas Companhias, como até hoje são denominadas. Mas, diferentemente de hoje, os sócios e acionistas eram denominados companheiros. Estas companhias podiam ser proprietárias de escravos, como se vê deste texto que pode ser encontrado no link acima do livro 4, mediante pesquisa de palavras:

Assim como, se trazendo um companheiro a seu cargo escravos da Companhia, fosse ferido por algum deles, por lhe querer tolher que não fugisse; porque em tal caso o que gastar em se curar, não o haverá pela Companhia, mas ficará por sua conta e despesa particular”.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

Comércio de Escravos no Livro 4 das Ordenações Filipinas

        Em outra postagem mencionei notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida nas Ordenações Filipinas que descreviam os cativos como “Portugueses apresados nos Estados Muçulmanos da Costa do Mediterrâneo, e de Marrocos” (Livro 1). No Livro 2 das Ordenações Filipinas, há outra nota de rodapé explicando o significado de “cativos” naquele contexto: “Por Cativos se entendia o nacional que os Corsários Barbarescos aprisionavam, e detinham em servidão, e que eram resgatados pelo Governo e particulares.” Em nota do Livro 4, também se vê qual o sentido principal da palavra “cativos” nas Ordenações: “Tirar cativos, i.e., resgatar, remir Cristãos, presos ou escravizados por Maometanos e Mouros.” 

     Como se percebe, a Escravidão de europeus era atribuída a Corsários Barbarescos, Maometanos e Mouros (refiro-me somente ao período de 1500 a meados de 1800, e não à escravidão antes ou depois desse período). Sobre estes corsários há um texto interessante na Revista GEO nº 34 intitulado “Senhores Africanos, escravos europeus”, de autoria de Fred Langer. Não encontrei na revista sua data de edição, mas o artigo é de 2011, conforme consta no texto em alemão:  Afrikanische Herren, europäische Sklaven - aus GEO Juni 2011 - von Deep Roots - acesso em 17/07/2025). Este texto se refere a fatos ocorridos no Século XVIII e menciona piratas do norte da África que caçavam pessoas para escravizar. O texto começa narrando a abordagem de três navios ingleses por aqueles piratas, resultando na captura e escravização de 52 marinheiros. Depois informa que centenas ou milhares de cristãos foram escravizados nos séculos 16, 17 e 18. O texto credita as informações ao pesquisador Robert C. Davis, segundo o qual não há registros confiáveis sobre a escravidão de Europeus no Norte da África. Por isso, a partir de outros registros, foi estimado que, “entre 1580 e 1680 provavelmente havia uma população constante de cerca 35.000 escravos em Argel, Túnis, Trípoli, e em um punhado de pequenos assentamentos ao longo do litoral do Magrebe.” Pela mesma estimativa, Davis calcula que entre 1580 e 1680 “foram escravizados um milhão - possivelmente até 1,25 milhão de europeus”. Davis também informa que havia cativos no Marrocos, no Egito e em Constantinopla (então parte do Império Otomano). Ressalva que, em Constantinopla, dos 30 mil escravos que lá viveram entre 1500 e 1800, muitos vinham da África negra.

     Do texto da revista GEO ainda se extrai que, além da escravização de marujos, os piratas do norte da África fizeram incursões no litoral inglês em 1625 e, no verão daquele ano, raptaram cerca de 1.000 pessoas. Em 1627 os piratas argelinos sequestraram centenas de pessoas na Islândia. Em 1543 os caçadores de gente fizeram operações na Espanha; em 1544 aprisionaram 7.000 pessoas na Baía de Nápoles; 6.000 pessoas em Vieste, na Apúlia e, em 1566, 4.000 em Granada - Espanha. O texto também noticia que, quando as embarcações piratas não conseguiam transportar todos os prisioneiros, estes eram vendidos de volta aos seus parentes. Este resgate, segundo Langer, era módico; mas o resgate normal, pago por um inglês em troca da liberdade de um compatriota cativo, ficava no valor de 38 libras esterlinas. Ainda há notícia de apossamento de cerca de mil navios ingleses, franceses, alemães, espanhois e holandeses pelos piratas do norte da África no século XVII. Até estadunidenses foram aprisionados como escravos. Depois de sequestrados, o destino destes cativos era o porto de Salé, na costa atlântica do Marrocos, em cujo mercado, o Souk el-Ghezel, eram vendidos como escravos, segundo aponta o texto de Langer. O texto termina informando que, em 1816, Inglaterra e Holanda bombardearam Argel e, como fruto da rendição dos corsários, os escravos foram libertados. “Túnis, Trípoli e o Marrocos também se apressam para declarar a abolição da escravidão.

