sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Uma história jurídica dos juros (interesses e usura)

        Como já falei em postagem anterior, as notas de rodapé de Candido Mendes de Almeida no livro 4 das Ordenações Filipinas trazem uma interessantíssima história dos juros/usura, história essa que retrata o clima – pelo menos em alguns meios jurídicos – no Brasil do Século XIX, quanto à admissão legal da cobrança de juros. A história narrada remonta a Roma, razão pela qual postei trechos mencionados do Corpus Juris Civilis. 




    










     



  

     

       Os trechos foram extraídos de Cuerpo de Derecho Civil Romano, ed. Lex Nova, Valladolid, 2004, pp. 82 e 94, Tomo II.

        Vejamos as notas e citações efetuadas por Cândido Mendes de Almeida.

Pereira e Sousa na sua obra - Classes dos crimes secc. 2 gen 2 class. 3 espécie 1 n. 4 §§ 1, 2 e 3, ex­prime-se por esta forma:

«Usura em geral significa todo o interesse que se tira do dinheiro que se empresta, seja legal ou ilícito. Mas ordinariamente a usura se toma em mau sentido, e pelo ganho excessivo que se tira do dinheiro, além do preço taxado pelas leis do país.

«A usura, convenção que se faz entre a precisão e a avareza, é um crime, porque é a infração da lei.

«Nos primeiros séculos de Roma, quando o luxo não havia ainda banido do seu seio a frugalidade, faziam-se os empréstimos de dinheiro com uma usura extrema­mente módica. Os seus habitantes não tinham ainda algum uso da navegação, em que somente se exercitaram no tempo da primeira guerra Púnica, da qual provém os ganhos frequentes e rápidos, que trazem consigo a importação e exportação das mercadorias.

«Em Atenas, cidade donde saiam e entravam mui­tos navios, e que tinha um extenso comércio marítimo, era regulada a usura, não pelas leis, mas pela vontade dos usurários.

«O centésimo dinheiro, que entre os Romanos era a mais forte e mordente usura, foi a menor entre os Atenienses.»

E no § 3 continuando diz:

«Os Romanos dividiam um capital em cem dinheiros; e toda a usura que era permitido estipular por esse capital era a centésima parte dele em cada mês, que doze vezes repetida produzia por ano doze dinheiros.

«Esta era a usura legal pela legislação das doze Tá­buas; mas com o aumento do comércio cresceu a opulência do pequeno número e a indigência da maior parte, o que produziu as usuras excessivas.

«Para reprimi-las se promulgaram no ano de Roma 876 a lei Licinia, no de 396 a lei Duilia Mænia, no de 411 a lei Genucia, que proibiu inteiramente a usura.

«Mas isto não podia ser de longa duração; crescendo cada dia a corrupção dos costumes e o luxo, a usura excedeu todos os limites, e os usurários exigiam vinte e quatro, trinta e seis, quarenta e oito, e ainda mais por cento.»

Troplong no seu com. sobre o empréstimo - du Prét, no prefácio diz o seguinte:

«Não é somente de seita em seita que as opiniões se dividiram sobre o prêmio deste contrato. Entre os homens devotados às mesmas especulações e aos mesmos estudos o tempo produziu apreciações contraditórias.

«Os princípios de Economia de Aristóteles e do Ca­tão (que considerava a usura um assassinato) sobre os produtos usurários diferem dos de Turgot. Cícero e Sêneca não julgou-os como Calvino, Dugald Stwart e os Filósofos Franceses do século 18. Os Teólogos e Canonistas de hoje não lhe votam tanta animosidade como os Henrique de Gand e os Soto.

«Enfim há uma singular afinidade, que sobre esta matéria impressiona o espírito.

«Toda a antiguidade fazia o comércio do dinheiro, e da usura. Os Gauleses colocavam sob a proteção do Deus Mercúrio e frutificação do dinheiro. Mercurium ad quœstus pecuniœ mercaturasque vim maximam habere.

«Os Gregos deram-se a esse comércio, quer no seu país, quer com os povos do Oriente. Roma encheu com eles a Itália e as Províncias.

«Os Judeus receberam do seu legislador a permissão de emprestar com prêmio às nações estrangeiras. Os Sírios, oriundos dos Fenícios e herdeiros de suas prá­ticas comerciais, eram célebres por sua inclinação por este gênero de indústria.

«E todavia, a despeito deste acordo de quase todas as nações conhecidas, os Filósofos, os Economistas e os sábios da antiguidade, falavam das usuras com desprezo.

«A antiguidade, diz Niebuhr, condenava a usura com quase tanta aversão como a Igreja primitiva ou o Islamismo.

