quinta-feira, 31 de julho de 2025

Penhora de Escravos no Livro 4 das Ordenações Filipinas

         O livro 4 das Ordenações Filipinas não menciona expressamente a penhora de escravos, mas há nota de rodapé (ou comentário) a respeito. Há notícia de que o Museu do Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem, em seu acervo, um livro de registros de penhora de escravos.

        Quando um escravo era penhorado para garantir uma dívida, ele podia ser depositado em mãos de um depositário, como se pode ver no acórdão publicado em nota de rodapé:

Por acórdão da Relação do Rio de Janeiro de 29 de Abril de 1856 se decidiu, que o depósito do escravo que fugiu andando a jornal, tendo dado fiança para o fazer, não obriga o Depositário à entrega do mesmo escravo, uma vez que prove que não houve dolo ou culpa de sua parte; e nem sujeita-o às penas desta Ord. e nem às do t. 76 § 5.”

        Mesmo assim, a penhora de escravos sofria limitações, como se vê em outra nota de rodapé: “Esse mesmo art. 273 do Cod. do Com. em sua segunda parte proíbe dar-se em penhor comercial escravos e outros semoventes, o que está revogado pelo cap. 2 § 12 da novíssima lei hipotecária de 24 de Setembro de 1864.”

        O art. 273 do Código Comercial - Lei nº 556, de 25/06/1850.- revogado pelo Código Civil de 2002 - Lei nº 10.406, de 10/01/2002 - acesso em 28/7/2025) tinha o seguinte teor:

Art. 273 - Podem dar-se em penhor bens móveis, mercadorias e quaisquer outros efeitos, títulos da Dívida Pública, ações de companhias ou empresas e em geral quaisquer papéis de crédito negociáveis em comércio.


Não podem, porém, dar-se em penhor comercial escravos, nem semoventes.


Esta proibição durou 14 anos, pois a disposição da lei hipotecária mencionada (Decreto nº 1.237, de 24/09/1864 - acesso em 28/7/2025) tinha o seguinte teor: 


Art. 2º A hypotheca é regulada sómente pela Lei civil, ainda que algum ou todos os credores sejão commerciantes. Ficão derogadas as disposições do Codigo Commercial, relativas á hypotheca de bens de raiz.


    § 1º Só podem ser objecto de hypotheca:


  (...)


    Os escravos e animaes pertencentes ás propriedades agricolas, que forem especificados no contracto, sendo com as mesmas propriedades.


  (...)

    

    § 12. Fica derogado em sua segunda parte o art. 273 do Codigo Commercial.


        Não encontrei o conceito de penhora no Livro 4 das Ordenações Filipinas, nem nos livros 1, 2 e 3. Assim, transcrevo o conceito de penhora adotado no século XIX, em obra mencionada nas notas de rodapé do referido Livro 4, especialmente pelas informações extras ali contidas, quanto ao Direito da época relativo às penhoras.


Penhora é o ato judicial, pelo qual, em virtude do Mandado do Magistrado, se tiram os bens do poder do condenado, e se põe debaixo da guarda da Justiça, para segurança da execução.

Penhoras se não podem fazer por dívidas modernas nas rendas do Senado, que tem já aplicações cer tas, anteriores às ditas dívidas, Decreto de 11 de Junho de 1734. Assim mesmo se não podem fazer nos bens dos Concelhos, que têm aplicação própria, ou estão consignados  para dívidas mais antigas, Decreto da mesma data. Não pode fazer-se em Ofícios, nem em seus rendimentos, Decreto de 26 de Junho de 1689, vej. Resoluções de 7 de  Agosto de 1760, e de 9 de Junho de 1780, e Alvará de 7 de Janeiro de 1766; nem nas Tenças das Sortes, Alvará de 30 de Março de 1703, nem nos bens hipotecados à Misericórdia de Lisboa, para seguranca dos dinheiros, que ela dá a juro, nem ainda por dívidas Fiscais, Alvará de 22 de Junho de 1768 § 4. Penhora é proibido fazer-se nas Tenças assentadas no rendimento da Obra Pia, nem em outras quaisquer adições de Tenças, e Ordinárias, que andarem nas Folhas de outros quaesquer Almoxarifados, dadas a título de esmola, por servirem de alimentos a pessoas necessitadas, e a Comunidades Religiosas, Alvará de 24 de Julho de 1773. Ordenou-se pelo Alvará de 9 de Julho de 1761 que no Estado do Brasil se não pudesse fazer Penhora, Embargo, ou Execução alguma nos Escravos, que a Companhia do Grão Pará, e Maranhão vendesse, sem esta se achar inteiramente pa ga. Não pode fazer-se nos Ordenados, vencimentos, e emolumentos dos Guarda-Livros, e Caixeiros das Casas de Comércio, dos Pilotos, Mestres , Contra-mestres, Oficiaes,  Marinheiros, e mais pessoas das Equipagens dos Navios Mercantes, Artífices, e Serventes, que trabalham por jornal nos Arsenais Reais  da Cidade de Lisboa, e seu Termo, Alvará de 16 de Março de 1775, vej. Decreto de 13 de Dezembro de 1782; nem nos soldos dos Militares, nem nos mais bens necessários para serviço dos Quarteis, ou da Campanha, Alvará de 21 de Outubro de 1763 § 13. Mandou-se pelo Alvará de 17 de Janeiro de 1766 que não se fizessem penhoras em Ofícios, ou seus rendimentos; e todas as que estivessem feitas fossem nulas, impondo penas aos Juízes, e Oficiais, que tais Execuções ordenassem, e fizessem. (SOUZA, Joaquim José Caetano Pereira e. Esboço de um Dicionário Jurídico, Teorético, e Prático, remissivo às leis compiladas, e Extravagantes. Lisboa, Typographia Rollandiana, 1825, Tomo II,  verbete “Penhora”. - acesso em 28/7/2025) 

        O conceito de penhora do século XIX é basicamente o mesmo de hoje, que, em palavras simples, pode ser definida como a garantia dada na Justiça (bens móveis, imóveis, ou dinheiro), para que se possa contestar um processo de execução. O processo de execução é aquele em que se cobra dívidas ou outras obrigações (de fazer ou não fazer).

        No caso da jurisprudência acima citada, houve, provavelmente, o seguinte fato: João foi condenado - em processo civil - a pagar alguma dívida a Pedro. João não pagou a dívida voluntariamente. João era proprietário de escravos. Pedro  prosseguiu com o processo judicial contra João para executar a sentença de modo a cobrar a dívida. João ofereceu um escravo em penhora, ou a Justiça penhorou um escravo de João, para garantir o pagamento da dívida e para que João pudesse contestar a execução. O escravo foi “depositado” em mãos de um depositário judicial. Este depositário colocou o escravo para trabalhar a ganho, ou seja, realizar trabalhos (significado de "andar por jornal"), provavelmente repassando o que ganhasse para o depositário ou para pagar a dívida; enquanto “andava a jornal” o escravo fugiu e se passou a discutir em Juízo se o depositário tinha que reparar o prejuízo entregando o mesmo escravo ou outro escravo. E decidiu-se que o Depositário não estava obrigado a entregar o mesmo escravo, desde que provasse que não agiu com dolo ou culpa; e nem sofreria as penas prescritas nas Ordenações.

        Caso o leitor queira saber mais sobre a execução de sentença nas Ordenações Filipinas, procure, no Livro 3, a palavra “execução”.


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