O Fuero Juzgo foi o primeiro código jurídico a vigorar na Península Ibérica, após o Direito Romano. Teve várias versões, desde o Breviário de Alarico (reinou de 484-507), passando a se chamar Código Visigótico, até chegar à definitiva, como Fuero Juzo, em 693 (LOBO, Abelardo Saraiva da Cunha. Curso de Direito Romano. Brasília : Senado Federal, Conselho Editorial, 2006, p. 349). Havia penas arbitrárias, como, por exemplo, para o caso de alguém ser envenenado e não morrer do veneno: o criminoso era entregue à vítima, para que lhe fizesse o que quisesse (Livro VI, tít. II). Quem oferecesse sacrifício ao diabo, receberia 200 açoites e teria a fronte assinalada (Livro VI, tít. I). Quem provocava aborto com ervas, recebia 200 açoites se fosse servo; se não fosse, perderia sua dignidade e seria dado por escravo a quem o rei mandasse (Livro VI, tít. IV). Só era punido o homicídio quando havia vontade de matar: quem matasse outro homem sem o conhecer, sem malquerença alguma, não seria punido. Quem matasse algum parente, seria morto (Livro VI, tít. V). O furto em geral era punido com uma pena pecuniária (Livro VII). Ladrões noturnos ou armados que fossem mortos, não implicariam em pena para quem os matasse (Livro VII, Título II). Falsários vis, teriam a mão decepada: nobres, pagariam uma indenização (Livro VII, tít. V). Em resumo, as penas eram açoites, redução à condição de escravo, morte e pecuniárias.
No Fuero Juzgo havia disposições que indicavam preocupação com a morosidade da Justiça, pois os juízes eram exortados a não prolongarem muito as demandas e não criar muitas dificuldades às partes, de modo que um pleito não durasse mais do que oito dias (Livro II, tít. 1, XX). O Fuero Juzgo diferenciava processos que hoje chamaríamos de mais complexos (pleitos grandes ou de grandes coisas), do que hoje seriam os menos complexos (pleito de pequenas coisas): nos processos mais complexos, o juiz deveria fazer dois escritos semelhantes (ou seja, reduzir os autos a termo em duas vias), neles incluídos os depoimentos das testemunhas, dando tais escritos às partes; nos processos mais simples, o depoimento das testemunhas, que deveriam prestar juramento, bastaria que fosse escrito, sendo entregue ao vencedor da demanda, recebendo o vencido um traslado. Em regra, tanto nas demandas grandes quanto nas pequenas, era suficiente, como prova, que a parte escrevesse e roborasse com sua mão, sem necessidade de testemunhas. E os juízes deveriam ter os traslados de todos os pleitos que julgarem, para que não houvesse mais contendas sobre os mesmos objetos no futuro (Livro II, tít. XXIII):
Se o pleito é grande, ou de grandes coisas, o juiz deve fazer dois escritos do pleito, que sejam semelhantes (...). E se o pleito for de pequena coisa, o que disserem as testemunhas, pois prestaram juramento, deve ser escrito somente e deve tê-lo o que venceu e o vencido deve ter o traslado daquele escrito. E se aquele que é chamado a juízo, manifestar-se perante o juiz que o demanda, não é necessário que dê outra prova, mesmo que a demanda seja grande ou pequena: mas deve escrever e roborar com sua mão, para que nenhuma dúvida se venha a ter sobre a coisa litigiosa.
