sábado, 23 de outubro de 2021

Uma conversa sobre café


Há cerca de 4 anos comecei a tomar café de forma, digamos, mais detalhada: aprendi a moer o grão, a coar com água não muito fervente e a beber sem açúcar ou adoçante. Aprendi também que o pó de café não pode queimar quando é coado. Este problema fica muito evidente quando se trata de café expresso. O ideal é que a água esteja a 90ºC. Acho que este é um grande problema das cafeterias que frequento. Raras são as que não servem o café  expresso queimado.

Se o café não queima quando da filtragem, ele pode ser bebido sem açúcar ou adoçante. E sem açúcar ou adoçante se consegue perceber os sabores reais do café e suas nuances.

Para fazer em casa o café filtrado, melhor moer o grão. Apesar de existirem variedades caras e sofisticadas de grão, para o meu gosto, basta a moagem para que se sinta o cheiro e o frescor do pó. Também ainda não descobri as diferenças entre o pó resultante dos três tipos de moedores que uso. Como acho que a melhor marca de carro é o zero quilômetro, ainda estou na fase de achar que o melhor café é o recém moído.

Não sei quais países têm tradição de café, mas o cheiro e os outros odores dos demais produtos que compõem uma mesa de café, são tão ou mais encantadores do que os sabores. E o ritual do café em família ou entre amigos, ainda é parte do prazer.

O café que mais me dá saudade é o café da tarde, aquele que as pessoas tomavam por volta das 15 horas. Em Itajaí, na década de 1960 (minha infância), havia padeiro que vendia pães nas casas por volta das 14 horas e às 15 se montava uma mesa simples de café. Ali se tomava café com leite e pão com manteiga ou geleia. Mesmo aposentado, não consegui mais remontar estas mesas de café. Os tempos são outros.

Curiosamente, até ontem achava que o grande introdutor do café no Brasil fora Francisco de Melo Palheta. Lendo, porém, um capítulo do livro História Geral da Agricultura Brasileira - de Luís Amaral, p. 179/184 pdf (ver o livro aqui) descobri que há controvérsias sobre a origem do café brasileiro, inclusive se falando na possibilidade de termos espécies nativas de café.


sábado, 9 de outubro de 2021

Cortesões

 Cortesões eram as pessoas que compunham as cortes. Mas o que faziam? O título V do Livro 3 das Ordenações Filipinas dá uma relação dos cargos ocupados pelos que ficavam próximos do rei, talvez morando em palácio. As Ordenações os consideravam tão essenciais, que lhes davam o privilégio de somente serem processados na Corte. Ou seja, se alguém morasse em Salvador ou Recife, em 1680, por exemplo, e quisesse processar o Anadel Mor, teria que contratar um advogado na corte, em Lisboa e o processo tramitaria lá. Desanimador, não é mesmo?

Os cargos das pessoas que atendiam ao Rei eram, dentre outros, o Regedor da Casa da Suplicação, Presidente da Mesa do Desembargador do Paço, o Chanceler Mor, Desembargadores do Paço, Vedores da Fazenda Real, Desembargadores da Casa da Suplicação, Presidente da Mesa da Consciência e os Deputados dela, Escrivão da Chancelaria da Corte, os Oficiais da Justiça, que continuadamente nela andam, os Escrivães que escrevem perante os Desembargadores e Corregedores do Crimes e Cível dela, e haviam do Rei mantimento ordenado, Escrivães da Real Fazenda, o Escrivão da Puridade Real, os  Secretários do Rei, a pessoa, que despachava com o Rei as petições do Estado, o Mordomo Mor, o Camareiro Mor, Alferes Mor, Guarda Mor, Meirinho Mor, Reposteiro Mor, Anadel Mor, Monteiro Mor, Copeiro Mor, Aposentador Mor, Coudel Mor, Porteiro Mor, Caçador Mor, Almotacé Mor, Vedor da Casa Real, enquanto andassem na Corte. E se algum dos sobreditos tivesse contenda com outro algum de semelhante privilégio, em todo caso sempre litigariam na Corte.

Se algum Desembargador da Casa da Suplicação tivesse contenda com outro Desembargador da Casa do Porto, o da Casa da Suplicação seria demandado perante o Corregedor da Corte, e o da Casa do Porto perante o seu Corregedor, seguindo o autor o foro do réu .

E o Governador, Chanceler, Desembargadores da Casa do Porto, e os Escrivães dela, que tinham  mantimento do Rei, quer sejam réus, quer autores, poderão levar seus contendores à dita Casa, se quiserem perante o Corregedor dela litigar, posto que os réus sejam moradores nas Comarcas do distrito da Casa da Suplicação.

As atribuições de alguns desses cargos são mencionadas por Emanuel Pegas - neste link, volume 13, p. 152/84pdf.



sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Embaixada

 Tanto nas Ordenações Filipinas (Livro 3, Título IV), quanto em obras contemporâneas (veja--se, por exemplo, minhas postagens sobre a obra de CADORNEGA aqui, aqui e aqui), percebe-se que as embaixadas, no Século XVII, ainda não eram permanentes:

Nas Ordenações:

"1. Se algum Embaixador a Nós vier de fora do Reino com Embaixada de algum Príncipe, ou comunidade, tanto que entrar em nossos Reinos e senhorios, o havemos por seguro de qualquer malefício, que neles houvessem cometido em qualquer tempo, antes de ser enviado com a dita Embaixada; e em assim a todos os que sai companhia vierem pelo servir, e acompanhar na dita Embaixada, não sendo nossos naturais . E por tanto não sendo citados, acusados, nem demandados em nossa Corte, nem em outra parte de nossos Reinos, por tais malefícios, durando a Embaixada, e mais dez dias: salvo, acusando eles, ou cada um deles outrem, como dito é."