«Moisés vedou-as entre os Judeus como um ato que ofendia os sentimentos da humanidade, que entre si se devem os cidadãos. Veremos mais tarde as apreciações severas de Aristóteles, Catão, Cícero, Sêneca, Plutarco e Plínio.

«Na idade média aconteceu o contrário: as usuras foram por toda a parte proibidas, quer entre Cris­tãos, quer entre os próprios sectários de Maomé. Então os Economistas, os Políticos e os Filósofos es­forçaram-se por provar que as usuras eram lícitas, e que úteis aos povos, nada tinham de oposto à moral e à probidade. Em todos os países tratou-se de emprestar com prêmio, iludindo-se a proibição.

«Dest'arte quando a lei autoriza as usuras, como na antiguidade, a economia política e a filosofia condenam-nas. Ao revés quando a lei condena-as, a economia política e filosofia autorizam-nas!

«Será uma contradição extravagante? Não, se queremos tomar as coisas pelo bom lado; e tudo se pode explicar pela exageração em que a seu turno caíram, a prática das usuras, e a sua proibição.»

No com. ao art. 1905 do Código Civil Francês explica-se o mesmo Jurisconsulto nestes termos:

«Entre os Romanos, a usura tinha o nome de fœnus. Assim como o preço acrescentado ao comodato o metamorfoseava em um contrato com outro nome, a lo­cação; da mesma sorte, o preço introduzido no mu­tuum lhe fazia habitualmente deixar seu nome para tomar o de fœnus.

«Fœnus, na exata significação da palavra, é o ca­pital engrossado com os seus interesses. E em ver­dade toma-se algumas vezes esta expressão para signi­ficar os juros ou prêmios. Mas, como demonstrou-o Saumaise recorrendo a autoridades que me parecem concludentes, o sentido próprio dessa expressão é: um capital produzindo interesses.

O verdadeiro nome do interesse ou juro entre os Ro­manos, era a usura. Mas a usura, não é propriamente falando, o fœnus; é o preço do fœnus. É o que fazia dizer a Tertuliano que a usura é fructus fœnoris; e eis porque os títulos do Digesto e do Código, intitulados de náutico fœnore, não trazem o título de nautica usura, conforme ao título precedente, intitulado de usuris.

«É que no empréstimo a risco, em que os interes­ses se pagam gradualmente em prazos certos, e em que o capital forma com os juros uma massa que se reembolsa de um golpe, a expressão fœnus era a pró­pria.

Os Jurisconsultos tiveram em vista um capital en­grossado com seus frutos.

«Os Gramáticos como Varrão, Festus, Nonius e Aulo Gellio, fizeram derivar fœnus de fætus, quase fætura. Saumaise pretende que esta etimologia é falsa e inepta. Não o acompanharei neste terreno, bastante perigoso para quem não possui sua erudição, nem sua confiança nas conjecturas gramaticais.

«Eu digo que o mutuum perdia o seu nome quando era acompanhado de estipulação dos juros. Todavia nota se que os textos algumas vezes dão ao fænus o nome de mutuum. É o nome do simples, dado ao composto.

«Como há pouco dizia, o juro era vulgarmente de­nominado usura pelos Romanos. Saumaise investigou a origem desta expressão: concorda em que os anti­gos autores Latinos empregavam a palavra usura por usus; mas pretende que, no empréstimo a juros, a usura tinha diferente valor.

«Empregado para expressar o dinheiro que paga o que toma o empréstimo, significa segundo Saumaise, o preço do uso e não o próprio uso. É por isso que rectura se toma pelo preço do transporte, latura por preço do fardo levado pelo homem de trabalho, mer­catura por preço da mercadoria.

«Entre nós, a expressão usura é sempre empre­gada à má parte, e qualifica um delito. É pela ex­pressão, interesse, prêmio ou juro, que reproduzimos a ideia que os Romanos ligavam à usura.

«O interesse se apresenta naturalmente ao espírito como um fruto do dinheiro.

Assim o definiram: accessionem crescentis in dies singulos pecuniæ. Isidoro disse: incrementum fænoris. Em verdade o interesse em cada dia aumentar o capital como um fruto que se adita anualmente à coisa fugífera. Scœvola e Africano o chamam a renda do dinheiro. Ulpiano acrescenta: usuræ vicem fructuum obtinent et merito non debent à fructibus separari. Segundo o Código Civil, o interesse é um fruto civil.

«Todavia debaixo de outra relação, o interesse é o preço: é o preço do que é entregue ao que toma emprestado: Eis por que Horacio diz:

    Hic quinas capiti mercedes exsecat.

e por que também muitos escritores Latinos compa­ram o fœnus à locação.

«Não é a locação propriamente dita: difere desse contrato por caracteres essenciais, por isso que é um mutuum.