No Fuero Juzgo não é clara a distinção entre “justiça pública” e “justiça privada”, pois o Juiz era pago pelas partes e poderia ser juiz quem fosse mandado pelo príncipe ou eleito pelas partes, com o testemunho dos homens bons. O poder de julgar era recebido do príncipe, do senhor da cidade ou de outros juízes (estes podiam transferir o poder de julgar) – Livro II, Título 1, XIII. Havia uma justiça cível e criminal (Os juízes devem ser estabelecidos de tal maneira que tenham poder de terminar os pleitos, tanto das malfeitorias, quanto das outras coisas). E o rei poderia enviar mandatários para colocar a paz entre as partes (Livro II, tít. 1, XV). Quem fosse chamado em juízo e não comparecesse, deveria pagar cinco soldos de ouro ao autor da demanda e cinco soldos de ouro ao juiz. E se persistisse na recusa, receberia 50 açoites na frente do juiz. Não vindo a juízo e não tendo onde pagar os cinco soldos, o réu receberia 30 açoites. Se o réu jurasse que não pôde vir a juízo, não receberia as penas da revelia. Se um bispo não respondesse ao chamado do juiz, nem nomeasse procurador, pagaria 50 soldos, dos quais 20 seriam para o juiz e 30 para o autor da demanda (os números, no Fuero Juzgo, são sempre grafados em algarismos romanos). Sacerdotes, diáconos, subdiáconos, clérigos e regulares em geral que não atendessem ao chamado dos juízes, receberiam a mesma pena que os leigos. E se não tiverem onde pagar, o bispo os obrigaria a jejuar por 30 dias, jejum este que consistia em receber um pouco de pão e um pouco de água à tarde. Se o revel fosse fraco ou doente de modo a não poder suportar a pena, esta seria aplicada de modo a não causar grande enfermidade ou morte (Livro II, tít. XVII). Aos juízes já se aplicava o que hoje se conhece por princípio da impessoalidade: não deviam julgar por amor ou por ódio. Os juízes podiam folgar em suas casas dois dias por semana, ou todas as tardes, quando não haveria pleitos. Fora destes horários de folga, os juízes deviam ouvir os pleitos e sentenciá-los, sem maiores dilações (Livro II, tít. 1, XVIII). Se o juiz julgasse torto e privasse alguém de seus bens, o próprio juiz deveria devolver o que recebeu indevidamente e pagaria o mesmo tanto de seus bens; e se o juiz não tiver bens para entregar, receberia 50 acoites publicamente. Mas se o juiz jurasse que julgou torto por ignorância e não por amor, nem por cobiça, nem para atender a, não sofreria pena alguma (Livro II, tít. 1, XIX). Se o juiz tivesse que julgar um pleito maior do rei ou do concelho, deveria dizer às partes para voltarem em data certa, para então demandarem (Livro II, tít. 1, XX). Poderia haver apelação para o príncipe (Livro II, tít. 1, XXII). Há um tabelamento dos “serviços judiciais”, com as penas para quem os desrespeitasse:
Por que já vimos muitos juízes, meirinhos e saiões, que, por cobiça, excediam o mandado da lei, e tomavam a terça parte do requerido no pleito, estabelecemos na presente lei, para afastar esta cobiça dos juízes, que nenhum juiz do pleito que seja julgado ou tratado perante ele, não ouse tomar mais de vinte soldos por seu trabalho, assim como diz a lei. E se algum tomar mais que isto, perca tudo que deveria receber segundo a lei e quanto tomou a mais contrariamente ao direito e pague em dobro àquele a quem tomou. Outrossim, porque entendemos que os saiões que fazem as diligências do pleito, tomam mais do que devem receber por seu trabalho, estabelecemos nesta lei que não tomem mais do que a décima parte da demanda; e se mais tomarem, percam o que deveriam receber segundo a lei e o mais que tomaram paguem o dobro àquele de quem tomou. (Tradução livre, do espanhol para o português, de JMBN)