Em CADORNEGA, Tomo I, p. 156:

"Tomou posse João Corrêa de Souza, no ano de 1621, e logo no princípio do seu Governo, teve uma memorável embaixada, digna de individual narração. Assim que Gola Bandi soube, ser chegado novo Governador, desejando reconciliar-se com os Portugueses; e não ignorando o mau conceito, em que estes o tinham, pela sua pérfida conduta; com notável sagacidade, nomeou para embaixatriz, a sua Irmã Ginga Bandi, em cuja viveza e desembaraço, pôs toda a esperança."

Vicente M. Rangel dá interessante notícia sobre quando as embaixadas começaram a ficar permanentes:

"1. É noção difundida, embora nem sempre clarificada e aceita, a de que somente a partir do Século X V se constituíram as chamadas embaixadas permanentes."

E, enfim, estou estudando o motivo de, em 1955, a Escola de Samba Embaixada Copa Lord ter colocado "embaixada" em seu nome. A palavra "embaixada" teria o antigo sentido, o do século XVII,  ou seja, de missão de uma potestade à outra? É provável.

Abelardo Henrique BLUMENBERG (Avez-Vous)- Quem vem lá? A história da Copa Lord - Florianópolis, Editora Garapuvu, 2005, pp. 16 e 17 -  explica que o nome deveu-se a uma gíria carioca da década de 1950 ("copa Lord", que significava viver numa boa) e que Embaixada Copa Lord significava "vivermos numa boa nessa embaixada". O emblema da escola de samba era "um Ás de Copas significando o amor e paixão do sambista pela Copa Lord; o conjunto luva, cartola e bengala expressando a nobreza dos sambistas da escola".  (foto: Jônathas Paré)

Imagens, porém, podem ser interpretadas de várias maneiras, de modo que o Às de Copas poderia ser a copa; e a luva, bengala e cartola, o Lord.

O sentido de embaixada, porém, vai aparecer na p. 64, quando se menciona um "samba de quadra" intitulado "Copa Lord, a Embaixada do Samba". Na letra do samba não aparece a palavra embaixada. Fica-se com a interpretação do título, que remete ao antigo sentido de embaixada, aquele do século XVII (missão de uma potestade à outra). Faço aqui este registro, por achar interessante que, na Florianópolis de 1955 (ano da fundação da Embaixada Copa Lord) se revivesse um significado da palavra embaixada tão distante no tempo. Ou, talvez, este significado nunca se perdera na cultura popular florianopolitana (ou brasileira, caso todo o nome da Escola de Samba - e não só uma parte -  se tenha abeberado no Rio de Janeiro, como se insinua na p. 16 do livro de Avez-Vous).

(The meaning of the word "embassy" in the 17th century, in Portuguese.)


Privilégios processuais da nobreza

 Nas Ordenações Filipinas, os nobres não compareciam ao processo da mesma maneira que os plebeus. A começar pela citação, esta ocorria de forma diferente, o que, provavelmente, já dificultava o início do processo (Livro 3, título I):

"19. Os Infantes, Duques, Marqueses e outros grandes de nossos Reinos, que per antigo estilo e costume de nossa Corte, sendo achados fora dela, são citados per Carta de Câmera  para alguma causa, o não devem ser para falarem a ela, per passar de seis meses, nem para a execução da sentença. Porém sendo achados na Corte, podem e devem ser citados pelo Escrivão dante o Julgador, que houver de conhecer, ou conhece do feito; e isto se não entenderá na Rainha."

Mas havia outros privilégios processuais que se reivindicavam para a nobreza, como se pode ver em livro "Privilégios da Nobreza, e Fidalguia de Portugal", de Luiz da Silva Pereira OLIVEIRA, de 1806. Este livro, além de fazer uma lista de privilégios processuais, ainda reivindicava prioridade de acesso aos nobres dos cargos Estatais (ver nas páginas 120 e seguintes aqui). Penso que ainda hoje, no Brasil, há uma classe de pessoas que se imagina nobre e que continua reivindicando privilégios de nobreza, o que explicaria certas revoltas com o princípio da igualdade jurídico-política previsto no art. 5º da Constituição. 

Entretanto, não só a nobreza tinha privilégio de foro: também órfãos, viúvas e miseráveis tinham privilégio semelhante (veja-se o link acima - Livro 3, T. I). 

"E o órfão varão menor de quatorze anos, e a fêmea menor de doze, e a viúva honesta, e pessoas miseráveis , ainda que sejam autores, têm privilégio de escolher por seu Juiz os Corregedores da Corte, ou Juízes das auções novas na Casa do Porto, sendo do seu distrito, ou os Juízes ordinários do lugar, a que direitamente pertenceria o conhecimento da causa, qual eles mais quiserem. E esta mesma escolha e privilégio terá a viúva, e o órfão nos feitos, que ficarem começados per morte de seu marido, ou pai, ora fosse autor, ora réu." 

Órfãos eram os menores de 14 anos cujo pai havia morrido. Esta concessão aos órfãos, viúvas e miseráveis já vinha do Direito Romano, como explica Francisco C. Boy em interessante texto (UTILIZACIÓN PRAGMÁTICA DEL DERECHO ROMANO EN DOS MEMORIALES INDIANOS DEL SIGLO XVII SOBRE EL PROTECTOR DE INDIOS). 