     Se havia corsários do norte da África que faziam razias para escravizar europeus, havia europeus (ingleses, holandeses, franceses e portugueses) e americanos (brasileiros) que compravam escravos na África negra; e havia piratas africanos e americanos que roubavam escravos dos traficantes ingleses, holandeses, franceses, brasileiros e portugueses (FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras – Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 94-95; 128). 

        Vimos acima como se dava o aprisionamento dos escravos brancos nos séculos XVI a XIX. Quanto aos escravos da África negra, pelo menos os portugueses obtinham escravos em decorrência de guerras com os nativos até por volta de 1630 (ver as postagens em que trato da obra de CADORNEGA aqui, aqui e aqui). “A partir da década de 1630, os portugueses dos Portos do Atlântico passaram a ser supridos pelos intermediários de Matamba e Kasanje, que por sua vez obtinham escravos nos reinos mais orientais, em especial Luba, Lunda, Kazembe e Lozi. Apesar de sempre procurar tirar o maior proveito possível das rivalidades entre os Estados nativos, somente depois de 1683 (data da última grande guerra entre os conquistadores brancos e Matamba) é que os portugueses deixarão de insistir em manter contato direto com as fontes produtoras do interior. As guerras de produção de escravos passarão, então, à órbita exclusiva dos africanos” (Birminggham, citado por FLORENTINO, obra citada, pp. 96 e 97). Eram guerras de produção de escravos, porque os vencedores faziam escravos os vencidos, e os vendiam, basicamente trocando “manufaturados europeus ou tabaco e aguardente americano por cativos”; estima-se que “cerca de três quartos dos africanos vendidos para as Américas tenham resultado de guerras” (FAGE, citado por FLORENTINO, obra citada, pp. 84-85). Uma vez chegados da África, os escravos eram postos à venda. No Rio de Janeiro, por exemplo, “eram concentrados sobretudo em armazéns da rua do Valongo. (...) Viajantes da época chegaram a assinalar a presença de grupos de cativos, unidos por correntes, caminhando pelas ruas da cidade, oferecidos de porta em porta” (Karasch, citado por FLORENTINO, obra citada, p. 137).  

     Desde que a compra de escravos na África fosse efetuada em colônia portuguesa (em Angola, por exemplo) e a venda ocorresse em Portugal, ou no Brasil, ou em outro domínio português, este comércio era regulado pelo Livro 4 das Ordenações Filipinas e pela legislação extravagante. 

     O livro 4, além de outras regulamentações sobre compra e venda de escravos, trata também dos vícios redibitórios. O Título XVII é específico sobre o tema, do qual destaco alguns trechos:

Qualquer pessoa, que comprar algum escravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se dele, o poderá enjeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder da tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro dos seis meses do dia, que o escravo lhe for entregue.                             

1. E sendo a doença de qualidade, ou em parte, que facilmente se deixe conhecer, ou se o vendedor se manifestar ao tempo da venda, e o comprador comprar o escravo sem embargo disso: em tais casos não o poderá enjeitar, nem pedir o que menos valia do preço, que por ele deu por causa da doença. Porém, se a doença, que o escravo tiver, for tão leve, que lhe não impida o serviço, e o vendedor a calar ao tempo da venda, não poderá o comprador enjeitar o escravo, nem pedir o que menos vale por causa da tal doença.

