sexta-feira, 14 de maio de 2010

O PODER E AS REGRAS OBRIGATÓRIAS ENTRE OS ÍNDIOS 8


Castigos e obrigações


Entre os índios ARARA (localizados no Estado do Pará) TEIXEIRA-PINTO percebeu a existência de valores éticos polares: egoísmo, violência, predação de um lado e formas gentis, solidárias e generosas de convívio, de outro. O ROUBO, por exemplo, é uma forma de egoísmo. Mas a idéia de roubo e inveja quase que se aplica somente às coisas que o trabalho humano transforma. Na aldeia dos Arara, há roças coletivas e individuais e, da mesma forma que os Xavantes, as mulheres são PROMETIDAS em casamento logo após nascerem. Quando há visitas, estas não podem entrar na aldeia levando o que trazem para ser oferecido. Tudo deve ser deixado num acampamento próximo e, após fazerem a saudação e receberem a bebida é que pegam as dádivas no acampamento e retornam à aldeia para oferecê-las. AS CASAS são lideradas por um homem velho e têm autonomia política e econômica para escolher a forma de interagir com as outras casas. Como a residência é uxorilocal, os homens trocam de grupo residencial após casarem. Há OBRIGAÇÃO de doar caça: alguns devem dar a caça ao sogro (atual ou futuro, pois um casamento obriga o genro a prestar serviços ao sogro), outras dão para o que será sogro de seu filho e outros, ainda, para o líder da casa. A QUEBRA DESTAS REGRAS GERA CASTIGOS SOBRENATURAIS: no início dos tempos, os macacos-prego e as cutias eram gente, mas foram transformados em bicho por transgredirem as regras de boa convivência. MAS HÁ OUTRAS FORMAR DE ACOSTUMAR AS PESSOAS A CUMPRIREM AS REGRAS: crianças impacientes e irritadiças (...) ficam quase sem comida e sem carinho até que se acalmem e se submetam. Inimizades e desavenças eram resolvidas pelo afastamento do indivíduo ou do subgrupo hostil e, a depender das alianças políticas, pela formação de barreiras sociais que impediam a continuidade das relações do grupo adverso com a rede intercomunitária que envolvia as várias unidades locais dispersas espacialmente. TÉCNICAS DE GUERRA exigiam duplas de parceiros, que ficavam com vínculos duradouros entre si. Se uma dupla matava um inimigo, o vínculo entre os parceiros aumentava, autorizando que um parceiro tivesse acesso sexual à esposa do outro, já que sangue e esperma de um seriam da mesma substância que sangue e esperma do outro. O matador não pode ter relações sexuais com a própria esposa, mas deve ter com a do parceiro. Comer e manter relações sexuais têm metaforicamente um mesmo campo semântico, coberto pelo termo “emtabri”: quem mata um bicho não pode comê-lo, mas come o que os outros matam; quem mata um inimigo, não tem acesso sexual à própria esposa, mas sim à do parceiro. Somente homens mais velhos e matadores podiam tocar a flauta tïdïdï (no interior de uma casa, à noite, com todos de pé). Os mortos não podem ser enterrados, mas sim colocados sobre a terra, em plataformas suspensas alguns centímetros do chão, para não interferir na circulação das substâncias vitais do solo. As mães dão os nomes provisórios aos filhos e os pais, os definitivos. As mesas são postas segundo regras definidas; o lixo não é enterrado ou colocado longe da aldeia (o que começa a gerar problemas, em face de as aldeias terem se tornado fixas). AS DESAVENÇAS EM GERAL SÃO SOLUCIONADAS POR AMEAÇAS: os homens ritualizam, em frente às casas, ameaças a algum desafeto, geralmente em decorrência de relações extraconjugais de suas esposas. Neste caso de suspeita de relações extraconjugais das esposas, ocorre o seguinte: os homens se pintam e, discursando pausadamente em sinal de desagravo, afirmam ter descoberto aquele com quem sua esposa o está traindo. Não raro as esposas têm mesmo amantes, quase nunca o marido os descobre, mas sempre usa o rito público de afronta para ameaçar a relativa estabilidade em que as relações extra-conjugais transcorrem: mesmo sem saber de quem se trata, um homem acerta ao menos na sua existência, complica os encontro amorosos e, com um pouco de sorte, põe fim à sem-vergonhice. Ninguém interrompe um marido que discursa. Mas jamais vi qualquer continuidade prática destes ritos cotidianos; tudo parece de fato encerrar-se ao fim das falas. Os Arara não admitem o divórcio, mas os homens podem se casar com mais de uma mulher. Em caso de homicídio, o homicida pode ser banido da aldeia ou ser sujeitado à vingança de um parente da vítima. Em casos de ROUBO, o protesto público, sem nomear o desafeto, funciona como punição. A falta de cumprimento de regras de convivência também pode implicar interdições rituais, que o xamã impõe conforme o juízo do jaguar/onça, que é o próprio juízo do xamã. Mas a fala pública e veemente é a forma mais comum de acerto de contas com os desafetos; mais raro e mais grave é quando os homens, ao falarem, pintam seus corpos. E existe ainda, como castigo pela falta de generosidade, as punições sobrenaturais: ser transformado em queixada, caititu ou porco.
As informações acima foram colhidas na obra de Márnio TEIXEIRA-PINTO (Ieipari – Sacrifício e Vida Social entre os Índios Arara (Caribe). São Paulo, Editora Hucitec Anpocs, UFPR, 1997, pp. 41, 63, 73, 78, 83, 87, 98, 113, 119, 120, 121, 125, 137, 133, 155, 173, 175, 176, 186, 240, 258, 259, 264, 270, 308, 310, 341, 370, 371).
A foto acima foi tirada perto de Manaus/AM, em 2001, durante uma apresentação de rituais indígenas.

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