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Processo parado por negligência das partes

 Nas Ordenações Filipinas (Livro 3, Título 1, item 15), se as partes deixassem o processo parado por seis meses, deveria haver nova citação. Mas, note-se, a permissão de inércia era de seis meses. Hoje, a permissão passou para um ano:

As Ordenações:

"15. E depois que passam os seis meses sem se falar ao feito, não estando concluso, ou estando concluso um ano na mão do Escrivão , sem se falar a ele, não se pode tornar a falar nele, até que a parte seja novamente citada."

O CPC de 2015:

"Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:

(...)

II - o processo ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes;"

Mas a citação sempre teve deveria ser feita de dia:

As Ordenações

"16. Toda a citação deve ser feita de dia, em quanto o Sol durar. E sendo feita antes que o Sol saia, ou depois que se ponha, não valera coisa alguma."

No CPC de 2015 não há disposição específica, mas dá-se preferência ao dia claro: 

"Art. 212. Os atos processuais serão realizados em dias úteis, das 6 (seis) às 20 (vinte) horas."



terça-feira, 28 de setembro de 2021

Ordenações Filipinas - Livro II

 Depois da disponibilização do Livro 1 em PDF pesquisável das Ordenações Filipinas, aqui está o Livro 2, também em PDF pesquisável e acessível aqui. Trata-se de trabalho escolar de meus alunos de Direito Constitucional, efetuado entre os anos de 2004 e 2008 e que, somente agora, graças à aposentadoria, estou revisando detalhadamente e publicando. Como já falei em outra postagem, os meus ex-alunos do então IBES/Blumenau verteram a versão fotográfica em PDF (que foi trazida à lume pelos alunos da Universidade de Coimbra) para texto editável. Eu unifiquei todos os trabalhos, os revisei, verti para PDF pesquisável  e estou publicando. Trata-se de publicação sem fins lucrativos, como tudo que é publicado em meu blog.

O Livro 1 das Ordenações Filipinas trata da organização administrativa do Reino de Portugal, descrevendo ofícios (hoje cargos) e regimentos (hoje atribuições), tanto na administração da Corte, quanto na administração dos Concelhos (os municípios de hoje), Senhorios e Conquistas (havia Concelhos e Conselhos na administração portuguesa). O Livro 2 vai tratar das relações do Estado com a Igreja, dos poderes do Rei, da cobrança de seus créditos e da forma como os Senhorios (donatários de terras) exerceriam seus direitos e privilégios. No resumo que faço abaixo, deixo de indicar onde estão os assuntos que menciono, pois, como disse, a íntegra do livro 2 está em PDF pesquisável, de modo que basta acessar o link acima e encontrar o assunto desejado.

O Livro 2 se inicia regulando os conflitos de jurisdição entre a Justiça Eclesiástica e a Justiça Secular. É que a Monarquia Absoluta Portuguesa tinha uma relação de dependência com a Igreja Católica, como ocorria com a Europa toda (a chamada cristandade) até a Reforma Protestante. Passada a Reforma, Portugal e Espanha continuaram Estados católicos. De se notar aqui que, enquanto outros países da Europa lutavam contra os muçulmanos em Jerusalém (as Cruzadas), Portugal e Espanha faziam a guerra em seus próprios territórios até 1492. Por esta razão, havia tribunais administrados pela Igreja e tribunais administrados pelo Estado. Mas estas não eram as únicas jurisdições. Ao longo do Livro 2 veremos que havia pluralidade de jurisdições, sendo recente, entre nós, a jurisdição universal como a conhecemos hoje.

Um aspecto interessante nesta disciplina das competências, é que ele parece um eterno ir e vir, já que, na atualidade são constantes as discussões processuais acerca da competência das justiças comuns Federal e Estaduais e sobre as competências entre as jurisdições especializadas.

Outro aspecto interessante na disciplina que o livro 2 das Ordenações Filipinas faz acerca da competência entre a Justiça Eclesiástica e a Justiça Secular, é que as normas são baseadas em tratados celebrados entre o Estado Português e a Santa Sé.  

Além das definições sobre competência, também eram disciplinados os julgamentos de religiosos que fossem julgados pela Justiça Secular. 

A Igreja possuía imunidades, que se estendiam por todos os prédios que abrigassem templos (católicos). Assim, se alguém que era perseguido pela Justiça Secular se abrigasse numa igreja (isso se chamava “acoutar” - o conceito de couto está em uma das notas de rodapé ao Livro 2), estaria imune enquanto no interior do templo. Não alcançavam esta imunidade alguns criminosos, tais como o ladrão público e os que ateavam fogo em pães. E também não ficava imune o escravo que se acoutasse na igreja para fugir do cativeiro. Mas o escravo teria imunidade se se acoutasse na igreja por causa da crueldade de seu senhor. As igrejas também recebiam mercês do Rei para comprarem bens de raiz.

Está também no Livro 2 das Ordenações Filipinas a regulamentação dos casos em que a Inquisição (o Santo Ofício da Inquisição) necessitava do auxílio do braço secular da justiça para realizar diligências processuais.

No corpo das Ordenações havia muitas expressões em latim e a obra mais copiosamente citada pelo anotador desta edição da 1870 (Cândido Mendes de Almeida), qual seja, os Comentários às Ordenações, de Emanuel Álvares Pegas, edição de 1683, era totalmente escrita em latim (exceto os trechos de julgados e normas transcritos).