2. Se o escravo tiver algum vício do ânimo, não o poderá por isso o comprador enjeitar, salvo se for fugitivo, ou se o vendedor ao tempo da venda afirmasse, que o escravo não tinha vício algum certo, assim como se dissesse, que não era bêbado, nem ladrão, nem jogador; porque achando-se que ele tinha tal vício ao tempo da venda, o poderá enjeitar o comprador. Porém, ainda que por o escravo ter qualquer vício do ânimo (que não seja de fugitivo), e o vendedor o calar, não possa o comprador enjeitá-lo; poderá todavia pedir o que menos vale por causa do tal vício, pedindo-o dentro de um ano, contado no modo acima dito.

3. Se o escravo tiver cometido algum delito, polo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda o não declarar, poderá o comprador enjeitá-lo dentro de seis meses, contados da maneira, que acima dissemos. E o mesmo será, se o escravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.

4. Se o vendedor afirmar, que o escravo, que vende, sabe alguma arte, ou tem alguma habilidade boa, assim como pintar, esgrimir, ou que é cozinheiro, e isto não somente pelo louvar, pelo vender por tal, e depois se achar que não sabia a tal arte, ou não tinha a tal habilidade, poderá o comprador enjeitá-lo; porém, para que o não possa enjeitar, bastará que o escravo saiba da dita arte, ou tenha tal habilidade meãmente. E não se requere ser consumado nela.

5. Se o escravo, que se pode enjeitar por doente, falecer em poder do comprador, e ele provar que faleceu de doença, que tinha em poder do vendedor, poderá pedir, que lhe torne o preço, que por ele deu. E quando se o escravo enjeitar for fugitivo (como acima dissemos), poderá o comprador pedir o preço, que por ele deu, posto que ande fugido, com tanto que possa provar, que em poder do vendedor tinha o vício de fugitivo. E dará fiança a o buscar pondo nisso toda a diligência de sua parte,  e a o entregar ao vendedor, vindo a seu poder.

6. Enjeitando o comprador o escravo ao vendedor, tornar-lho-á, e o vendedor tornará o preço e a siza, que o comprador pagou, e assim o que tiver dado ao Corretor, não sendo mais que o que per Direito, ou Regimento lhe for devido. E assim mais pagará o vendedor ao comprador as despesas, que tiver feitas na cura do escravo, quando por causa da doença o enjeitar.

7. Se o escravo, que o comprador quiser enjeitar, for de Guiné, que ele houvesse comprado a pessoa, que de lá o trouxesse ou ao tratador do dito trato, ou ao mercador, que compra os tais escravos para revender, não poderá ser enjeitado, senão dentro de um mês, que lhe correrá do dia, que lhe for entregue, para dentro dele citar e demandar ao vendedor, que lhe torne o que por ele lhe deu, provando, que ao tempo entrega já era doente da doença, ou manqueira porque lho enjeita. O que haverá lugar, quando ambos estivessem em um mesmo lugar; porque não estando ambos nele, protestando o comprador ao Juiz do lugar, onde está, e mostrando o escravo a dois Physicos, se os houver, ou ao menos a um examinado, que digam, que é manco, ou doente da doença, ou manqueira, que tinha ao tempo, que lhe foi entregue, poderá citar e demandar ao vendedor dentro de outro mês: e assim dentro de dois meses contados do dia da entrega. E isto, estando o vendedor no Reino, porque estando fora dele, poderá o comprador protestando e fazendo a diligência acima dita, citá-lo dentro de um mês do dia, que chegar ao Reino.

     Nas notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida constam algumas informações de importância histórica e dando consta do significado das palavras.

Além da restituição do preço (...) o vendedor indenizará o comprador da sisa que houver pago, corretagem do costume, e das despesas que houver feito com a cura do escravo enjeitado por moléstia como no § 6.

