Esta parte do livro 4 das Ordenações Filipinas está entre as mais desagradáveis de serem lidas, pois trata muito desapiedadamente as mulheres escravas. Mas sempre é bom lembrar que era o tratamento que o Direito dava às escravas desde, pelo menos, o Império Romano, que certamente se inspirava em normas muito mais antigas. Por isso, tais normas si dirigiam a escravas brancas ou negras. Aqui se deve lembrar, mais uma vez, que o termo “escravo” se origina de “eslavo”, em face da grande escravização de eslavos no século 9. Antes eram chamados “servos”.
As diversas situações que podem ocorrer com os filhos das escravas são um dos temas objeto de regulamentação pelo Livro 4 das Ordenações Filipinas. Uma destas situações envolve a paternidade do peão e a maternidade da escrava. O peão era aquele que não era nobre, cavaleiro, ou fidalgo. Ou, segundo nota de Cândido Mendes de Almeida, era “o homem a pé, plebeu, que não era nobre ou cavaleiro. Também se escreve pião.”
O texto das Ordenações é esse:
“E não havendo filhos legítimos, herdarão os naturais todos os bens e herança de seu pai, salvo a terça, se a o pai tomar, da qual poderá dispor, como lhe aprouver. E isto mesmo haverá lugar no filho, que o homem solteiro peão houver de alguma escrava sua, ou alheia, se por morte de seu pai ficar forro.”
Há mais informações e opiniões nas notas de rodapé:
“Escrava sua, ou alheia.
A Ord. do liv. 5 t. 18 pr. coloca na mesma escala a meretriz e a escrava expressando-se assim: mulher que ganha dinheiro por seu corpo, ou com escrava.
Esta parte da Ord. é uma exceção à regra supra.
«O versículo - ou alheia, diz Monsenhor Gordo, parece ter sido derivado da opinião prevalecida no Foro. Veja-se Antônio da Gama - Dec. 312.»
Em verdade a Ord. Manoelina não continha o versículo ou alheia, e como, por Direito Romano, o filho da escrava própria não dependia para ficar livre ou forro da declaração - se por morte de seu pai ficar forro, parecia a Ord. correctória daquele Direito, e mais austera (Gama - Dec. 86, 167 e 312).
E neste sentido entenderam o acrescentamento das palavras ou alheia Bento Gil - de Honestate cap. 10 de n. 14 em diante, Cardoso - de Judic. na palavra - Servus n. 79, Pereira de Castro - Dec. 12 n. 11, 12 e 13, o melhor com. desta parte da Ord., Themudo - p. 1 Dec. 61, e p. 4 Dec. 5, além de outros que aponta Silva Pereira no Rep. das Ords. to. 2 nota (b) à pag. 473, declarando que o filho da própria escrava consegue tacitamente a sua liberdade, independentemente de declaração do pai em testamento ou aliunde.
Cumpre porém observar que contra esta torrente opõe-se Thomé Vaz - All. 6 de n. 13 em diante, mas sem fundamento jurídico.
Referindo-se a esta parte da Ord. diz T. de Freitas na nota 2 ao art. 212:
«Esta disposição só procede (Rep. das Ords. to. 2 pag. 473) quanto ao filho da escrava alheia, e não quanto ao nascido de escrava própria. Este último reputa-se livre pelo próprio fato de sua filiação; portanto não carece de que seu pai o liberte expressamente. Ora este efeito da filiação natural dá-se atualmente, com tanto que o pai tenha reconhecido o filho por escritura pública ou por testamento conforme a lei nova de 1847 art. 3.»
Discordando da doutrina de Perdigão Malheiros sobre a inteligência do art. 3 da L. de 1827 diz in fine:
«Coerentemente, no caso acima indicado no Rep. das Ords. to. 2 pag. 473, relativo às finais palavras da Ord. liv. 4 t. 92 pr., bem se vê que, nem a favor da liberdade, reputo admissíveis outras palavras que não sejam as do art. 3 da mencionada lei.»