«Mas procura vantagens análogas: utiliza as coisas fungíveis, como a locação às outras. Esta confusão de­riva da paridade que há entre o interesse (usura) e o preço do aluguel (merces).

«0 interesse é o preço da sorte principal transfe­rida por determinado tempo ao tomador do emprés­timo. Usuræ propter usum medii temporis perceptœ, disse Papiniano. Sabe-se que o que paga tarde julga-se pagar menos: minus solvit qui tardius solvit. Esta tardança concedida ao devedor que vai gozar da coisa emprestada, ao passo que o dono do dinheiro fica privado, constitui para o primeiro uma vantagem, e para o segundo uma perda, de que o interesse, a usura é o preço.»   



quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Quando a lei permitiu cobrança de juros no Brasil

 

        A questão da cobrança dos juros parece ter despertado infindáveis discussões no Brasil  do século XIX. Talvez pela expansão do capitalismo (pós renascimento), talvez pela expansão do protestantismo, talvez pela crescente liberdade religiosa no mundo. Pelo texto das extensas notas de rodapé, a liberação da cobrança dos juros havia recém chegado ao Brasil  com a independência. Há um ensaio interessante, focado não no Brasil, mas no hemisfério norte ocidental, que trata do desenvolvimento do capitalismo pós idade média (HIRSCHMAN, Albert O.  As Paixões e os Interesses – Argumentos Políticos a favor do Capitalismo antes de seu triunfo. Tradução de Lucia Campello. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1979). Este avanço do capitalismo pode ter impulsionado a permissão da cobrança de juros no Brasil, logo após a independência.

        Este impulso na cobrança de juros e a contrariedade que a permissão legal causou em alguns juristas, é muito bem retratada nas notas de rodapé de Candido Mendes de Almeida. Passemos à primeira das interessantes notas de rodapé de Cândico Mendes de Almeida, no livro 4 das Ordenações Filipinas. Antes de transcrevê-la, noto que ele cita uma lei de 24 de outubro der 1832. Há pelo menos duas leis desta data: uma é a Lei Orçamentária (interessantíssima, mas não é a que Candido se refere). A Lei objeto de crítica é a que permite a cobrança de juros, que se encontra aqui, mas que transcrevo na íntegra, apesar de parte dela ser transcrita na nota de rodapé:

LEI DE 24 DE OUTUBRO DE 1832.             

Sobre o juro ou premio de dinheiro, de qualquer espécie. 

     A Regência, em Nome do Imperador do Senhor D. Pedro II, Faz saber a todos os súbditos do Império, que a Assembleia Geral decretou, e Ella Sancionou a Lei seguinte: 

     Art. 1º O juro ou premio de dinheiro, de qualquer especie, será aquelle que as partes convencionarem. 

     Art. 2º Para prova desta convenção é necessaria escriptura publica, ou particular, não bastando nunca a simples prova testemunhal. 

     Art. 3º Quando alguem fôr condemnado em Juizo a pagar juros que não fossem taxados por convenção, contar-se-hão a 6% ao anno. 

     Art. 4º Ficam revogadas as Leis e disposições em contrario. 

     Manda por tanto a todas as Autoridades, a quem o conhecimento, a execução da referida lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente, como nella se contém. O Secretario de Estado dos Negocios da Justiça, a faça cumprir, publicar e correr. 

      Dada no Palacio do Rio de Janeiro em vinte e quatro dias do mez de Outubro de mil oitocentos trinta e dous, undecimo da Independencia e do Imperio. 

FRANCISCO DE LIMA E SILVA

JOSÉ DA COSTA CARVALHO

JOÃO BRAULIO MONIZ 

Este texto não substitui o publicado na CLIBR, de 1832 

     Honorio Hermeto Carneiro Leão 

     Carta de Lei pela qual Vossa Magestade Imperial manda executar o Decreto da Assembléa Geral, que Houve por bem Sanccionar, declarando a maneira por que as partes poderão convencionar o premio ou juro de dinheiro de qualquer especie, na fórma acima declarada. 

Para Vossa Magestade Imperial ver.

José Tiburcio Carneiro de Campos a fez. 

     Honorio Hermeto Carneiro Leão

      Registrada nesta Secretaria de Estado dos Negocios da Justiça a fls. 104 do Livro 1º de Leis. Rio de Janeiro em 9 de Novembro de 1832. - João Caetano de Almeida França.

      Publicada na Secretaria de Estado dos Negocios da Justiça, e sellada na Chancellaria do Imperio em 9 de Novembro de 1832.

