As obras públicas demoram, no Brasil. Mas isto não é um produto da modernidade e sim uma cultura secular, descrita em obra de 1860 e exemplificada em obra de 1979:
Gasta-se muito papel, discute-se muito, teoricamente, e o resultado, que se vê e se apalpa, é quase nenhum. Temos infelizmente grande tendência para o aparato. (p. 205)
Tudo quanto é administrativo é entre nós arbitrário, moroso e precário. (…) (Das periódicas interinidades nos cargos públicos) e da falta de vitalidade na ação administrativa provém extraordinária lentidão na expedição dos negócios administrativos, grande falta de coesão e sistema e uma notável esterilidade, senão de projetos, ao menos de melhoramentos reais. (p. 217)
Dizia o sr. Feijó (Diogo Antônio Feijó) que, por mais simples e claro que fosse qualquer negócio, era desgraçadamente objeto sempre de grande questão. (pp. 309-310)
A autoridade local desculpa-se com a sua impotência, com as delongas inevitáveis, com as informações, pareceres, com a dependência em que está, com as dilações das idas e vindas da correspondência. O centro, com a acumulação dos negócios e correspondência, com a impossibilidade de ver as coisas por si, com a insuficiência de esclarecimentos e de pessoal. Todos têm mais ou menos razão, e os negócios não andam para diante. (…) A acumulação de tantas e minuciosas atribuições justifica um grande número de empregados e agentes, que vai sempre em aumento e exige despesas enormes e sempre crescentes. (pp. 442-443).
Por fim, passados meses e às vezes anos, reconhece-se que a questão é fútil e solve-se. No entanto ficou por esse tempo parado o seu andamento, e muitas vezes não aproveita mais a solução. (p. 444)
A obra é de 1860, mas a edição consultada é recente: Visconde do Uruguai / organização e introdução de José Murilo de Carvalho – São Paulo: Ed.34, 2002. 640 p. (Coleção Formadores do Brasil) – ISBN 85-7326-237-0 – Paulino José Soares de Souza era o nome do Visconde do Uruguai.
O caso que serve de exemplo para a cultura de morosidade (na verdade é um anti-exemplo) é o seguinte (texto é longo, mas merece ser citado):
Em 1791, em nome do Governador Coronel Manoel Soares de Coimbra, dirigiu-se à Câmara o Secretário de Governo, Antônio José da Costa, mui rebarbativamente, para dizer que “o Senhor Coronel Governador desta Ilha, atendendo às irregularidades do terreno em que se acham estabelecidas as Bancas de Peixe que se vende ao Povo, me ordenou que, convindo a Vmcês, as fizesse remover para o lugar onde se axão as casinhas das Quitandeiras e assim, mais a casa denominada do Almotacé, que ficará na frente e no destrocimento da Rua que vai da Casa da Câmara, distante da frente das Casas aqueles palmos que couber no pocível (sic) para rua e servidão do Povo”.
Se a Câmara ficou em condições iguais às minhas neste momento, deve ter ido perguntar ao Secretário o que é que queriam ele e mais o Governador... Onde se situavam as bancas eles deviam saber, o que não acontece comigo, sendo todavia de conjeturar fosse nas proximidades, junto à praia, indo para Santa Bárbara. Também não me é possível fixar com exatidão onde ficava a tal “frente e no destrocimento da rua que vai da Casa da Câmara”, sem dizer para onde e em que direção... Mas o certo é que a ordem foi dada e significava, nada mais nada menos, que a banca do peixe deveria ser mudada para outro local. E mais: - “à custa dos denominados Pescadores estabelecidos nesta Vila e que vivem daquela oficina (daquele ofício?), cometendo-lhes pena no caso de duvidarem fazer, pois são os que devem e ão de contribuir com a despeza da referida transladação”.