     Esta regulamentação sobre escravos constantes das Ordenações teve alcance geral até 1831. Neste ano entrou em vigor a Lei de 7 de Novembro de 1831, a chamada Lei Feijó - acesso em 22/7/2025. Esta lei proibia o tráfico de escravos e declarava livres os que chegassem a partir de então ao Brasil. Assim, estas disposições das Ordenações, partir de 1831, diziam respeito aos escravos ladinos (que já estavam no Brasil e sabiam falar português) e não aos boçais (que chegavam da África e não sabiam falar português). Transcrevo aqui um artigo desta lei:

Art. 1º Todos os escravos, que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres. Exceptuam-se:

  1º Os escravos matriculados no serviço de embarcações pertencentes a paiz, onde a escravidão é permittida, emquanto empregados no serviço das mesmas embarcações.
2º Os que fugirem do territorio, ou embarcação estrangeira, os quaes serão entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados para fóra do Brazil.

        Como se pode ver em diversas obras, dentre as quais a de FLORENTINO acima citada, esta lei de 7 de novembro de 1831 era constantemente burlada.

        Em outra nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida é explicado o significado de Guiné: esta expressão compreendia todos os países da África que outr’ora abasteciam o mercado do Brasil de escravos.”

O mercador que comprava os escravos na África para revender se chamava tanganhão.

Physicos era a denominação dos Médicos.


sexta-feira, 11 de julho de 2025

Libertação de Escravos no Livro 4 das Ordenações Filipinas

         As Ordenações Filipinas tratavam a escravidão como uma instituição a que estavam sujeitas quaisquer pessoas, em geral as que, elas ou seus ancestrais, tivessem sido prisioneiros de guerra. A guerra tinha que ser justa. No Tomo II da História Geral das Guerras Angolanas (CADORNEGA, Antônio de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas – 1680 – Tomo II; Lisboa, Agência - Geral do Ultramar, Lisboa, 1972. Reprodução fac-similada da edição de 1940.), se tem uma ideia de como se decidia se uma guerra era considerada justa ou injusta: "a junta formada dos cidadãos, religiosos e teólogos foi de parecer que se podia fazer a guerra e que era justa." No livro 4 das Ordenações Filipinas (íntegra aqui) vamos encontrar menções a escravos mouros, tidos como pessoas de cor branca; nas notas de rodapé, há menção a escravos de cor branca; no livro 5 há menção a escravos de cor branca por 6 vezes. E há menção a escravos de cor negra, em geral denominados "Africanos".

        O Livro 4 das Ordenações Filipinas (incluindo as notas de rodapé) menciona a palavra “escravo” 127 vezes e “escrava”, 31 vezes. 

        As notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida são uma interessantíssima fonte de interpretação e atualização (até o século XIX) do Direito das Ordenações no Brasil. Vejamos algumas notas de rodapé.

“Os Expostos de cor lançados na roda são livres (Prov. de 22 de Fevereiro de 1823).” Expostos eram as crianças abandonadas. Veja-se em https://brasocentrico.blogspot.com/search?q=expostos

Havia mais de uma expressão para se referir à libertação de um escravo e uma destas expressões era “forrar um escravo”, ou seja, alforriá-lo; ou, ainda, dar-lhe a manumissão. Vejam-se estas notas de rodapé: 

“Escravo não pode forrar-se em inventário sem que algum herdeiro permita, tornando-o à sua parte (Res. de 6 de Março de 1854, em Av. n. 57 – de 26 de Janeiro de 1856).”

“O escravo que sai para fora do Império sem ser por fuga, ainda voltando com seu senhor, é livre (Av. n. 188 - de 20 de Maio de 1856).”

        Sobre a perseguição de escravos fugitivos, é interessante notar que não há no Livro 4 das Ordenações Filipinas menção a “Capitão-do-Mato”, mas sim Alfaqueque. A menção a alfaqueque se dá quando se diz como eram resolvidas as dúvidas sobre o preço de um escravo Mouro que seria trocado por cativo Cristão. Neste caso, o Alfaqueque funcionava como avaliador. Em nota de rodapé se informa que "Alfaqueque" significa "o resgatador de escravos, de prisioneiros, etc." Assim, a julgar pelo texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas, o nome jurídico do perseguidor de escravos fugitivos era Alfaqueque. Capitão-do-Mato provavelmente seria o nome popular de Alfaqueque.