 João Carneiro de Campos

 

        A cobrança de juros e polêmicas a respeito do continente e do conteúdo, atravessaram a República. Tanto é que a Constituição de 5 de outubro de 1988 limitou, no texto original, a cobrança de juros a 12 por cento ao ano (art. 192, § 3º), o dobro da lei de 1832. Mas este limitação durou até 29 de maio de 2003, quando foi totalmente revogada a norma constitucional que limitava os juros, pela EC 40

        Passemos à primeira das notas de rodapé de Candido Mendes de Almeida:

Contratos usurários.

Estes contratos, além de reprovados pela opinião, a moral e religião no nosso País, eram outr’ora consi­derados criminosos pela Lei.

Mas as doutrinas de Jeremias Bentham (Defesa da usura) e de outros Economistas da mesma escola, pro­pagadas entre nós, fizeram com que o usuário passasse de delinquente, a homem útil e até virtuoso.

Por esta causa no açodamento de reformas com que encetamos os trabalhos legislativos do nosso Parlamento inauguramos essa reforma, primeiro que nenhuma nação civilizada da Terra, promulgamos a Lei de 24 de Ou­tubro de 1832, i. e., realizamos no nosso País, a dou­trina e opiniões defendidas por Bentham, e reprovadas pela Religião que seguimos, e que na Constituição Política do Império, se diz ser a Religião do Estado.

Eis as disposições desta Lei que faz época no Brasil pelos desastres que têm causado à fortuna pública e privada:

« art. 1. O juro ou prêmio de dinheiro, de qualquer espécie, será aquele que as partes convencionarem.

«art. 2. Para prova desta convenção é necessária escritura pública ou particular, não bastando nunca a simples prova testemunhal.

« art. 3. Quando alguém for condenado em Juízo a pagar os juros que não fossem taxadas por convenção, contar-se-ão a seis por cento ao ano

Parece que na época, esta Lei passou sem relutância, mas os seus deploráveis efeitos foram logo sentidos, de sorte que em 1843 o deputado Rebouças, com uma coragem que se não pode assaz elogiar, reclamou a sua revogação.

Dizemos coragem, por que a doutrina contrária conta inúmeros partidistas nas classes letradas, e em nossas Faculdades de Direito, onde a inocência e a virtude da usura são proclamadas como verdade inconcussa.

O mesmo Deputado Rebouças nas suas Observações ao art. 391 nota da Consolidação, faz ainda a seguinte reclamação contra a doutrina dessa Lei:

«Intolerável é, porém, que os contratos desses juros quando enorme ou enormissimamente lesivos como quaisquer outros contratos feneratícios, não ficassem sujeitos à ação constante do § 6 e do final do tit. 13 da Ord. liv. 4; pois que nem a mesma Lei de 24 de Outubro de 1832, nem alguma outra excetua.

«Resultando de tão absurda prática e inteligência a ruína dos mutuários de dinheiro a prêmio ou juro absolutamente superior a todo o lucro possível do mesmo dinheiro; com quanto muito bem empregado em qualquer indústria rural ou fabril.»

Em verdade depois de uma tal Legislação parece inútil condenar-se a lesão enorme e enormíssima em outros contratos, quando neste são tais lesões santificadas.

E neste sentido poderíamos fazer outras ampliações, em que a imprevidência do Legislador, ou sua injustiça não podem ser defendidas.

Vide Ord. deste liv. t. 50, e nota (3) a respectiva rubrica.

Consulte-se Barbosa com., Cardozo – Praxis vb. usura,  Corrêa Telles - Dig. Port. to. 1 n. 269, e to. 3 de ns. 1138 a 1161, Coelho da Rocha §§ 779 e 780, T. de Freitas - Consol. do art. 361 usque 365, e Ramos - Apont. n. 455 e seguintes.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Os Juros nas Ordenações 1

         A quantidade de temas interessantes no Livro 4 das Ordenações Filipinas é bastante grande. As normas sobre “juros” descrevem o que era permitido e o que era proibido no Brasil até o final do século XIX. Mas as notas de rodapé, com seus extensos comentários, trazem toda a história dos juros, desde o império romano, até o século XIX, além de fazerem interessante abordagem do tema sob o prisma da religião. Sim, até o final do Império, pode-me dizer que o Brasil era um Estado teocrático, pois não só havia a religião oficial do Estado, como também os cargos públicos eram privativos dos que seguiam aquela religião. E o Direito Canônico era subsidiário do Direito Estatal. Além de outras características. Talvez nunca tenhamos deixado de ser um Estado teocrático, ainda que, depois da Proclamação da República, somente de fato e não de direito.

        O que hoje chamamos de “juros”, já foram chamados de “interesses” e “usura”. Os juros, ainda que denominados “interesses” ou “usura”, sofriam rigorosa proibição. 