Já que estou tratando dos comentários, faço um parêntesis para registrar que estes comentários de Cândido Mendes de Almeida estão todos em notas de rodapé e, como a formatação da transcrição foi efetuada em Word ® , depois convertida para PDF, as notas de rodapé desta versão que publico foram distribuídas automaticamente, de modo que estão com numeração diferente da edição-base. O texto e a correspondência do que é referido está mantido conforme o original, que pode ser visto aqui. Ainda no que toca aos comentários, Cândido Mendes de Almeida faz referência a muitas obras jurídicas de seu tempo e dos séculos anteriores. Em geral, estas obras estão disponíveis na Internet, como é o caso da obra de Pegas. Nesta obra de Pegas há informações históricas interessantíssimas, como é o caso dos estatutos da cidade de Coimbra, ou Forais, e outras normas medievais. Estes textos estão mencionados no corpo da transcrição das notas de rodapé do Livro 2. 

Outro ponto necessário para registro é que preservei a linguagem da edição de 1870, de modo que há palavras em desuso. Somente atualizei a grafia das palavras quando aquela original estava fora dos padrões legais de escrita na atualidade. 

Há passagens desta transcrição digital do Livro 2 em que destaquei o texto em amarelo, o que fiz em pontos que, a meu arbítrio, achei interessantes para destacar.

Pois bem, voltando ao Livro 2.  

Além da disciplina da jurisdição eclesiástica e secular, ali são tratadas também as isenções da Igreja perante o Rei. Era usada a palavra “tributo” e também a expressão  “direitos do Rei”.

Nas Ordenações, a expressão “direitos reais” significa direitos do Rei. Creio (não fiz estudos detalhados) que a expressão “direitos reais” somente passou a ser usada como sinônimo de “direitos das coisas” a partir do século XIX. Mas isso é matéria para outros estudos. O fato é que, nas Ordenações, Direitos Reais significava Direitos do Rei. 

A expressão “direitos reais” não compreendia somente a matéria tributária, mas abrangia outros poderes do rei, como criar Capitães. Este é um ponto importante para nós brasileiros, pois diz respeito às Capitanias, que, até 1821, foram a forma de divisão territorial do país. Outros direitos reais consistiam na nomeação de oficiais que hoje chamamos de servidores públicos.  Em um ponto do livro 2 consta que eram necessárias licenças para se venderem e trespassarem Ofícios, que cessou no Brasil em 1827. Mas há um título (XLVI) que proíbe a venda de ofícios por donatários de terras. 

Um dos títulos do Livro 2 das Ordenações Filipinas traz a lista dos direitos reais. Segundo Coelho Sampaio, citado por Cândido Mendes de Almeida, estes Direitos Reais foram extraídos das leis romanas e do Direito Canônico. Ainda segundo Mendes de Almeida, os Direitos Reais equivaliam, na época da edição da obra (1870 - Brasil Imperial) aos Direitos Nacionais. Hoje são os bens e as competências da União. Claro que alguns desses direitos estão hoje mitigados, ainda que sejam do Estado Republicano. Assim, se era direito do Rei ser servido pelo povo, hoje a requisição de serviços e o serviço militar sofrem limitações; o direito do Rei de desapropriar (na linguagem do Livro 2: tomar carros, bestas e navios), hoje foi mitigado pela necessidade de justa e prévia indenização.

As relações das Ordens de Cavalaria (de Cristo, de Sant-Iago e de Aviz) era outro ponto tratado no Livro 2. O tema eram os privilégios de que gozavam os Mestres, os Comendadores e Cavaleiros destas ordens.

Nem todos os bens que não fossem privados pertenciam ao patrimônio particular do Rei: alguns pertenciam à Coroa, como era o caso dos Reguengos ou Realengos. Há pontos deste livro 2 em que se fala em “o Rei e a Coroa destes Reinos” (trecho acessível mediante caça-palavras). As estradas e ruas públicas (é esta a expressão usada: ruas públicas), bem como rios comuns a toda a gente, eram patrimônio real. A palavra República é usada no Livro 2, com sentido de coisa pública, apesar de se estar numa monarquia absoluta. Ainda não adquiri certeza sobre o significado da palavra “República” nas Ordenações.

Ainda no título relativo aos direitos reais, consta nota de rodapé de C. M. ALMEIDA, na qual este dá uma pormenorizada notícia sobre a legislação relativa à mineração, até o século XIX no Brasil.

C.M. ALMEIDA cita Coelho Sampaio para dizer que, em Portugal, não havia feudos. Mas o Regimento dos Capitães das Capitania tornava tais capitanias muito semelhantes aos feudos, em especial quando estas capitanias eram privadas, ou seja, fruto de doação do rei a particulares. Associou-se, no Brasil, a palavra “capitania” com a palavra “hereditária”, quando, na realidade, estas capitanias foram o embrião dos hoje Estados-membros, durando até 1820. Começaram particulares e, aos poucos, foram readquiridas pela Coroa Portuguesa; enfim, as capitanias no Brasil, duraram cerca de 300 anos e só por uma pequena parte deste período foram “hereditárias”; na maior parte do foram Capitanias somente, sendo descabido se referir a elas como “Capitanias Hereditárias.