P. Malheiros na obra - Escravidão no Brasil § 25 nota 172, contesta a inteligência da Consol. por ampliativa das restrições da L. de 1847 desta forma:
«Casos há, porém, em que, não obstante escrava a mãe durante todo esse tempo, e em que portanto deverá o filho nascer escravo, ele é todavia livre e ingênuo. - Tal é, v. g., o de ser seu pai o próprio senhor de tal escrava. A Ord. liv. 4 t. 92 pr. assim se deve entender nas palavras finas - se por morte de sue pai ficar forro - ; porque repugna ao Direito Natural que alguém possua como seu cativo seu próprio filho, nem as nossas leis isto permitem desde que negam o direito de vendê-los, e implicitamente o domínio, nem já o consentia o Direito Romano, desde Diocleciano, proibindo vender os filhos e negando propriedade sobre eles.» Na nota 172 diz:
«L. 3 Cód. Comm. de manumis. VII, 15; Nov. 78 cap. 4 - Neque enim quilibet eum putaturus erit... proprios... filios ex suo natos semine, adhuc relinquere servituros - Arouca à L. 5 § 1 Dig. de stat. hom.; - Repert. das Ord. v. filho natural do peão e de escrava sua, nota b, com vários DD. v. si fuerit ex ancilla propria, tacite libertatem a Lege consequitur.
«E assim decidiu unanimemente o Instituto dos Advogados Brasileiros em sessão de 22 de Junho do ano de 1859.
«A distinção (não haver o pai disposto dele até sua morte) que faz o Padre Bremeu no seu Universo Jurídico cit. § 2 n. 2 v. Esta conclusão, etc. é inaceitável por contrária à Filosofia do Direito, e aos princípios correlativos do nosso direito na matéria, assim como ao espirito do século e ao progresso da civilisação cristã.
«Igualmente não é aceitável a restricção que faz a Consol. das Leis Civis 2ª edição pag. in fine, quando exige o reconhecimento do pai por escritura pública ou testamento; porque amplia a Lei de 2 de Setembro de 1847 a casos de que ela não cogitou.»
A esta doutrina, que se acha reproduzida na Revista Jurídica de 1865 pag 60, prestamos nossa adesão, tanto mais quanto não podendo por nosso Direito a Lei geral posterior revogar a especial anterior sem que dela se faça expressa menção (Ord. do liv. 2 t. 44), é claro que havendo na presente Ord. uma graça ou beneficio especial em pró da liberdade, não podia a L. de 1847 derogá-la, sem que se fizesse expressa menção.
Se por morte de seu pai ficar forro.
Em 1831 a 18 de Outubro foi julgado na Relação da Côrte pelos Juízes Werneck, Dr. Oliveira e Barbosa, Escrivão Assis, que sendo o escravo filho nomeado em testamento podia herdar, ainda que não tivesse ficado livre quando faleceu seu pai.
Em grau de Revista no 1º de Outubro de 1832, foi mandado rever este feito por estar em notória oposição com a lei os fundamentos daquele julgado.
Esta singular decisão foi assinada por cinco Juízes, havendo dois vencidos Petra e Fragoso.
Eram as partes recorrentes Manoel Barbosa Guimarães e outros, e recorrida Ana parda.”
Os juristas da época travavam várias discussões sobre os escravos. Uma delas (cruel, é verdade) era sobre a propriedade dos filhos das escravas. Do que consta das notas de rodapé do Livro 4, há citações do Corpus Juris Civilis. Estas citações nem sempre permitem se conferir com o “Corpus”. Fiz algumas tentativas e, quando consegui localizar, referenciei no exemplar que possuo. Vamos às notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida sobre os filhos das escravas. No livro de Perdigão Malheiros, acima mencionado e com dois links para acesso, há várias digressões a respeito. Mas no livro é interessante que boa parte das assertivas são baseadas na legislação romana, havendo, é claro, menção às Ordenações.