        O texto das Ordenações Filipinas é de 1603 e vigorou, no Brasil, formalmente, até 1916, apesar de, a partir de 1823, ter sofrido revogações parciais ao longo da centúria.

        Esta série de postagens que estou iniciando, sobre a história dos juros no Brasil até 1870, começa pela transcrição do trecho das Ordenações Filipinas que trata do tema. No século XVII, os juros eram chamados de usura e havia sérias restrições à sua cobrança e  pesadas punições.

        Um dos fundamentos da proibição da usura era o Direito Canônico.

        Havia exceções à proibição da cobrança da usura. Muitas vezes estas exceções legais era uma cobrança disfarçada de juros.

        Raiz ou bens de raiz era como se chamavam os bens imóveis nas Ordenações.

        As Ordenações permitiam o lucro nas operações de câmbio.

        Ainda que houvesse proibições e exceções em relação à usura, sempre se descobriam maneiras de burlar a lei e estas burlas são expressamente mencionadas no texto das Ordenações. Algumas destas burlas eram punidas com degredo para a África.

        Vamos ao texto das Ordenações. As interessantíssimas notas de rodapé serão publicadas nas próximas postagens.

 

 

TÍTULO LXVII.

 

Dos contratos usurários.

 

Nenhuma pessoa, de qualquer estado e condição que seja, dê ou receba dinheiro, prata, ouro, ou qualquer outra quantidade pesada, medida, ou contada à usura, por que possa haver, ou dar alguma vantagem, assim per via de empréstimo, como de qualquer outro contrato, de qualquer qualidade, natureza e condição que seja, e de qualquer nome que possa ser chamado. 

E o que o contrário fizer, e houver de receber ganho algum do dito contrato, perca todo o principal, que deu por haver o dito ganho e acrescença, se a já tiver recebida ao tempo, que por nossa parte for demandado, e tudo em dobro para a Coroa de nossos Reinos, e mais será degradado dois anos para África, e isto pela primeira vez que for compreendido, e lhe for provado; e pela se­gunda vez lhe sejam dobradas todas as ditas penas, assim cíveis, como crimes: e pola terceira vez lhe sejam isso mesmo tresdobradas as ditas penas.

E o que houver de dar o dito ganho, perca outro tanto, como foi o principal, que recebeu, e mais não. E se o devedor tiver já paga alguma crescença, ser-lhe-á descontada do que havia de pagar, con­vêm a saber, do outro tanto, como o principal, e tudo para a Coroa de nossos Reinos, a qual pena haverá, cada vez que nisso for compreendido, e lhe for provado.

 

                                                        1. Posto que as usuras sejam geralmente reprovadas e defesas, em alguns casos po­rém, assim per Direito Canônico, como Civil é a usura permitida e lícita; assim como se fosse por alguém prometido a um homem algum dote, casando com alguma mulher, e lhe não fosse logo pago aquilo, que lhe assim fosse prometido, sendo-lhe apenhada alguma coisa por isso, com tal convença, que o que casasse, pudesse ha­ver todos os frutos e novos da coisa apenhada, até lhe ser cumpridamente pago todo o principal. Em este caso poderá ele haver os frutos e novos da coisa apenhada em salvo, até que seja pago do principal, que lhe foi prometido em casamento, sem descontar do principal coisa alguma.

E isto haverá lugar, enquanto durar o casamento, e o marido mantiver a mulher segundo o estado e usança de terra; porque apartado o Matrimônio por morte de cada um deles, ou por qualquer outra maneira, daí em diante não poderá mais haver em salvo a renda da coisa apenhada, sem descontar do principal. E em outra maneira, todo o ganho, que se daí levasse sem desconto, seria usura.

 

                                                2. E se fosse vendida alguma raiz  por certo preço, e no contrato da venda fosse feita avença, que tornando o vendedor o preço ao comprador até certo tempo, ou quando quisesse, fosse a venda desfeita, e tornada a coisa ao vendedor, poderá o comprador licitamente haver os frutos e rendas da raiz assim vendida, depois que houver a posse dela per virtude da dita venda, em quanto não for a venda desfeita.

E isto haverá lugar, quando a raiz for vendida por preço razoado, pouco mais ou menos do justo preço. Porque, se o preço fosse muito pequeno, a pouquidade dele com a dita avença fariam o contrato ser usurário, como mais declaradamente dis­semos no Título 4: Da venda de bens de raiz, feita com condição, que tornando-­se, etc.

 

3. E se algum comprasse alguma raiz por preço certo, o qual logo pagasse, e não fosse entregue da raiz comprada, esperando de a receber logo, poderá em todo o tempo demandar ao vendedor todos os frutos e novos e rendas, que ele houve, ou que por sua culpa o comprador deixou de receber da raiz, que assim vendeu, de que recebeu o preço, e lha não entregou.