Segundo CONDE (Manuel Sílvio. Os forais tomarenses de 1162 e 1174. in Revista de Guimarães, n.º 106, 1996, pp. 193-249 – veja aqui), saihon ou sayon tem origem no germânico sagjo, que significa aquele que executa a sentença; magistrado judicial subalterno, com funções policiais; verdugo. Também segundo CONDE, soldo vem do latim solidus (moeda de ouro). O solidus ou soldo era uma unidade de conta no sistema monetário carolíngio. Correspondia a 1/20 da libra e a 12 dinheiros. Mas a única unidade de conta que efetivamente se cunhava nos reinos cristãos era o dinheiro. Merino, por seu turno, originou “meirinho” no português, originando-se ambos os vocábulos do latim “maiorinus”, que significaria “maiorzinho”, pois estaria subordinado ao “majordomo”, termo que originou “mordomo”. O “merino” era “encarregado da administração dos bens da coroa” (REILLY, Bernard. Cristãos e Muçulmanos – A Luta Pela Península Ibérica. Tradução de Maria José Giesteira. Lisboa, Teorema, 1992, p. 75), mas também poderia ter funções de juiz. O pagamento ao juiz e ao “sayon” seria feito deduzindo-se da coisa objeto da demanda ou de quem deveria entregá-la ou não o fez; mas se o pleito fosse entre herdeiros ou se não fosse apurado de quem era a culpa pelo pleito, ambas as partes pagariam ao juiz e ao “sayon”. Em caso de revelia, o revel pagaria o trabalho do juiz e do “sayon”. Se o “sayon” não quisesse fazer o que o juiz mandou, pagaria um soldo de ouro por cada onça de ouro que valesse o pleito. Se o “sayon” fosse plebeu, receberia duas cavalgaduras emprestadas para o serviço e, se fosse nobre, receberia não mais do que seis cavalgaduras (Livro II, tít. 1, XXIV). Os juízes podiam julgar por mandado do rei ou por vontade das partes. O duc, o conde e o “vicário” (= lugar-tenente, substituto, delegado) podiam julgar por mandado do rei ou por vontade das partes. E uma vez recebido o poder de julgar, deviam ter o nome de juiz, suportando os ônus e os bônus de tal condição, segundo manda a lei (Livro II, tít. XXV). Se os juízes julgassem torto, o pleito nada valeria. Note-se que, na ementa do artigo, o juiz é chamado de alcaide. Eram também nulos os julgamentos ocorridos por pressão dos poderosos: quando os juízes julgassem torto (ou seja, nem conforme o direito, nem segundo a lei) a mando dos príncipes ou por medo. E mesmo que nada valesse o julgamento, os juízes não sofreriam penas se jurassem que não julgaram torto por sua vontade, mas por medo do rei (Livro II, tít. 1, XXVII). Na ementa do item XXVIII se declarava que os bispos tinham poder sobre os juízes que julgassem torto:
XXVIII. Do poder que têm os bispos sobre os juízes que julgam torto
Nós admoestamos aos bispos de Deus, que devem ter guarda sobre os pobres e sobre os coitados, por mando de Deus; que eles admoestem os juízes que julgam torto contra os povos, para que melhorem e que façam boa vida e que desfaçam o que julgaram mal. E se eles não quiserem atender a admoestação dos bispos, e quiserem julgar torto, o bispo em cuja terra está, deve chamar o juiz que dizem que julgou torto, e outros bispos, e outros homens bons, e emendar o pleito com o juiz, segundo o que é de direito. E se o juiz for tão desleal que não queira emendar o julgamento com o bispo, então este pode julgar por si, e faça um escrito de como emendou o julgamento e envie este escrito ao rei, juntamente com a pessoa que estava agravada, para que o rei confirme o que lhe parecer que é direito. E se o juiz impedir que vá ao bispo aquele homem que antes era agravado por ele, juiz, com torto, pague o juiz duas libras de ouro ao rei.
É interessante notar que há, no Fuero Juzgo, um germe do Ministério Público ibérico: após asseverar que quanto mais os senhores julgam os pleitos, mais se devem guardar de os estorvar, o Fuero Juzgo determina que quando o bispo ou o príncipe entram em alguma demanda com outro homem, devem nomear procuradores para figurarem na demanda por eles. Isto porque pareceria desonra a tão grandes homens se algum homem que lhes fosse inferior contestasse o que dissessem na demanda. E se o rei quisesse estar em pessoa na demanda, quem ousaria contestá-lo? Assim, para que por medo do poder não desfaleça a verdade, mandamos que não tratem eles (bispos e príncipes) o pleito por si, mas por seus mandatários* (Livro II, tít. 3, I).
*Nota - No original: Los sennores quanto mas devem iudgar los pleytos, tanto mas devem guardar de los destorbar. Onde si el obispo ó el principe an pleyto con algun omne, ellos deven dar otros personeros, que trayan el pleyto por ellos. Ca desondra semeiarie á tan grandes omnes, sí algun omne rafez les contradixiesse lo que dixiessen en el pleyto. Hy el rey si quisiere traer el pleyto por si, ¿quien le osará contradecir? Onde que por el miedo del poderio non desfalezca la verdad, mandamos que non tracten ellos pleyto por si, mas por sus mandaderos.
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