O Livro 2 das Ordenações Filipinas se ocupa, em boa parte, das doações de terras e o que era incluído nestas doações. Assim, por exemplo, nem sempre estava incluído nas doações o recebimento de tributos que, usualmente, eram destinados ao Rei. E mesmo que algum Rei incluísse esse direito de receber tributos, a própria Ordenação invalidava esta doação, declarando literalmente que “não é de crer, que o Rei, que tal Carta assinou, a assinara, se a vira, por ser coisa tão prejudicial à Coroa do Reino.”. 

Na verdade, apesar do Livro 2 declarar que não havia feudos em Portugal, muito se assemelhavam a feudos estas terras doadas, como era o caso das Capitanias do Brasil. 

Os capitães da África tinham jurisdição - há um título sobre isso (XLVII). Nas notas de rodapé há notícias sobre a regulamentação das atividades dos capitães e governadores do Brasil. Além destas notícias, apresento link - junto às notas de rodapé - para acesso a tais regimentos. 

A normatização dos direitos reais permite que saibamos quais comidas eram consumidas no século XVII: milho, nozes, avelãs, trigo, pão, carne bovina, coelhos, galinhas… E bebidas: vinho. E se fica sabendo o conceito de lagar e de dorna. 

Outro ponto tratado no livro 2 era a sucessão da Coroa. Neste título, também se trata da Lei Mental. Esta Lei Mental era uma interpretação não escrita de legislação, ou seja, uma interpretação feita “pela mente do Rei” e se devia ao fato do Rei Dom João I ter feito promessas para subir ao trono e que não pode cumprir, revogando-as com a Lei Mental. E é nesta parte do Livro 2 em que se trata da Lei Mental, que vai aparecer o princípio do absolutismo: “nenhuma Lei, per o Rei feita o obriga, senão quanto ele, fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu Real poder.” Também é aqui nesta parte que se começa a falar em doação de jurisdição. Isto significa, como eu já disse acima, que havia pluralidade de jurisdições, ou seja, a jurisdição eclesiástica, a jurisdição secular, esta se dividindo em, digamos, originária (exercida pelo Rei ou por delegação sua) e derivada (exercida pelos donatários de jurisdição, ou seja, aqueles que ganhavam do rei as terras e a jurisdição sobre elas). Assim, se o Rei nomeava um magistrado de primeira instância, este era um Juiz de Fora; se o donatário nomeava um magistrado, este era um Ouvidor. Está também no livro 2 a forma como os Senhores de terras usariam a jurisdição recebida. Um ponto em que muito se insistia eram as Correições, que muito pouco se diferenciam das atualmente realizadas no Judiciário, Ministério Público e demais órgãos dotados de corregedoria.

As mulheres que recebiam doação do rei necessitavam de autorização dele para casar.

Os bens que hoje chamamos “imóveis” eram denominados “bens de raiz”. Bens vagos eram aqueles sem dono. Já havia o perdimento de bens auferidos na atividade criminosa.

Nem sempre os fatos punidos com degredo são hoje tidos como crimes. Assim, quem invadia uma igreja abandonada, sem licença do Ordinário (hoje chamado Vigário), era punido com degredo para a África. Quem vendia metais antes de serem marcados com o selo do quinto (20% do valor, a título de tributo) era degradado dez anos para o Brasil. Ou seja, sonegadores eram degradados para o Brasil. Também eram degradados para cá os que exercessem a função de tabelião sem carta do Rei.

A palavra “defesa” nas Ordenações, geralmente é usada no sentido de proibição. A palavra “deputados” significava “assinados, designados”.  A  expressão “vistas e examinadas”, ainda hoje usada em decisões judiciais, já constava do Livro 2. E as decisões que firmavam nova jurisprudência eram chamadas “façanhas”.  Havia restrição à prescrição das penas. Gafarias eram os hospitais de portadores de hanseníase. Eram admitidas penas arbitrárias (o castigo que houvermos por bem) em certos trechos do Livro 2, mas havia, no Livro 5 disposição expressa proibindo penas arbitrárias. Também se admitia a “sabida verdade” ou “verdade sabida”.

O Livro 2 também trata do prazo de execução das leis, hoje chamado de entrada em vigor. Era de oito dias na corte e três meses nas comarcas, um ano no Brasil, Guiné e Ilhas e dois anos para a Índia. Atualmente, no Brasil, é 45 dias (Decreto-Lei Nº 4.657, de 4/9/1942, art. 1º). Em nota de rodapé, C. M. ALMEIDA dá o conceito dos diversos atos normativos usados durante a vigência das Ordenações: Alvará, Decreto e Provisão. Quando estes entravam em conflito com as Ordenações, estas prevaleciam, ou seja, não sendo derrogadas por aquelas. Também em nota de rodapé constam as diferenças entre príncipes e infantes, entre cativos e escravos.

Há uma extensa regulamentação sobre a execução das dívidas para com a Fazenda Real (Título LIII), ou seja, do mesmo modo que hoje, as execuções fiscais eram regulamentadas diferentemente das execuções de dívidas entre particulares. O devedor só podia opor embargos em se recolhendo à prisão. A prisão por dívida deixou de existir em Portugal (e no Brasil) pela Lei de 20 de junho de 1774.

Também no Livro 2 se fica sabendo que a era de César cessou em Portugal em 1422.

Aposentadoria não tinha sempre o sentido de hoje. Aposentar também significava ter aposentos. Mas a aposentadoria, no sentido que hoje adotamos, somente era concedida a quem tivesse a idade de 70 anos (Título LIV).

O que hoje conhecemos por “nacionalidade”, era denominado “naturalidade” (Título LV). O Brasil, para fins de naturalidade, até 1815, era compreendido na expressão - Senhorios.