E bem assim dizemos no comprador, que recebeu a coisa comprada, e não pagou o preço, porque a comprou; porque em todo o tempo lhe poderá o vendedor demandar o preço principal, e mais a justa valia dos frutos que recebeu, ou poderá receber da dita raiz, depois que lha comprou, e foi dela entregue, e não pagou o preço ao ven­dedor.

 

4. E se o que trouxer alguma possessão por certo foro, ou prazo de algum senho­rio, a apenhasse ao dito senhorio por dívida alguma, sob tal condição, que o senhorio houvesse em salvo os frutos e rendas dela, até ser pago da dívida, em este caso poderá o senhorio haver as ditas rendas e novos em salvo, até ser pago da dívida, sem descontar dela coisa alguma; porque em quanto assim houver os frutos e rendas do dito foro, ou prazo não haverá a pensão, que lhe é devida em cada um ano, por virtude do contrato do aforamento, ou em­prazamento.

E sendo feito semelhante apenhamento entre outras pessoas, que não sejam o fo­reiro e o senhorio, tal contrato de ape­nhamento feito com cláusula, que o credor haja em salvo as rendas e frutos da coisa apenhada, até ser pago de sua dívida, será usurário, e haverão os contraentes as penas de usurários conteúdas neste título.

 

5. Declaramos ser lícito ganho de dinhei­ro, ou quantidade em todo o caso de câmbio de um Reino, ou lugar para outro, e bem assim ser lícito e verdadeiro o câmbio, quando logo se dá maior quantidade em um lugar, por lhe darem e pagarem em outro lugar mais pequena. E isto é assim permitido per Direito pelas des­pesas; que os Mercadores estantes, que recebem a maior quantia, fazem em manterem seus câmbios nas Cidades e Vilas, onde estão.

 

6. E dando-se primeiro alguma quanti­dade menor, por receber ao depois maior, ainda que o que dá a menor quantidade, receba em si todo o perigo, que por qual­quer maneira possa acontecer de um Reino, ou lugar para outro, não deixará por isso esse contrato ser usurário. E por tanto defendemos, que se não façam tais contratos, e quem os fizer, incorrerá nas penas de usurário.

 

7. Mandamos que as pessoas, que derem dinheiro a câmbio, ou o pagarem, não façam diferença de o dar, ou pagar em dinheiro de contado, a o dar e pagar por letras, ou livrança, levando mais interesse de dinhei­ro de contado, do que a tal tempo se cambiava, e corria na Praça comumente por livrança; e o que o contrário fizer, e der dinheiro de contado a maior preço, do que correr e valer na Praça em livrança, perca o dinheiro; e a pessoa, que o tomar, ou re­ceber, será obrigado de o fazer saber às Jus­tiças do lugar, aonde o tal caso acontecer, dentro de dez dias, e não o fazendo, incor­rerá em pena de perder outro tanto dinheiro como o que assim tomou e recebeu. E o Corretor, que o tal câmbio fizer, pagará por cada vez cem cruzados, das quais penas serão a metade para quem os acusar, e a outra para os Cativos.

               

8. Por quanto somos informado, que se fazem muitos contratos ilícitos entre Mercadores e outras pessoas, os quais por en­cobrirem as usuras, vendem mercadorias e coisas fiadas a pessoas necessitadas, que não são Mercadores, nem tratantes, para nelas haverem de tratar e ganhar, e que os compradores lhas tornam logo dar e vender por muito menos, do que as compram, por lhes darem o dito dinheiro para suprimento de suas necessidades, ou as vendem a ou­tros por muito menos preço, do que as compram, por lhes darem logo o dinheiro, de maneira que não somente recebem dano no preço, em que as compram fiadas, mas ainda na venda delas: E além disso ficam suas pessoas obrigadas a pagar o primeiro preço, por que lhe foram vendidas, e por não poderem pagar nos tempos limitados em seus contratos, fazem outras novas obri­gações, confessando a dívida com interesses, e fazendo dos ditos interesses dívida prin­cipal, de modo que de ano em ano e de feira em feira se vão embaraçando nas ditas dívidas e interesses delas: mandamos que nenhum Mercador, nem pessoa outra venda mercadorias e coisas fiadas, por si, ou por outrem, a pessoas, que  notoriamente for sabido, que nelas não hão de tratar, nem faça, nem use dos ditos contratos.

E o que o contrário fizer, perca por isso a ação, que por virtude do contrato podia ter para demandar o preço das ditas merca­dorias ao comprador, ou a seu fiador. E o comprador e seu fiador não ficarão obrigados a pagar coisa alguma por razão dos tais contratos.