Foi assim que, quiosques ou barraquinhas (para os quais haviam evoluído os toldos primitivos das quitandeiras) e bancas de peixe reuniram-se no lugar mais central e acessível da Vila. É certo, também, que não se sabe com exatidão quando as tendas, os abrigos ao acaso, levantados pelos vendedores e quitandeiros, transformaram-se em propriedade “da nação”. Certamente o Governo teria auxiliado para que fossem construídas barraquinhas permanentes, mais ou menos uniformes, e buscado posteriormente ressarcir-se do emprego de capital, mediante a cobrança de alugueres. Aí é que foi o mal pois um aglomerado de biscateiros e de ambulantes, reunidos numa espécie de feira-livre, que poderia ser dissolvida a qualquer momento por uma simples disposição da Câmara, adquiriu uma inesperada estabilidade. A nação lhes construiu os barracos – eles, os biscateiros, os alugaram. Agora para removê-los seriam precisos muita força e muito engenho. Daí para diante o caso não iria ser fácil...
Como o correr dos anos foi a população verificando que a presença daquelas inestéticas barraquinhas na praça principal da Cidade, não condizia com a sua importância de Capital da Província.
Pensou-se em colocá-las abaixo, em livrar o Largo daqueles empecilhos, em “moralizar” (foi o termo empregado...) o centro urbano de Nossa Senhora do Desterro, livrando-a dos ajuntamentos em torno dos quiosques. Neste sentido a Câmara oficiou ao Presidente Miguel de Souza Melo e Alvim (governou Santa Catarina de 18.6.1828 a 4.12.1829, segundo a Wikipédia), pedindo-lhe reconhecesse o “damno público resultado das barracas por conta da Fazenda Nacional, alugadas a pessoas imorais e athé a escravos, e que desde a sua origem tem sido receptáculo de roubos e lugar de todo o gênero de prostituição, além do ridículo aspecto que faz apresentar a praia da praça da Cidade”. Pedia-lhe obtivesse ordem para a demolição, “ficando a cargo da Câmara a obra que lhe substituir”.
Já naquela recuada era, entretanto, existiam os “zelosos” defensores do patrimônio nacional, que tinham sempre ao alcance da memória uma disposição, uma lei, um decreto, um alvará, sabe Deus mais o quê, uma tradição, um empecilho, afinal, que contrariava qualquer projetado melhoramento da malfadada Vila, zelosos defensores ainda hoje muito ativos, sempre que for para obstaculizar qualquer melhoria da Cidade, dispostos a gastar resmas de papel para provar que o progresso, a evolução da Capital não podem, nem devem, verificar-se, desde que possa desfalcar de alguns míseros tostões a Fazenda Nacional, como se o bem comum, a prosperidade geral, dela não fizessem parte integrante...
O patriarca desta respeitável e retrógrada tribo, que conseguiu estabilizar o desenvolvimento da Capital de Santa Catarina, no marca-passo que a tornou ímpar em todo o território nacional, não só pela lentidão do seu progresso, como também pelo sagrado respeito ao patrimônio e seus interesses – que, até bem pouco, não queria perder um infecto charco, por exemplo, porque a Câmara poderia transformá-lo num jardim – o patriarca dessa soleníssima irmandade foi o Presidente da Junta da Fazenda, de nome João Prestes Barreto da Fontoura, que imediatamente advertiu o Presidente, à vista da representação da Câmara, que o melhoramento pretendido na ia assim, do pé para a mão... Não senhor: - “as barraquinhas eram da Nação”.
Fossem imorais ou indecentes, imundas ou ridículas, pouco lhe importava; estivessem a prejudicar o aspecto da cidade, fossem foco de ajuntamentos – nada disso o interessava. O que fazia conta era que rendiam... 126$840, anualmente, para os cofres da Tesouraria Geral – e a importância estava “cotada” no Orçamento!
Fatos políticos, como a abdicação do Imperador Pedro I, desordens na Vila e outros problemas políticos fizeram com que o assunto das barraquinhas só voltasse a ser ventilado em 1832. Foi quando o Engenheiro Militar, major Patrício Antônio Sepúlveda Ewerard apresentou um Requerimento à Sociedade Patriótica Catarinense, em sessão de 28 de outubro.
Este requerimento era “para que se oficiasse à Câmara Municipal, rogando-lhe influir com o Governo, a fim de se demolirem as Barracas d’Estado em frente à Praça, acabando-se a fim com esta guarida de vagabundos e escravos vadios”.