Interessante é o conceito de vizinho, que não aparece na legislação atual. O Código Civil Brasileiro em vigor  fala muitas vezes em vizinho, mas não o conceitua. Este conceito está no título LVI do Livro 2.  

Paniguados, apaniguados, ou epaniguados eram os empregados domésticos que só ganhavam alguma coisa para seu sustento. Mancebo era um servidor por soldada.

A leitura, enfim, das Ordenações Filipinas, traz, portanto, valiosas informações para compreender a administração pública brasileira, em todos os seus aspectos, bem como a vida da nossa sociedade. De se notar a extensa regulamentação de privilégios neste Livro 2, que muito explica nosso cotidiano privado. 


domingo, 15 de agosto de 2021

Costume Jurídico - um conceito

 Algumas disposições legais brasileiras fazem menção ao costume. O CPC nada mais fala; o Código Civil o menciona no art. 13, 113, 122, 187, 432, 569, 596, 597, 599, 615, 965, 1.297, 1.336, 1.638 e 1.735, num total de 15 menções; o DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942 - antes Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, agora Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, o menciona no art. 4º.  

Em 40 anos de profissão jurídica, raríssimas ocasiões presenciei julgamento conforme costume. Também vi poucos conceitos e normatizações legais a respeito de costume. Mas foi numa nota às Ordenações  Filipinas (Livro 2, título XLV) que encontrei informação interessante: 

"Depois da Lei de 18 de agosto de1769 § 14, o costume para ser legítimo deve reunir os seguintes requisitos: 1º, ser conforme a boa razão, definida no § 16 da mesma lei; 2º, não contrário à Lei do Reino; 3º excedente a cem anos. 

A falta de qualquer destes requisitos denomina-se abuso e corruptela, que se não pode alegar ou seguir impunemente.

Vide LL. de 11 de dezembro de 1748, e de 17 de agosto de 1761 § 3, e Alvará de 29 de maio de 1751.

O D. de 4 de outubro de 1628 declarou que as Resoluções, com a cláusula sendo costume, se entenderá do costume assentado, fixo, não contrário à alguma ordem, e confirmado por muitos atos concordes. "

A Lei da Boa Razão contém 14 itens, não havendo um § 16, nem nos aditamentos à edição de Cândido Mendes de Almeida, como se pode pode ver aqui; um texto da Lei da Boa Razão em pdf pesquisável se encontra aqui; acessos em 15/8/2021; um conceito de boa razão está no item 9: "os primitivos princípios, que contém verdades essenciais, intrínsecas, e inalteráveis"; são mencionados como fundamentos das boas razões a ética dos romanos, os direitos divino e natural; as regras morais e civis do cristianismo, as regras do direito das gentes, as regras das leis políticas, econômicas, mercantis e marítimas).

Assim, a partir da Lei da Boa razão, podemos dizer que costume é um uso que se acredita ser conduta obrigatória (que pode ser coercitivamente imposta pelo Judiciário), e que seja praticada há mais de cem anos

segunda-feira, 12 de julho de 2021

Origem do nome "Ouvidor" no Brasil

 Segundo Cândido Mendes de Almeida, em nota ao livro 2 das Ordenações Filipinas:

"Ouvidores. Chamava-se assim outrora os Juízes nas terras dos Donatários e Nobres; e é por isso que os Juízes no Brasil e outras colônias portuguesas, a princípio pertencentes a Donatários, também se chamavam - Ouvidores, e tinham em cada Capitania os seus Regimentos.

A C. R. de 22 de Janeiro de 1623 declarou que os Governadores da América não podiam suspender os Ouvidores; e a de 24 de Março de 1708 também declarou que os Ouvidores das Capitanias do Brasil eram Juízes da Coroa, para a decisão dos Recursos interpostos das Justiças Eclesiásticas. Vide Alv. de 3 de Outubro de 1758.

A L. de 19 de Julho de 1790 extinguiu as Ouvidorias determinando que das sentenças proferidas nas primeiras Instâncias dentro das terras dos Donatários se apelava para as Relações, sendo os Ouvidores substituídos por Corregedores, em virtude da mesma Lei declarada pelo Alv. de 7 de Janeiro de 1792.

A C. R. de 4 de Março de 1802 dirigida ao Vice Rei do Brasil declarou que as Ouvidorias do Brasil não pertenciam aos Donatários, mas constituíam parte do domínio Real."

Donde se percebe ser inapropriado, por razões históricas, chamar ombudsman de ouvidor.

sábado, 30 de janeiro de 2021

GUERRAS ANGOLANAS E CADORNEGA III

 Já publiquei aqui e aqui o resumo, ou resenha, ou ficha de leitura de dois volumes da História Geral das Guerras Angolanas, de Antônio de Oliveira Cadornega. Agora estou publicando a ficha do terceiro volume, cuja indicação bibliográfica é a seguinte: 

CADORNEGA, Antônio de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas – 1680 – Tomo III (B); Lisboa, Agência-Geral do Ultramar, Lisboa, 1972. Reprodução fac-similada da edição de 1940. Autor deste fichamento: João Marques Brandão Néto

    Este livro é de dificílima obtenção, mas o Google publicou a íntegra deste terceiro volume e pode ser visto aqui. 

