Só agora, em 2010, lendo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia é que fui compreender porque a “procissão” de sábado à noite, que leva o Senhor dos Passos para a Vila, em Itajaí, é chamada de “traslado”; qual o motivo da imagem do Senhor dos Passos ser levada toda coberta e qual a razão para as pessoas andarem rapidamente só nesta “procissão”. Na verdade, este traslado era uma procissão disfarçada, por ser uma burla às normas eclesiásticas vigentes na época do início da procissão, em Florianópolis, no século XVIII. A procissão do Encontro de Itajaí foi copiada de Florianópolis; a de Florianópolis começou em 1766 (veja aqui). Nesta época já vigiam as Constituições do Arcebispado da Bahia e Florianópolis, então freguesia (de filii ecclesiae = filhos da igreja) de Nossa Senhora do Desterro, estava subordinada ao Bispo do Rio de Janeiro (conforme PIAZZA, Walter. Santa Catarina: sua história. Fpolis, ed. UFSC/Lunardelli, 1983, p. 218). Ainda conforme Piazza, já havia o Hospital e Caridade e a Igreja que hoje é a Catedral. Havia que se trazer a imagem do Hospital (num morro) para a igreja que ficava no centro da freguesia. Para trazer à noite, só com licença do Bispo, no Rio de Janeiro, o que deveria ser muito complicado, na época. A proibição, porém, era expressa e a punição severa, como se vê nas Constituições:
TITULO XV.
COMO SE COMPORÃO AS DÚVIDAS QUE SE MOVEREM SOBRE A PRECEDÊNCIA NAS PROCISSÕES, E QUE ESTAS SE NÃO FAÇAM DE NOITE
492. Porquanto tem mostrado a experiência que nas Procissões de noite pode haver e há muitas ofensas de Deus nosso Senhor, as quais, diz o Apostolo, são obras das trevas, de que é Príncipe o demônio, ordenamos e mandamos, sob pena de excomunhão maior "ipso facto", que nenhuma Procissão, assim das que já estão instituídas, como ao diante se instituírem, se possa fazer de noite das Ave Marias por diante e que nenhuma comece tão tarde, que seja preciso recolher-se de noite, excetuando-se a Procissão que por uso antigo e geralmente recebido e praticado no Reino e nesta Cidade se costuma fazer Quinta-Feira de Endoenças, saindo da Igreja da Misericórdia.
493. E quando houver alguma tão grave e urgente causa, que peça fazer-se a Procissão de noite, se nos dará conta dela, para darmos licença, se entendermos ser assim mais serviço de Deus. E proibimos às mulheres, sob pena de excomunhão maior "ipso facto", acompanhar as ditas Procissões e as mais que de nossa licença se fizerem de noite.
Certamente optou-se pela procissão disfarçada de traslado. Até porque transportar a imagem numa carroça seria um escândalo, pois ainda o era no século XX, como se viu em outra postagem. Então, a opção por cobrir a imagem e seguir rapidamente de um lugar sagrado a outro, de modo a tentar descaracterizar a procissão deve ter sido a forma de fugir das punições e contornar a proibição. Ou seja, o evento, tecnicamente, sempre foi uma procissão; mas que não era assumida como tal, por violar as regras eclesiásticas.
Oswaldo R. CABRAL, ao falar sobre a Procissão do Senhor dos Passos, em Florianópolis, informa que ela começou a acontecer em 1767. Mais adiante, CABRAL noticia que, na véspera do Domingo de Passos, a imagem, vedada por um biombo, descia da capela, na colina da Boa-Vista, passava pelas ruas do Vinagre e da Cadeia, subia o Largo da Matriz e nesta penetrava (- sem grifo no original; Nossa Senhora do Desterro, Fpolis, Lunardeli, 1979, V.2, p. 256). E o programa oficial da Procissão do Senhor dos Passos ainda chama o evento de sábado de traslado, reservando o nome "procissão" para o evento de domingo (ver a reprodução de partes do prospecto, acima).
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