Vejamos aqui outras discussões constantes nas notas de rodapé sobre escravas e seus filhos.
“T. de Freitas na Consol. nota (4) ao art. 1206 exprime-se nestes termos:
«Quando os bens doados foram escravos, é aplicável a disposição da lei nos filhos destas, nascidos antes ou depois do falecimento dos doadores, como se fossem frutos? Tenho constantemente respondido pela afirmativa, porque os filhos dos animais são frutos, e perfeita é a paridade entre estes e os filhos das escravas.
«Em nosso Foro se tem invocado contra esta solução o § 37 das Institutas liv. 2 t. 1 de rerum divisione, (Nota de JMBN: ver Cuerpo de Derecho Civil Romano, ed. Lex Nova, Valladolid, 2004, p. 36, Tomo I) onde se diz que os filhos das escravas não se reputam frutos. A singularidade desta asserção, ditada somente por sentimento da dignidade humana, torna-se manifesta, quando nesse mesmo § das Institutas se reconhece que as crias dos animais são frutos da mesma maneira que o leite e a lã.
«Quanto mais que este § das Institutas regula privativamente as relações entre o usufrutuário e o nu proprietário, quando o usufruto consiste em escravos. Posto que haja semelhança, não são idênticas, e por tanto variam em seus efeitos a situação dos usufrutuários e dos herdeiros obrigados à colação.
«O Direito Romano não nos presta auxílio nesta questão, por quanto depreende-se da L. 5 § 1 ff. de dot. collat. que não vem à colação os frutos dos bens doados em dote. É tão razoável a solução afirmativa, que o Código da Luiziana art. 1362 declara propriedade dos descendentes donatários as crias que podem nascer das escravas doadas.
«Também são frutos os juros do dinheiro doado, e por isso o co-herdeiro deve conferir os posteriores à morte dos ascendentes até o tempo das partilhas (Almeida e Souza - Obrig. recip. § 675).»
A opinião contrária nos parece mais jurídica, e consentânea com o espírito cristão, e da dignidade humana. Ela foi bem desenvolvida pelo distinto Jurisconsulto Brasileiro - Perdigão Malheiro, no seu interessante opúsculo - A escravidão no Brasil § 79 e 71 que reproduzimos:
«Uma grave questão se levanta relativamente aos filhos das escravas que estão em usufruto a alguém. A quem pertencem? Foi esta velha questão longamente debatida entre os Jurisconsultos Romanos, vacilando Scevola e outros, atribuindo-os ora ao usufrutuário como frutos à semelhança das crias dos animais, ora a nu proprietário: até que prevaleceu a opinião de Bruto, que era a segunda (Institutas § 37 de divis. rer. 2 § 1, e Ulpiano 68 ff. de usufr. 7. § 1. Vetus fuit quæstio - in partus ad fructuarium pertineret? Sed Bruti sententia obtinuit, fructuarium in eo locum non habere: neque enim in fructu hominis homo esse potest; hac ratione, nec usumfructum in eo fructuarius habebit).
«Esta decisão não teve, porém por verdadeiro fundamento a razão que se lê em alguns textos do Digesto de se não deverem considerar frutos os filhos das escravas por isso que não pode ser fruto o homem, para quem todos os frutos foram criados. Mas sim a que se lê em outro texto, que o usufrutuário só pode pretender os frutos propriamente ditos: ora, as escravas não são destinadas para dar filhos, e só para trabalhar. É uma razão de dignidade humana, pela qual repugna igualar a mulher, embora escrava, a uma jumenta ou outro animal semelhante.
«E se a escrava é dada a herdeiro obrigado à colação, devem os filhos ser trazidos a ela do mesmo modo que a mãe? - É questão melindrosa. Quanto aos nascidos depois do falecimento de doador, não há duvida que devem sê-lo.