    O trabalho que disponibilizo em pdf aqui e aqui não tem a integralidade da obra, mas sim transcrição de trechos (algumas transcrições bem longas) e inserção de comentários meus e cotejo com outras obras. Deste cotejo, foi interessante traçar paralelos com outros fatos e narrativas contemporâneos e, muito especialmente, comparações da narrativa de CADORNEGA com instituições políticas e jurídicas portuguesas, como, por exemplo, as Ordenações Filipinas, vigentes à época da redação do livro. Dividi em dois arquivos, porque coloquei no resumo todas as gravuras do livro, o que o tornou muito “pesado”.

A leitura atenta deste livro permite conhecer e entender nosso presente e a imensa influência da cultura angolana (de onde veio grande parte dos imigrantes forçados, então escravos) nas práticas cotidianas brasileiras: na vida social, na vida familiar e na vida pública, especialmente nas atividades políticas. E também as influências e heranças idiomáticas, muitas vezes a revelar divisões na sociedade só perceptíveis pela sutileza das manifestações verbais, dividindo o idioma em linguagem vulgar (xingar alguém) x  linguagem culta (dizer desaforo, brigar ou admoestar); quitanda (vulgar) e verdureira (culta), por exemplo. Heranças culturais que não são admitidas ou são escondidas ou disfarçadas ou vulgarizadas. E leitura atenta potencializada pela releitura e pelo resumo, coisas que só se faz aposentado e numa pandemia com reclusão doméstica quase que total.

A obra de CADORNEGA - desnecessário dizer, mas apenas para alerta - contém idiossincrasias, pontos controvertidos em religião e outros temas. Mas isso faz parte da compreensão da cultura da época, com ênfase para a cultura portuguesa e da região então conhecida como “Etiópia Ocidental” ou “Reinos de Angola”, que é abordada nos livros de CADORNEGA.

Este terceiro volume me pareceu o mais interessante dos três, pois narra costumes, instituições políticas e jurídicas de Angola na época da obra (século XVII), crenças e práticas religiosas. Neste aspecto, interessante a visão dos não animistas a respeito de tais práticas, pois a confundiam com práticas diabólicas (diabolarias, sacalamentos, xaquetamentos) e feitiçarias. Há narrativas de atos sobrenaturais realizados por feiticeiros, como, por exemplo, dominar o comportamento de crocodilos, fazendo-os, inclusive, devolver presas humanas que atacaram. Ou de homens que dominavam cobras moelele para que elas fossem suas guardiãs, ou, ainda, homens que se transformavam em leões, tudo envolvendo os nativos, que CADORNEGA descreve como dotados de poderes mágicos decorrentes de associação com o Diabo.

As notas deste terceiro volume são de Manuel Alves da Cunha. Todas as notas que constam do fichamento estão em letra azul. Tudo que transcrevi é destaque do conteúdo, mas há destaques maiores que estão em letra vermelha.

Este terceiro tomo começa pela descrição geográfica das terras hoje angolanas e as cidades e vilas lá existentes, já sob a feição do domínio português, domínio este que CADORNEGA sempre denomina “conquista”. Este domínio português era dividido em províncias. A descrição geográfica compreende também a especificação dos edifícios, alguns com os cômodos indicados, suas finalidades e obras de arte neles existentes. Há também notícias sobre a administração das cidades, vilas e lugares, como, por exemplo, quem pagava os diversos oficiais (este era o nome do que hoje chamamos “servidores públicos civis e militares”. A distinção sobre cidades, vilas e lugares se encontra na postagem deste blog relativa ao Tomo II. A notícia dada por CADORNEGA sobre as eleições se coaduna com o que consta nas Ordenações Filipinas. Os tributos pagos aos senhorios locais, especialmente pela passagem pelos rios, eram chamados xicacos. É explicado o sistema de distribuição de justiça, incluindo o mocano ou mucano ou mukanu. É descrito um julgamento (mocano) segundo os costumes locais, inclusive havendo testemunhas (mbangi, jimbangi), não havendo mister letrados, requerentes nem solicitadores em suas causas, assistindo presente o senhor da terra, que como Juiz, ouvidas as partes e testemunhas, promulga a sentença definitiva, não havendo mais apelação nem agravo. É descrito o bulungo, uma prática de juramento na Angola do século XVII que nada mais é do que a ordália europeia. Mas há unguentos e poções capazes de burlar o bulungo. Além do bulungo há os tormentos, muito assemelhados aos descritos nas Ordenações Filipinas e respectivas notas de Cândido Mendes de ALMEIDA. Além do bulungo, outra ordália é o majongo, que é a ingestão de uma fruta que provoca vascas, que só cessam se for ministrado um antídoto.

CADORNEGA também descreve atos religiosos católicos e quem os ministrava e os assistia. Ele destaca muitas vezes o volume de cera gasto nos atos religiosos católicos como indicativo de sua importância. Na Luanda do século XVII já havia a confraria de Nossa Senhora do Rosário a congregar as pessoas negras livres ou escravas.

Já havia em Luanda o hospital vinculado à Santa Casa da Misericórdia, noticiando CADORNEGA que eram atendidas 400 pessoas por ano, bem como as fontes de renda deste hospital.

A obra também dá conta das guarnições militares portuguesas, suas lotações e remuneração dos soldados.

O tráfico de escravos era chamado de “negócio de peças” ou “resgate”. As feiras eram chamadas de quitandas e quitanda é hoje, no português do Brasil, um pequeno negócio, geralmente dedicado à venda de legumes e frutas.

O que veio a ser a vestimenta chamada “tanga” no Brasil, lá era “entanga”.

São descritos vários sucessos envolvendo crocodilos, que CADORNEGA ora denomina lagarto, ora jacaré. O hipopótamo é chamado cavalo marinho. Outros animais habitantes dos rios são arrolados, inclusive narradas lutas entre eles.