E além disso o que der, ou vender as tais mercadorias per cada uma das ditas manei­ras, será degradado per dois anos para África, e pagará cinquenta cruzados, ame­tade para os Cativos, e a outra para quem o acusar. E isto não haverá lugar naquelas mercadorias, que cada um houver mister para sua casa; o que se verá pela qualidade das pessoas e quantidade das mercadorias, e pelo tempo em que lhas venderem.

E para prova dos tais contratos e traspas­sas, bastará venderem as ditas mercadorias e coisas às pessoas que notoriamente nelas não costumam tratar, não sendo as que houverem mister para a sua despe­sa. E sendo caso, que por defraudar esta Lei, ou a prova, que por ela  havemos por bastante, se façam assinados, ou escrituras das dívidas, confessando as pessoas, que as fizerem, que receberam as quantias delas em dinheiro, sem tratarem das ditas merca­dorias, se o Tabelião não afirmar, que v iu   contar e receber o dinheiro à feitura da escritura perante as testemunhas dela, não poderão os ditos Mercadores pelos tais as­sinados e escrituras receber, nem haver o dito dinheiro, sem provarem por testemunhas dignas de fé, como realmente viram receber as ditas pessoas o dinheiro conteúdo nos ditos assinados e escrituras.

 

9. E havendo alguns casos além dos aci­ma ditos, em que possa haver dúvida, se são usurários, ou se se pode per Direito levar usura, mandamos que se guarde sobre isso o que for achado per Direito Canônico. Porque, pois é coisa, que traz pecado e carrego de consciência, convêm acerca dis­so seguirmos e guardarmos o Direito Canônico, e determinações da Santa Madre Igreja.

 

10. E para que os que fizerem contratos usurários, possam ser punidos, e mais facil­mente se possam provar, queremos que se algum dos sobreditos, que tal contrato fez, o descobrir, a Nós, ou a nossas Justiças, an­tes que cada um deles por isso seja acu­sado, ou antes de per Nós ser feita mercê a alguma pessoa, de lhe perdoarmos todas as penas desta Ordenação, e que não incorra, em pena alguma: com tanto que no tempo, que per Nós ou per nossas Justiças lhe for assinado, prove ser o contrato usurário. E posto que o não prove, a confissão que de si mesmo fez, dizendo, que cometera com a outra parte contrária o dito contrato, não lhe prejudicará. Porém a parte contrária lhe poderá demandar sua injúria.

 

 

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Criados: Epílogo

     Aqui terminam as publicações sobre a regulamentação legal das relações entre criados e amos. Estas regulamentações legais relatadas foram extraídas de obra publicada em 1870. Entretanto, muitas destas normas permaneceram - juridicamente - em vigor até 1890 e outras foram revogadas, de direito, em 1916, com a entrada em vigor do primeiro Código Civil Brasileiro. De fato, no âmbito da sociedade, dos costumes, estas normas talvez tenham permanecido até boa parte do século XX. Ou tenham, mesmo no âmbito jurídico, sido revogadas em 11/12/1972 (Lei 5.859). Ou revogadas por completo em 1º de junho de 2015 (Lei Complementar nº 150), durando, assim, até o século XXI... Ou durado tanto por se pensar que o tema nunca foi legislado...

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Demissão dos Criados

        Nesta postagem veremos como se dava a demissão dos criados. Tanto eles podiam ser despedidos pelos amos, quanto se demitirem. Um detalhe curioso é que, se o amo despedisse o criado estando num acesso de raiva, esta demissão só valeria quando passasse o acesso de raiva. O texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas também disciplina os casos de amos que despedissem criados sem os pagarem e criados que se demitiram já tendo recebido o pagamento. O nome da remuneração dos criados era “soldada” e não “salário”.  

As notas de rodapé que transcrevo estão em destaque colorido.

TITULO XXXIV.

Do que lança de casa o criado que tem por soldada.

O homem que deitar fora de casa o man­cebo, que tomou por soldada, antes de acabar o tempo per que o tomou, pagar-­lhe-á toda a soldada, pois o deitou fora, e não quer que o sirva. E se o que está por soldada, deixar o senhor, antes que acabe o tempo do serviço, sem culpa do senhor, deve-lhe tornar a soldada, se já a tiver re­cebida, e mais servir de graça todo o tempo que lhe faltava por servir; e se lhe ainda não tinha paga a soldada, não será obri­gado a lha pagar, e será constrangido pelas Justiças, onde quer que estiver, que venha acabar de servir. E se for órfão, guardar­-se-á o que temos dito no Livro Primeiro, Título 88: Dos Juízes dos Órfãos, pará­grafo 17: E se os Órfãos fugirem.

