A miscigenação que caracterizou nossa cultura nos obriga a conhecer hábitos indígenas que podem ter influenciado nossos comportamentos em relação às leis. Vejamos alguns destes hábitos.
Viver dentro das normas consideradas certas, para os Tupinambás, era viver para matar e comer muitos inimigos (1).
Entre os índios Guayaki, localizados no Paraguai, a transgressão de certas regras provocaria o “pane” (ou seja, o azar na caça, que era fundamental para a sobrevivência destes índios), como, por exemplo, a proibição do caçador comer sua presa (deve dá-la para os outros e comer da caça de outro caçador)(2).
Entre os Xavantes, um homem que batia muito em sua mulher foi justiçado: teve a garganta cortada com taquara; as coxas e o corpo foram cortados com dente de piranha (ainda assim, sobreviveu ao castigo). Mas os narradores do fato dizem que “esse costume não continua” (3).
Para os índios Arara (localizados no Pará), por exemplo, não há poder entre os homens que se estruture como possibilidade legítima de dominação ou coerção de qualquer natureza (a não ser aquela da apreciação da coletividade sobre o comportamento de cada um)(4). Entre eles foi percebida a existência de valores éticos polares: egoísmo, violência, predação de um lado e formas gentis, solidárias e generosas de convívio, de outro. O ROUBO, por exemplo, é uma forma de egoísmo. Há OBRIGAÇÃO de doar caça: alguns devem dar a caça ao sogro (atual ou futuro, pois um casamento obriga o genro a prestar serviços ao sogro), outras dão para o que será sogro de seu filho e outros, ainda, para o líder da casa. A QUEBRA DESTAS REGRAS GERA CASTIGOS SOBRENATURAIS: no início dos tempos, os macacos-prego e as cutias eram gente, mas foram transformados em bicho por transgredirem as regras de boa convivência. MAS HÁ OUTRAS FORMAR DE ACOSTUMAR AS PESSOAS A CUMPRIREM AS REGRAS: crianças impacientes e irritadiças (...) ficam quase sem comida e sem carinho até que se acalmem e se submetam. Inimizades e desavenças eram resolvidas pelo afastamento do indivíduo ou do subgrupo hostil e, a depender das alianças políticas, pela formação de barreiras sociais que impediam a continuidade das relações do grupo adverso com a rede intercomunitária que envolvia as várias unidades locais dispersas espacialmente. AS DESAVENÇAS EM GERAL SÃO SOLUCIONADAS POR AMEAÇAS: os homens ritualizam, em frente às casas, ameaças a algum desafeto, geralmente em decorrência de relações extraconjugais de suas esposas. Neste caso de suspeita de RELAÇÕES EXTRACONJUGAIS das esposas, ocorre o seguinte: os homens se pintam e, discursando pausadamente em sinal de desagravo, afirmam ter descoberto aquele com quem sua esposa o está traindo. Não raro as esposas têm mesmo amantes, quase nunca o marido os descobre, mas sempre usa o rito público de afronta para ameaçar a relativa estabilidade em que as relações extra-conjugais transcorrem: mesmo sem saber de quem se trata, um homem acerta ao menos na sua existência, complica os encontro amorosos e, com um pouco de sorte, põe fim à sem-vergonhice. Ninguém interrompe um marido que discursa. Mas jamais vi qualquer continuidade prática destes ritos cotidianos; tudo parece de fato encerrar-se ao fim das falas. Em caso de HOMICÍDIO, o homicida pode ser banido da aldeia ou ser sujeitado à vingança de um parente da vítima. Em casos de ROUBO (aqui, parece que o autor se refere ao furto), o protesto público, sem nomear o desafeto, funciona como punição. A FALTA DE CUMPRIMENTO DE REGRAS DE CONVIVÊNCIA também pode implicar interdições rituais, que o xamã impõe conforme o juízo do jaguar/onça, que é o próprio juízo do xamã. Mas a fala pública e veemente é a forma mais comum de acerto de contas com os desafetos; mais raro e mais grave é quando os homens, ao falarem, pintam seus corpos. E existe ainda, como castigo pela falta de generosidade, as punições sobrenaturais: ser transformado em queixada, caititu ou porco.(5)
A forma de gravar tais regras na memória dos índios eram os rituais de iniciação, em que, mediante a dor corporal (inesquecível, especialmente por deixar cicatrizes), se fixavam os princípios da comunidade(6).
Bibliografia:
1 - FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL. São Paulo, Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cul-tura: FAPESP, 2ª edição, 2002., p. 387.
2 - CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Tradução de Theo Santiago. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp. 119 a 143.
3 - SEREBURÃ et all. Wamrêmé Za’ra – Nossa Palavra: Mito e História do Povo Xavante. Tradução Supretaprã Xavante e Jurandir Siridiwê Xavante I. São Paulo, Editora SENAC São Paulo, 1998, pp. 22 e 106.
4 - TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari – Sacrifício e Vida Social entre os Índios Arara (Caribe). São Paulo, Editora Hucitec Anpocs, UFPR, 1997, p. 329.
5 - TEIXEIRA-PINTO, obra citada, pp. 41, 63, 73, 78, 83, 87, 98, 113, 119, 120, 121, 125, 137, 133, 155, 173, 175, 176, 186, 240, 258, 259, 264, 270, 308, 310, 341, 370, 371.
6 - CLASTRES, obra citada, p. 212.
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