        Havia outras situações em que o escravo era libertado, como era o caso do Decreto nº 1.303, de 28/12/1853, mencionado resumidamente em nota de rodapé: “Africano arrematado para servir fica livre e emancipado no fim de 14 anos (Dec. n. – de 22 de Dezembro de 1853).” A ementa deste decreto estava assim redigida: “Declara que os Africanos livres, cujos serviços foram arrematados por particulares, ficam  emancipados depois de quatorze anos, quando o requeiram, e providencia sobre o destino dos mesmos Africanos.” O destino aqui mencionado, era descrito no corpo do decreto: (...) “obrigação de residirem no lugar que for pelo Governo designado, e de tomarem  ocupação ou serviços mediante um salário.

        Outro caso de libertação era este: “O escravo dado a um filho por seu pai, sem título de doação, se aquele libertou-o, mantém-se a liberdade (Gasetta dos Tribunaes n. 76).

        Em se tratando sobre a liberdade dos escravos da Nação, havia a seguinte norma:

Sobre a liberdade dos escravos da Nação consulte-se os Avs. n. 34 – de 18 de Janeiro de 1860, e n. 358 – de 4 de Agosto de 1863, e Perdigão Malheiros – A Escravidão no Brasil nota (552).” Há um erro de leitura no texto integral do Livro 4 em pdf por mim disponibilizado, pois consta aviso 353, quando o número do aviso é 358. Escravos da nação eram os escravos que pertenciam ao Império; ao governo, para usar uma linguagem mais acessível. Nos dois Avisos acima mencionados, se tratava de escravos da Fábrica de Pólvora. Os textos dos dois avisos se encontram aqui. Transcrevo a seguir os dois avisos, para que o leitor possa dar sua interpretação a tais textos:

“N.º 34. -Aviso de 18 de Janeiro de 1860.

Declarando que ao Governo Imperial não cabe a atribuição de passar carta

de liberdade a escravos da Nação.

Rio de Janeiro. Ministério dos Negócios da Guerra em 18 de Janeiro de 1860.

Participando o Sr. Ministro da Justiça em Aviso datado de 14 do corrente que ao Governo Imperial não cabe a atribuição de passar carta de liberdade ao escravo da Nação Caetano Vicente, em serviço nessa Fábrica que a requereu; assim o comunico a Vm. para seu conhecimento, prevenindo-o porém de que em atenção à avançadíssima idade em que se acha o dito escravo, fica ele dispensado dos serviços a que é obrigado, continuando a perceber as vantagens de que goza.

Deus Guarde a Vm. - Sebastião do Rego Barros. - Sr. Coronel Diretor da Fábrica da Pólvora.

N. 358. - GUERRA. - Aviso de 4 de Agosto de 1863.

Declarando que as cartas de liberdade dos Escravos da Nação ao serviço da Fábrica da Pólvora devem ser passadas pelo Tesouro Nacional, mediante o pagamento de direitos e emolumentos a que estiverem sujeitos segundo as tabelas da Fazenda.

4. ª Diretoria Geral. - 2.ª Secção.- Rio de Janeiro. - Ministério dos Negócios da Guerra em 4 de Agosto 1863.

Suscitando-se dúvidas na Coletoria da Vila da Estrela sobre os emolumentos que devia arrecadar pela liberdade do inocente Manoel, filho do escravo Ovídio, fique Vm. na inteligência de que, sem atenção ao que se tiver praticado até hoje, as cartas de liberdade dos escravos da Nação ao serviço dessa Fábrica devem ser passadas pelo Tesouro Nacional, mediante o pagamento de direitos e emolumentos a que estiverem sujeitas segundo as tabelas da Fazenda.

Deus Guarde a Vm. -  Antonio Manoel de Mello.- Sr. Diretor interino da Fábrica da Pólvora.”

