quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Riscos de não aceitar um cafezinho

Em 2008 fiz uma inspeção num órgão público. Ofereceram-me um cafezinho. Como o café era adoçado com açúcar e eu me acostumei com adoçante, agradeci. Mais tarde, numa audiência, a pessoa que me ofereceu o cafezinho foi arrolada como testemunha da defesa (eu havia denunciado algumas pessoas do órgão, por não cumprirem o expediente). Durante o depoimento, a testemunha manifestou sua indignação com o fato de eu não ter aceitado o cafezinho.
Eu já sabia, desde criança, que há pessoas que se ofendem com a recusa de alguma coisa que oferecem. O cafezinho tem, para nós, um componente cultural muito forte, pelo que eu sabia e pelo que eu acabei de constatar. É uma invenção dos árabes e talvez o tenhamos assimilado com a convivência de 750 anos com os mouros na Península Ibérica (711 a 1.492).
Enfim: deve-se pensar muito bem quando se recusa um cafezinho.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Ambulantes, Topless e a Lei

Como já afirmei em outra postagem, não há proibição expressa em lei, no Brasil, de que mulheres façam "topless". Existem punições para o ato obsceno, mas a lei não diz o que é obsceno. Mas existem punições para o comércio informal, sem qualquer registro. Em Florianópolis, anualmente é publicado edital para que as pessoas se registrem para fazer comércio ambulante nas praias. Este edital é mencionado na PORTARIA Nº_001/PMF/SMDU/SESP/2009 – DISCIPLINA O COMÉRCIO AMBULANTE NAS PRAIAS DO MUNICÍPIO PARA A TEMPORADA 2009/2010.
Mas se vê muita gente vendendo mercadorias nas praias, fazendo cara de susto, temendo que apareça o primeiro fiscal. Mas todo mundo compra de todo mundo e nunca soube de um veranista que saiu correndo para chamar um fiscal ou um polícia, para prender o ambulante com aparência de clandestino. Ou seja: a norma existe, é clara, mas há transgressores.
É o contrário do que acontece com o "topless": não há lei que claramente o proíba, mas não há transgressoras desta proibição tácita.
Isto deve levar a uma reflexão quanto ao cumprimento das leis: há, entre nós, leis que são efetivamente obedecidas (a proibição de topless, que sequer existe claramente na lei) e leis que não são obedecidas, ou pelo menos há desobedientes que permanecem impunes (o comércio ambulante sem registro, sem alvará).
Daí, certos comportamentos, como a corrupção, as infrações das regras de trânsito, enfim, as normas descumpridas sem punição, podem resultar de permissão social e não de inércia da autoridade.
Mesmo porque, certas transgressões são comunicadas à autoridade e outras não.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Valor do Tempo

Seu Eugênio era um sub-mestre de obras. Não podia ser mestre, pois sua empreiteira falira e ele tinha que subempreitar. Tinha seus empregados, mas ficava oculto (do fisco, dos credores, enfim, de alguém que ele queria enganar). Era contratado informalmente e contratava informalmente, alimentando esta praga nacional, que virou crime no ano 2000, mas que está "custando a pegar" no judiciário (artigos 297, §§ 3º e 4º 337-A do Código Penal: para o 297, §§ 3º e 4º, diz-se, volta e meia, que a Justiça Federal é incompetente - o STJ ora diz que é, ora diz que não é); o 337-A fica pendurado ora na insignificância: se é menos de 10 mil reais (ACR 2008.71.07.001289-4), não vai para frente, ora na necessidade de esgotamento da via administrativa).
Um dia, perguntei ao Seu Eugênio porque havia pás retas, com uma pequena plataforma para apoiar o pé e pás curvas, sem a tal plataforma. Seu Eugênio não sabia a resposta (e olha que era Mestre de Obras em construção civil) e disse que a pá com apoio era para malandro e a sem apoio era para trabalhador. Mais tarde alguém me explicou que a pá reta com apoio é para cavar (empurra-se com a mão e com o pé, para cavar mais profundamente) e a pá curva, sem apoio, serve para mover areia. Logo se percebe que, quem usa as pás corretamente, será mais produtivo do que quem quer aparentar ser trabalhador e as usar errado.
Vi na Disneylândia, em outra ocasião, uma pinça de cerca de 1 m de cumprimento: de um lado, um mecanismo para abrir e fechar a pinça e, de outro, a pinça. Esta pinça serve para juntar lixo (tipo papéis, folhas etc) sem que o operador precise se abaixar. Evidentemente que quem junta lixo com a pinça é mais produtivo do que quem se abaixa para juntá-lo com a mão.
O tempo é algo que, uma vez perdido, não se recupera mais. A aparência de "trabalhador" nem sempre significa que haverá mais trabalho ou trabalho mais produtivo. Pode-se ser um trabalhador produtivo, sem que isso precise, necessariamente, ter aparência (há instrumentos para medir a produtividade).
Max WEBER, no seu Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, já citava Benjamim Franklin para ilustrar o quanto o bom aproveitamento do tempo pode ser importante para a formação da riqueza (veja aqui o texto). Assim, o trabalho eficiente pressupõe aproveitamento do tempo e o aproveitamento do tempo pode ocorrer em todas as ocasiões: no trabalho, na lazer, em todos os momentos da vida.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O Envelhecimento