 A expulsão do criado pelo amo estando este irado não se reputa perfeita: se a não mantém depois de passada a raiva ou ira (Barbosa no com. n. 2).

O criado deve esperar que passe a excitação. (Silva Pereira no Rep. das Ords. to. 1 nota (c) pag. 722 e nota (a) e pag. 723 e to. 3 nota (a) pag. 290).

        O conceito de mancebo se encontra no livro 1 das Ordenações Filipinas: Mancebo, i. e., o servidor por soldada, ou criado.

        Na nota de rodapé abaixo, se percebe que leis estrangeiras (no caso, o Código da Prússia) eram usadas como fonte do direito no Brasil no Século XIX, provavelmente porque ainda não se tinha fixada a noção de soberania jurídica. E esta falta de postura jurídica soberana ainda se manifestou em leis republicanas, como é o caso do artigo 386 do Decreto nº 848, de 11/10/1890, que organizava a Justiça Federal:

Art. 386. Constituirão legislação subsidiaria em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e comercial, não sendo contrarias ás disposições e espirito do presente decreto.

Os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na Republica dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal.

        Prossigamos, com a nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas:

Sem culpa do senhor. Havendo, não está obrigado à restituição, nem à pena do serviço.

Sobre as causas justas por que o amo pode despedir o criado, ou este despedir-se a seu arbítrio consulte-se Corrêa Telles - Dig. Port. to. 2 de n. 1252 a 1275.

Corrêa Telles – Dig. Port. to. 2 n. 1258 nota (c), limita a três meses esta pena, depois de findar o ano do ajuste, a menos que não seja o criado menor e fugir, por que neste caso a pena não deve exceder de seis meses.

De argumento da Ord. deste liv. t. 23 § 1 estabe­lece Corrêa Telles a doutrina de que o amo, que não está contente do criado, que tem por ano, ou deste que não quer servir além, deve despedi-lo ou despedir-se, 30 dias antes de terminado o prazo.

O Código da Prússia no art. 111 marca seis semanas para os criados da cidade, e três meses para os do campo.

TÍTULO XXXV.

Do que demanda ao criado o dano que lhe fez.

Se o mancebo, vivendo com outrem, lhe fez perda alguma, deve-lha emendar e pagar, ou descontar de sua soldada; e isto haverá lugar, se ao tempo, que o mancebo se dele partir, lhe requerer perante o Juiz a perda, que lhe tem feita, ou perante homens bons. E se ao dito tempo lhe não requerer, não lha poderá demandar depois ao tempo, que o mancebo vier demandar a soldada, porque parece que o faz por lhe pagar mal sua soldada. E isto se entenderá, se o mancebo acabou de servir o tempo, que era obrigado; porque partindo-se antes do tempo acabado, não poderá demandar a soldada, como dissemos no Título prece­dente.

Barbosa no com. desta Ord. n. 6 referindo-se aos criados diz: et famulorum natura est furacissima, recor­dando-se sobretudo da época em que estudara na Uni­versidade de Coimbra, onde os criados de estudantes muito se distinguiam já naquelas épocas, por esse defeito.

No Dig. Port. to. 2 n. 1230 estabelece Corrêa Telles a doutrina de que só por dolo ou culpa grosseira pode ser responsabilizado o criado, de conformidade com o Código da Prússia arts. 64 e 65; julgando, e com razão, mui rigorosa a opinião de Barbosa com. n. 2 e de Silva com., que indistintamente julgam responsável o criado por culpa leve.

Homens bons, i.e., os de que tratão as Ords. do liv. 1 t. 58 § 44 e t. 65 § 2.

Estes Juízes hoje estão abolidos, e nesta parte a pre­sente Ord. se acha sem vigor. 

        Sobre o conceito de homens bons ver minha outra postagem aqui. 

Para que o amo possa ter ação contra o criado que se despede do serviço, é indispensável que proteste pela sua indenisação no ato da saída: assim entende Côrrea Telles no Dig. Port. to. 2n. 1234; e sem este protesto não pode o amo demandar mais a indenisação.

Parece-nos exagerada esta doutrina, porquanto muitas vezes o criado retira-se sem que o amo possa saber logo o dano que lhe causou, para protestar pela indenisação.

 1. E no caso, onde o amo pode de­mandar o dano ao mancebo, terá quatro dias para o provar, e mais não. Porém, querendo pagar logo a soldada, e que lhe seja dado mais tempo para provar o dano, se lhe dará, segundo for razão, e parecer justo ao Juiz.

Este processo não existe no nosso fôro, assim o atesta T. de Freitas na Consol. art. 68 nota (1); e não o contraria Rebouças nas suas Observações.