Foi a Sociedade favorável a esta interferência, mas achou mais razoável esperar a instalação do Conselho Geral da Província para se oficiar ao mesmo o que fora aprovado (Ata de 11-11-1832), o que de fato ocorreu (9-12-1832).
O passo mais difícil fora dado e, dois anos depois, a 25 de junho de 1834, a Regência determinava o arrasamento das barraquinhas mas, por incrível que pareça, o que só se explica com a interferência de gente poderosa interessada no negócio, não foi cumprida a determinação – e, só em 1838, (quatro anos depois!!), a Assembleia Provincial votaria uma lei, autorizando o Presidente da Província a contratar a construção de um Mercado, no terreno de marinha compreendido entre as ruas do Livramento e do Ouvidor - justamente no Largo Municipal, onde depois viria a ser construída a Alfândega.
Mas, nem mesmo assim foi construído o Mercado, possivelmente por falta de dinheiro, que raspados sempre andaram os cofres provinciais – e dos municipais, então, nem é bom falar! - embora no decorrer dos anos tivesse ficado mais ou menos assentado que as barraquinhas não poderiam continuar a existir, e que a sua derrubada era questão de tempo, pois, ainda que permanecessem de pé, não se haveria de eternizar aquele motivo de escândalo público.
(…)
Ano após ano, chegou-se ao de 1845, sem qualquer solução. Havia onze que a Regência abrira mão daqueles rendimentos que provinham das tendas, que concordara em urbanizar a praça (…).
Em 1844 ou 45, anunciou-se que Sua Majestade o Imperador visitaria a Capital de Santa Catarina – o que levou as autoridades a cuidar de lhe dar um melhor aspecto, uma feição mais limpa. E os conservadores barraquistas, desta vez, não se opuseram a retirá-las do local em que estavam, sinal evidente de que eles reconheciam serem as barraquinhas o que todo o mundo dizia e que só por vil interesse as desejavam conservar ali, sabendo de todos os inconvenientes que acarretavam. Na ocasião em que se anunciava a visita imperial, concordaram todos em que as pituítas do Senhor Dom Pedro não poderiam ser agredidas por perfumes tão esquisitos, nem seus olhos feridos por cenas tão desagradáveis. Mal o Presidente Antero José Ferreira de Brito propôs a remoção dos barracos, concordaram todos... mas por trás dos bastidores ficou mais ou menos estabelecido que, mal virassem as costas o Imperador e sua comitiva, os barracos voltariam para a Praça, pois o povo a eles se acostumara e assim requeria a sua comodidade. Incrível!...
Não obstante, quase às pressas, lá foi tudo de cambulhada para o largo de Santa Bárbara, junto à Ponte do Vinagre, nas proximidades do Forte daquele nome, hoje Capitania dos Portos – lugar então que, de toda a cidade, era talvez o que mais conviesse àquela sujeira toda... pois já gozava da fama de ser, dela, o mais imundo!
(…)
Mas, os barraquistas não estavam dormindo... Mal passou a comitiva imperial, de volta do Rio Grande do Sul para a Corte, em fevereiro de 1846 (era preciso esperar esta volta, pois poderia surgir a eventualidade de uma arribada fora do programa) e 62 cidadãos desta terra dos casos raros, saudosos das imundícies anteriores, requereram ao Presidente a volta do mercado público, isto é, das tendas, “do lugar em que se acha presentemente para o antigo local da Praça”.
Prevaleceu, porém, o requerimento em contrário, assinado por 144 pessoas.
As barraquinhas não voltaram. Em 1848 foram iniciados os atos para a construção de um mercado público, que foi inaugurado naquele lugar, em 1851. Este mercado foi demolido por volta em 1896 e, em 1898 foi construído o mercado atual de Florianópolis. Provavelmente o primeiro mercado situava-se onde hoje é a Alfândega, ou onde hoje há um monumento em homenagem ao Miramar.
O fato acima é narrado por Oswaldo Rodrigues CABRAL, em Nossa Senhora do Desterro,Florianópolis, Lunardelli, 1979, pp. 86 a 96.