Há menção de sacrifícios, dados como feitiçarias, sob uma árvore chamada Mulemba ou ensandeira. 

Zungais são lugares com capim.

A mandioca, inicialmente vinda do Brasil e depois cultivada em Angola, era apreciadíssima por causa de seu produto, a farinha, lá conhecida por farinha de guerra.

Kilamba é o capitão da guerra preta; guerra preta é o exército de nativos. Assim, Henrique Dias, por exemplo, angolano que guerreou contra os holandeses em Pernambuco e em Angola, era um kilamba. Sovados são senhorios de terras e vassalos. Mocamas eram as damas concubinas do Rei de Angola. Mabu é papiro. Calunga é mar. Usa-se a palavra vizo-rei que eu, JMBN, penso que pode ter origem na palavra árabe vizir e ser a raiz da nossa palavra “vice”.  Quilombo, em Angola, segundo CADORNEGA, se entende um arraial formado onde há toda a gente de guerra. Estes quilombos, como arraiais destinados à guerra, tem regras duríssimas. Há instrumentos musicais chamados emgomas, marimbas e gomges ou gonges. Gonge é um instrumento a modo de chocalho com duas pernas, que tocado por fora com um palito soa muito longe, com o qual botam seus bandos e pregões.

Em geral, o que mais se negociava eram peças (escravos) e marfim. 

CADORNEGA menciona o Preste João e faz um quadro das nações dos habitantes do reino de Congo, com diferentes línguas e costumes: Mexicongos, Mexilongos, Amzicos, Monjolos, Majacas, Sundis, Sonsos, Mulumbos, Mulazas. Há uma relação de sobas ou sovas e reis nativos, com seus nomes e respectivos domínios. Como nos dois tomos anteriores, fala CADORNEGA a respeito de Ginga/Jinga/Nzinga Ambandi/Mbandi. Há uma relação das províncias da Angola de então. Quimbares eram os lavradores. Opanda é adultério, em face do qual há costumes específicos, entre os quais a indenização mediante a entrega de um escravo. São narrados costumes a respeito da iniciação sexual das mulheres. Kimbandas eram os homossexuais e alguns se tornavam feiticeiros. 

Os Jagas são largamente mencionados na obra, como sendo um povo guerreiro, que vive em quilombos. São mencionados diversos costumes e ritos singulares deles, inclusive a extração de alguns de seus dentes frontais como identificação grupal.

Não havia ídolos nas práticas religiosas de Angola, mas sim respeito aos quiculos, que eram os ossos dos antepassados. Aos quiculos eram feitas oferendas, inclusive de comidas e bebidas.  Há um capítulo descrevendo as práticas religiosas locais, que são apresentadas como diabolarias e feitiçarias. Há menção às festas comemorativas aos nascimentos das crianças, à primeira menstruação, à semeadura etc. Relata CADORNEGA as medidas que são tomadas em face das doenças venéreas (humores gálicos). Badulaques são as coisas miúdas, de pouco valor, empregadas para os feitiços. Jaquetar é fazer feitiços e sacalar é pedir cura para enfermidades. Há cuidados com o mau olhado.

Ingredientes destinados a atividades místicas são chamados na obra de Muxinifadas ou Boxinifadas. Macota é o vocábulo kimbundo dikota, makota – pessoa principal, conselheiro do soba, homem velho, gente de influência. (...)... murindas são em geral as povoações banzas e libatas dos sobas e vassalos. Quijicu chamavam aos escravos ou prisioneiros de guerra. Aqui podemos traduzir “gente de murinda e de Quijicu” por “livres e escravos. (...) ...os de Murinda são tidos e reputados por vassalos, e não podem ser vendidos, se não cometendo algum crime grande, que a troco de lhe darem a vida, lhe tiram a liberdade; os que chamam de Quigico, são peças como coisa entesourada para suas necessidades, e o que lhe era necessário; (...) Todos os sovas e apotentados são em suas terras e senhorios, como dito havemos, senhores de soga e cuxilo [Senhores de soga (corda grossa) e cuxilo (faca) – expressão equivalente a “senhores de baraço e cutelo” dos tempos feudais. Da “primeira cabeça” quer dizer “de primeira ordem”].  CADORNEGA noticia a costume de circuncidar os homens, sendo os circuncidados chamados fanados. Há também narração de práticas decorrentes da viuvez. Zumbi é defunto; Ganga é feiticeiro.

A descrição da fauna feita por CADORNEGA não é muito fiel, segundo anotou CUNHA, mas dá uma ideia dos animais que podiam ser encontrados na Angola de 1680 e como eram caçados. A carne dos elefantes era usada para alimentação dos escravos.

Os capítulos finais descrevem as paus, ervas e raízes e o uso, inclusive medicinal, que se faz delas. É mencionada a palmeira da qual se extraía dendê, vinho, manteiga, material de construção, material naval etc; do imbondeiro se faziam sacos e cordas; de árvores eram feitas canoas de um pau; são faladas outras árvores e plantas com suas propriedades e usos na época. São listadas as doenças e os respectivos remédios feitos com elementos da flora e alguns com elementos da fauna (chifre de rinoceronte - abada, como este animal é chamado no livro, por exemplo). Há muita preocupação com antídotos para venenos, na época chamados de “contras”,  “contra-peçonha” e “contra-veneno”.

A ficha de leitura na sua integralidade traz informações mais detalhadas. Vede o link.