“Alforria. Esta palavra vem do Árabe al-horria, significa a liberdade do cativeiro, concedida ao escravo. No sentido figurado significa o estar livre de qualquer encargo ou opressão.” A palavra “manumissão” tem origem latina e é sinônimo de alforria .
A alforria, no tempo em que fazia parte da ordem jurídica luso-brasileiro, era - como outras matérias - objeto de discussões e interpretações. É o que vemos nos comentários (notas de rodapé) ao Livro 4 das Ordenações Filipinas.
“Como a alforria gratuita tem analogia com a doação, considerada esta como ato unilateral antes de aceita pelo donatário, e como ato bilateral depois de aceita; segue-se que as cartas de alforria que por falecimento do Senhor são achadas entre os seus papéis, sem que delas tivessem conhecimento os escravos libertados, não produzem seus efeitos legais senão depois do falecimento.
Os filhos pois de uma escrava libertada nestas circunstâncias, nascidas antes de ter a carta de alforria produzido seus efeitos, antes de ser conhecida, como se estivesse in mente reposta, são escravos.
Rebouças nas Obs. a este art. mostra, argumentando com o § 7 do t. 63, que as alforrias não dependem como as outras doações do aceite do donatário, e por tanto que não só os escravos alforriados ficam desde o momento em que se passam as respectivas cartas, livres, como a sua descendência, nascida dessa época em diante.”
“O Aviso n. 178 – de 11 de Julho de 1855 declarou, que a carta de promessa de doação de uma escrava não está sujeita ao pagamento de direitos e selo.”
“(...)
Carta de alforria, o título concedendo a liberdade.
As alforrias, como em outro lugar já notamos, não são propriamente doações.
T. de Freitas na Consolidação das Leis Civis art. 417 § 3 nota diz o seguinte:
‘Não são propriamente doações (Savigny – Tratado de Direito Romano § 148), por que uma das partes abandona uma porção de seus bens, e a outra adquire sua liberdade.’
‘Sem dúvida (palavras do cit. Savigny) o senhor que liberta um escravo sacrifica por liberalidade uma propriedade verdadeira, e de seu lado verificam-se as condições essenciais da doação. O escravo libertado recebe o único benefício que um homem pode fazer a outro, porém o senhor não transmite ao libertado a propriedade do escravo.’
‘Esta propriedade fica completamente aniquilada, e a alforria cria um homem livre, um sujeito capaz de direito.’
‘A alforria testamentária ou entre vivos, não era uma doação, e nunca se lhe aplicou a insinuação. Se no Direito Romano se a tem chamado donatio, é no sentido impróprio desta palavra.’
Vide sobre esta matéria a mesma obra art. 42 e nota respectiva, que é importante; e sobretudo Perdigão Malheiros no seu Ensaio histórico jurídico e social, intitulado a Escravidão no Brasil em diferentes lugares.
É trabalho de muito merecimento, e digno de ser consultado, enquanto a escravidão durar em nosso País.”
Outra nota interessante é a que fala sobre os tabeliães, no Império Romano, que podiam ser também alforriados (ou manumissos, por estarem em Roma):
“Os Intérpretes fundaram aquela disposição em que os Tabeliães entre os Romanos eram escravos públicos: e assim como os escravos particulares podiam adquirir, e aceitar doações para seus senhores, etiam ignorantibus, também os públicos o podiam fazer em favor de quaisquer pessoas (Voet – ad Pand. L. 39 tit. 5 n. 12).”
O alforriado tinha que ser grato, segundo texto das Ordenações:
"7. Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão, e depois que for forro, cometer contra quem o forrou, alguma ingratidão pessoal em sua presença, ou em absência (ausência), quer seja verbal, quer de feito e real, poderá esse patrono revogar a liberdade, que deu a esse liberto, e reduzi-lo à servidão, em que antes estava. E bem assim por cada uma das outras causas de ingratidão, porque o doador pode revogar a doação feita ao donatário, como dissemos acima.
8. E bem assim, sendo o patrono posto em cativeiro, e o liberto o não remir, sendo possante para isso, ou estando em necessidade de fome, o liberto lhe não socorrer a ela, tendo fazenda, por que o possa fazer, poderá o patrono revogar a liberdade ao liberto, como ingrato, e reduzi-lo à servidão, em que antes estava.
9. E se o doador, de que acima falamos, e o patrono, que por sua vontade livrou o escravo da servidão, em que era posto, não revogou em sua vida a doação feita ao donatário, ou a liberdade, que deu ao liberto, por razão da ingratidão contra ele cometida, ou não moveu em sua vida demanda em Juízo para revogar a doação ou liberdade, não poderão depois de sua morte seus herdeiros fazer tal revogação.