        Em outra nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas, se transcreve nota de Desembargador sobre questão relativa à liberdade de escravos. Estas “notas de Desembargadores” são muito citadas ao longo das notas de rodapé das Ordenações, embora muitas vezes não sejam notícia de julgamentos. Vejamos a nota:

“Silva Pereira no Rep. das Ords. to. 3 nota (b) à pag. 597 traz sobre esta Ord. a seguinte nota do Des. Oliveira que também aqui registramos:

«Julgamos que esta Ord. do § 4 era especial no seu caso, e que assim não se devia dela fazer regra, para que todo o senhor fosse obrigado a vender seu escravo, a quem dizia que o queria libertar, na causa de apelação de João Chrysostomo com José de S. Paio Lanhes, Escrivão Felix Carlos de Sousa, ano de 1730.» 

E no to. 1 nota (b) à pag. 250 apresenta outra nota do mesmo Des. nestes termos:

«Em um feito de Conde de Atalaya com os Frades de S. Paulo, que se sentenciou no ano de 1687, de que foi Escrivão Manoel Soares Ribeiro, julgamos que sendo por Alvará de Sua Magestade o dito Conde constrangido a vender uma propriedade para o convento dos ditos Frades, se lhe devia pagar a quinta parte mais da justa estimação dela, na forma desta Ord., a qual falando em caso tão favorável, como da liberdade de um Cristão cativo em poder dos Infiéis, se devia com maior razão praticar em todas as outras: o que se deve notar.»

Não se devendo exceder do justo preço, observa o mesmo Silva Pereira: que também se deverá consultar na nota (a) do mesmo tomo, à pag. já citada.

Consulte-se Borges Carneiro – Dir. Civ. liv. 2 t. 1 § 5 n. 8 nota (a) na primeira parte, de acordo com a nota supra do Des. Oliveira.

        Há outros casos de libertação de escravos no Livro 4, mas abordarei em outras postagens.

domingo, 6 de julho de 2025

Escravos e Cativos nas Ordenações Filipinas

        As expressões “escravo” e “cativo” não tinham, em geral, o mesmo significado no Livro 4 das Ordenações Filipinas (acesse a versão integral aqui). Não é fácil estabelecer uma distinção clara entre “escravos” e “cativos” a partir das Ordenações. De modo geral, pode-se dizer que, nas Ordenações, “cativos” são os prisioneiros de guerra portugueses e “escravos” são as pessoas que prestam serviços sem correspondente contraprestação financeira ou material. As pessoas que vieram ao Brasil na condição de escravos, provavelmente foram em algum momento cativos, ou seja, prisioneiros de guerra na África, antes de virem para o Brasil. Pelo menos esta condição de “prisioneiros de guerra” é fartamente mencionada no livro História Geral das Guerras Angolanas, do qual tratei extensamente em outras postagens (ver aqui, aqui e aqui). Instrutiva notícia sobre o comércio de pessoas entre Brasil e África pode ser encontrada em FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras – Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

        “Cativos”, nas Ordenações Filipinas eram, segundo Cândido Mendes de Almeida, em nota de rodapé do Livro 1, os “Portugueses apresados nos Estados Muçulmanos da Costa do Mediterrâneo, e de Marrocos”. Muitas das multas previstas nas Ordenações, se destinavam ao resgate destes cativos, havendo até um Ofício (hoje chamaríamos “cargo público”) destinado a arrecadar estas multas: era o Mamposteiro-mor, a quem cabia a “arrecadação de todas as rendas que tinham por fim o resgate dos cativos, na Costa Setentrional d'África e Marrocos. Havia um em cada Diocese, e constituía um Juízo, extinto pela L. de 4 de Dezembro de 1775. As rendas que entravam para o cofre dos Resíduos tinham esse destino, isto é, o resgate.” (...) “Tendo os Mamposteiros deixado de existir pela L. de 4 de Dezembro de 1775, passando suas atribuições para os Provedores, todas as multas e imposições destinadas aos cativos foram cobradas pela Fazenda Pública, até que cessando o cativeiro mourisco, tiveram elas diferentes destinos

        No Livro 2 das Ordenações Filipinas, há outra nota de rodapé explicando o significado de “cativos” naquele contexto:

Cativos. Entre Cativos e escravos faz diferença a legislação antiga.

Por Cativos se entendia o nacional que os Corsários Barbarescos aprisionavam, e detinham em servidão, e que eram resgatados pelo Governo e particulares.