«Mas, quanto aos nascidos durante a vida do mesmo, mais difícil é a solução. Se o herdeiro fosse simples usufrutuário (como pode acontecer, segundo os termos da concessão), seria fora de dúvida que os filhos das escravas deviam ser trazidos à colação, por lhe não pertencerem.
«Se porém, ele não é simples usufrutuário, parece que, não obstante haver adquirido o domínio, e poder mesmo alienar, é todavia obrigado a conferir também os filhos das escravas como acessórios que acompanham a condição e sorte do ventre; a doação, em tal caso, traz consigo a cláusula implícita da sua suspensão, e mesmo da resolução da propriedade, se se verificar na época competente que excede as forças do doador e ofende as legítimas dos co-herdeiros.
«Tanto assim, acrescenta o mesmo Jurista, que, se o escravo sujeito à colação falece mesmo em vida do doador, entende-se que pereceu por conta do acervo, e não vem à colação por tanto o seu valor (L.2 § 2 ff. de collation; argumento da Ord. deste liv. t. 97 pr. e § 14 e 15, Consol. nota 4 ao art. 1206 e nota 2 in fine no art. 1216).»
Na nota 363 observa mais, referindo-se às Institutas § 37 de divisione rerum e Ulpiano L. 28 ff. de usufruct.
«Em tese eram os filhos das escravas equiparados às crias dos animais, aliás reputadas frutos (L. 68 § 1 ff. de usufruct. e Instit. § 37 cit.), e como tais, a titulo de acessão natural pertenciam ao senhor das mães segundo a regra - partus sequitur ventrem.»
E na nota 310 observa mais:
«As opiniões se acham divididas no nosso Foro e Tribunais a respeito da questão:
«Eu mesmo segui por muito tempo a opinião de que se não deveria conferir os filhos havidos antes do falecimento do doador. Mas estou convencido hoje de que é mais acertada a opinião contrária.
«A faculdade de alienar, conferida ao beneficiado, não é inconciliável com a obrigação de conferir, que tem por fim especialíssimo a igualdade dos quinhões hereditários dos descendentes, herdeiros forçados ou necessários.
«O princípio - partus sequitur ventrem tem aqui toda a aplicação. A questão acha-se submetida ao Poder Legislativo para interpretar autenticamente a Lei (Relatório do Ministério da Justiça de 1866).”
USUFRUTO DE ESCRAVOS
Outra nota de rodapé trata do usufruto de escravos:
“T. de Freitas na Consol. art. 174, referindo-se à Ord. do liv. 1 t. 88 § 6, diz o seguinte:
«Por morte da mãe o pai é legítimo administrador e usufrutuário dos bens dos filhos, enquanto estiverem sob seu poder; e tais bens deve o Juiz dos Órfãos deixar em poder do pai, depois do inventário e partilha.»
E em nota acrescenta:
«Neste caso o pai tem um direito real de usufruto, criado pela Lei. Os Juízes dos Órfãos não podem obrigar o pai a vender os bens do seu usufruto para empregar o preço dele em compra de bens de raiz, ou de Apólices da Dívida Pública, ou de ações de Companhias. Tudo isto pode fazer com consentimento do pai, e coagí-lo é um abuso de autoridade.
«Os filhos das escravas deste usufruto legal reputam-se frutos, e pertencem ao pai? Resolvo negativamente com o Direito Romano § 37 Institut. de rer div. ff. L. 27 de hæred petit - «Ancillarum etiam partus et partuum partus.... fructus esse non existimantur, quia non temerè ancilla ejus rei causæ comparantur, ut pareant......» L. 28 § 1 ff. de usur. Todavia no tempo de Cícero, este caso ainda era controvertido (Cícero - de finibus liv. 1 n. 4).
«Os frutos ou rendimentos dos bens deste usufruto podem ser embargados ou penhorados por credores do pai? Este usufruto tem anexa obrigação de alimentar o filho: se os credores do pai o embargarem ou penhorarem, os filhos têm preferência pelos seus alimentos (Lobão - Notas a Mello liv. 2 t. 4 § 13 e 26).”
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