A expressão Livrando-o de toda a servidão é objeto de comentário:
Por tanto se conceder a liberdade com algum ônus fica privado desta ação.
Loureiro no Dir. Civ. Bras. § 9 pensa de outra sorte, mas parece-nos que sem fundamento em vista das palavras da Ord.- toda a servidão.
Eis suas expressões.
«Não se fazem porém escravos, senão os libertos imperfeitos, que são reduzidos à escravidão, em que antes estavam, em pena de alguma das ingratidões referidas na Ord. do liv. 4 t. 63, imposta por sentença civil, dada em Juízo contraditório e plenário, com perfeita prova da ingratidão cometida.
«Entendemos aqui por libertos imperfeitos aqueles que ainda não entraram no pleno gozo da liberdade natural, por terem ficado sujeitos ao serviço dos seus patronos por certo e determinado tempo, por virtude da condição acrescentada ao ato da manumissão.»
Portanto este Jurista refere-se ao Statuliber de que não trata esta Ord.
Quanto aos outros denominados libertos perfeitos, ou sejam crioulos ou Africanos, é sua opinião que não podem voltar ao cativeiro por sua ingratidão.
Os libertos nascidos no País, ou naturalizados não estão sujeitos a esta pena, em vista do que dispõe a Constituição do Império no art. 6 § 1 e art. 94 § 2, que estabeleceu os únicos casos em que um cidadão Brasileiro perde essa qualidade.
Acresce que se a lei considera um crime a redução de pessoas livres à escravidão (Cod. crim. art. 179), como tornar lícito ato tão reprovado?
Rebouças nas Obs. ao art. 421 § 4 do Consol. combate esta doutrina, e sua opinião conta em favor algumas decisões dos Tribunais, e o principio estabelecido na L. de 20 de Outubro de 1823 art 1, de que as Ordenações continuarão em vigor, enquanto senão organizasse um novo Código, ou não fossem elas – especialmente alteradas. (Nota de JMBN: esta lei pode ser encontrada aqui – acesso em 21/01/2024).
Mas T. de Freitas parece-nos que perfeitamente responde às objeções de Rebouças nas seguintes palavras:
«Procederia esta argumentação, se eu negasse que o liberto perdia a qualidade de cidadão pelas mesmas razões porque pode perdê-la o ingênuo, ou se o ingênuo pelo fato de perder a qualidade de cidadão ficasse escravo como o liberto, cuja alforria fosse revogada por ingratidão. Nada disto.
«A impossibilidade vem, admitida a revogação das alforrias por ingratidão, de termos mais um caso de perda de direitos do cidadão, além dos três que o art. 7 da Constituição do Império taxativamente designa; e creio que por este motivo nossas idéias foram aprovadas como verdadeiras no Relatório da ilustrada comissão que reviu nosso trabalho.
«Tanto tem ele de razoável que, não obstante a Ord. liv. 4 t. 63 § 7, os Praxistas entenderam que não era possível revogar por ingratidão a alforria do liberto Clerigo - Lima com. a esta Ord. n. 5 (e também Barbosa com. n. 5).
«A razão, entretanto, devo confessá-lo, não é invencível; porquanto, além deste caso de revogação de alforria, podem dar-se outros, ou por efeito de nulidade em geral (L. 49 Dig, qui et à quib. manumis), ou particularmente quando a alforria é concedida em fraude dos credores do libertante, da legítima ou legítimas de seus herdeiros necessários, ou da meação e direitos de sua mulher.
«Ceda embora ao art 7 da Const. do Império a revogação da alforria por ingratidão do libertado para com o libertante, já que esta causa de revogação é toda pessoal e não ofende direitos de terceiros.
«Repugna porém salvar a lei fundamental à custa da moralidade, e do prejuízo de terceiros, nos casos em que as alforrias são fraudulentas. Não se pode supor que fosse este o alcance do art. 6 § 1 da Constituição, declarando que os libertos são Cidadãos Brasileiros.
«Admitido este caso possível de revogação de alforrias, quid – se a liberta teve filhos depois da alforria? A solução é a mesma, como no caso da revogação por ingratidão, e acha-se na Lei 2 Cod. de libert. et eorum liber. São escravos os filhos concebidos depois da revogação, não assim os concebidos antes dela (Consol. art. 1).»
Vide sobre esta matéria Loureiro – Dir. Civ. Bras. § 9 in fine, Ribas - Dir. Cir. Bras. to. 2 tit. 4 cap. 3 § 2 nota (3), e Perdigão Malheiros – Escravidão no Brasil do § 146 a 149 e nota 819.”