Criou-se para esse fim uma renda administrada por um funcionário, instituído – Mamposteiro. Haviam Mamposteiros-mor e pequenos, aos quais se deu Regimento em 11 de Maio de 1560.

Tanto uns como outros foram abolidos pela L. de 14 de Dezembro de 1775 §§ 1, 2 e 14, passando suas atribuições para os Provedores das Comarcas.

Tendo cessado as correrias dos Barbarescos, desapareceu a necessidade desse resgate, e do imposto denominado da Redenção dos Cativos.

Vide sobre esta instituição, Borges Carneiro – Direito Civil de Portugal liv. 1 t. 3 §§ os que 43.”

        No livro 3 das Ordenações Filipinas, era considerado ofensivo dizer a alguém que era cativo: “Item, todo aquele, que difamar outro sobre o estado de sua pessoa, como se dissesse, que era seu cativo, liberto, infame, espúrio, incestuoso, Frade, Clérigo, ou casado, e em outros casos semelhantes a estes, que tocarem ao estado da pessoa, de qualquer qualidade que a causa do estado seja, pode ser citado para vir citado ao domicílio do difamado, que o manda citar

        No livro 4 das Ordenações Filipinas se menciona a possibilidade de alguém que tenha um mouro cativo ser obrigado a vender este mouro para resgatar um cristão cativo em terra de mouros. Também se contempla a hipótese do resgate não ser feito por motivo do cristão cativo morrer ou se tornar “elche”. Elche era o apostata, arrenegado, o Cristão que se tornou Mouro.

        Há uma nota de rodapé no Livro 4 em que se discute se a liberdade dada aos índios no Brasil e na Ásia deveria ter idêntico entendimento quanto aos indígenas de Angola. Nesta nota se observa também que, enquanto estavam em Angola, os que viriam a ser escravos, ainda eram chamados de cativos, provavelmente por ostentarem a condição de prisioneiros de guerra; interessante também notar que o Brasil era designado por “Estado”:

Pelo que respeita à liberdade dos Índios da Ásia existe o Al. de 2 de Abril de 1761 declarando que sendo batizados ficariam hábeis para todos os empregos, sendo preferidos aos estranhos; não se devendo trata-los por negros ou mestiços. 

Sobre a liberdade dos indígenas de Angola existe a Carta Régia de 5 de Dezembro de 1613, cuja integra não conhecemos.

 Mas na Collecção de Justino vem o seguinte transunto: sumpto   r

«Por Carta Régia de 5 de Dezembro de 1613 foi determinado, a instâncias do Procurador-Geral dos Jesuítas,  que o Desembargo do Paço consultasse se era justo observar-se em Angola a liberdade dos Índios do Brasil

Parece que esta súplica não foi atendida, por isso que o tráfego de Africanos continuou com o aplauso ou tolerância da Metrópole.

Por esta causa em em 18 de Março de 1684 se expediu um Alvará contendo o Regimento da ordem com que se haviam de embarcar os Negros cativos de Angola para o Estado do Brasil, posteriormente alterado pelo Al. de 22 de Janeiro de 1810.

Em 3  de Março de 1741 expediu-se outro Alvará impondo a  pena de marca de ferro em uma das espáduas aos Negros que se achassem nos Quilombos.”

        Em nota do Livro 4, também se vê qual o sentido principal da palavra “cativos” nas Ordenações: “Tirar cativos, i.e., resgatar, remir Cristãos, presos ou escravizados por Maometanos e Mouros.” 

       Outro ponto interessante era a obrigação (sob pena de deserdação) dos filhos em remir eventual cativeiro dos pais, ou dos pais em remir o cativeiro dos filhos (no caso, cativeiro junto aos Maometanos e Mouros).

        O livro 5 das Ordenações Filipinas menciona também várias vezes a palavra cativo, mas isso será objeto de outra postagem quando da análise de tal livro.

    Enfim, pela linguagem das Ordenações Filipinas, alguém poderia ser cativo sem ser necessariamente escravo e alguém poderia ser escravo sem ter sido cativo (ou seja, sem ter sido prisioneiro de guerra).