Ainda que já se estude a possibilidade de ficarmos centenas de anos mais velhos (ver Aubrey de Grey), o fato é que ainda continuamos a envelhecer. Creio que há uns 10 anos, mais ou menos, percebi, que, no fundo, inconscientemente, eu acreditava que pessoas jovens ficavam jovens e pessoas velhas sempre teriam sido velhas.
Vi mulheres lindas aos 18 anos que, agora, estão bem enrugadinhas aos 50; vi homens de porte atlético, aos 20 anos, que hoje já aparentam estar bem velhinhos para os 50 ou 60 anos.
Mas vi mulheres que, aos 20, não chamavam a atenção pela beleza e, aos 50, estão enxutíssimas.
Vi pessoas que conheci aos 40, no auge de sua existência, e as vi aos 80, na decrepitude (é triste ver uma pessoa sábia ser corroída pelas doenças degenerativas (sejam do corpo, ou da mente).
Resultado: a beleza tem seu auge na juventude. Gente madura precisa ser sábia e dizer coisas interessantes para os coetâneos, para os mais jovens e para os mais velhos. Uma pessoa madura que não serve para dar bons conselhos, não se faz útil para os outros.
A beleza passa...

domingo, 17 de janeiro de 2010

Avatar e o Bom Selvagem

Vi o filme Avatar. Não sei até que ponto é revolucionário ou inovador. Há efeitos esplêndidos e a trama é muito interessante. Mas, salvo no que toca aos efeitos especiais, toda a trama é uma colcha de retalhos, onde são revividos mitos e histórias de longa data.
Comecemos pelo nome do filme. Fui Uirak quem me falou pela primeira vez a palavra "Avatar", há cerca de 3 ou 4 anos. Para saber quem é Uirak, veja aqui. Em seu livro, Uirak fala em 2 Avatares, entre outros: Jesus e Buda. Não sei se há Avatares geográficos, mas Uirak me falou de pontos no terra que são chakras planetários (Vórtice Aurora, em Termas de Dayman, no Uruguai; Vórtice Erks, em Córdoba, Argentina;Vórtice Isidris, em Mendoza, Argentina, ficando o maior vórtice do mundo, o Chakra Cardíaco do Planeta, no Brasil - Serra da Canastra, Minas Gerais). Como não entendo do assunto, limito-me a transcrever.
Evandro Cesar define Avatar como um termo vindo do hinduísmo e que quer dizer encarnação. Para saber mais sobre o significado de avatar, clique aqui.
Então já temos no nome do filme uma alusão a fenômeno místico do hinduismo.
O enredo do filme, que se passa no planeta Pandora (outro mito antigo - a Caixa de Pandora) pode ser resumido em uma tentativa de conquista de riqueza que estava em poder de um povo selvagem (os Na'vi), com estrutura física diferente da nossa. Os inimigos, membros de nossa civilização, no futuro (dos quais assume destaque Jake Sully, fuzileiro naval) e que têm a nossa estrutura física, encarnam clones de Na'vis (cuja estatura é o dobro da nossa), para conhecer os hábitos deste povo e conquistá-lo (ou seja, Jake e seus pares que se encarnam nos clones, são os avatares).
Mas o avatar de Jake conhece Neytiri, uma Na'vi que vai treiná-lo nos hábitos de seu povo e ambos se apaixonam (ou seja, uma versão ultra moderna e futurista de Pocahontas ou do nosso Caramuru).
A trama de fundo é a conquista de uma terra selvagem por um povo civilizado, ou seja, uma visão futurista da conquista das Américas pelos europeus. E aí aparecem os selvagens, vivendo numa terra paradisíaca, em perfeita harmonia com a natureza. A descrição do território dos Na'vi pode ser a mesma que, por volta do ano de 1580, o filósofo francês MONTAIGNE (Ensaios, Cap. XXXI - Dos canibais, trad. Sérgio Milliet, 3 ed, SP, Abril, 1984-Os pensadores, p. 102) faz do lugar, no Novo Mundo, em que tomou pé Villegaigon, chamado "França Antártica", ou seja, o atual Rio de Janeiro:
A região que estes povos habitam é de resto muito agradável. O clima é temperado a ponto de, segundo minhas testemunhas, raramente se encontrar um enfermo. Afirmaram mesmo nunca terem visto algum epiléptico, remeloso, desdentado ou curvado pela idade. A região estende-se à beira-mar e é limitada do lado da terra por platôs e altas montanhas, a cerca de cem léguas, o que representa a profundidade de seus territórios. Têm peixe e carne em abundância, e de excelente qualidade, contentando-se em grelhar para os comer.
Sobre o mito do bom selvagem, desenvolvido por Montaigne e Rousseau, a partir do índio brasileiro, melhor ler o que Maria Suzana Marc Amoretti escreveu (ver aqui).
Na verdade, o filme Avatar compõe-se de várias histórias recontadas, mas de uma forma muito bem feita e com tecnologia efetivamente inovadora. Como no Titanic, Avatar retoma episódios da história e a isto soma mitos velhos conhecidos, apresentando-se de forma rica e interessante.
No filme Avatar, ainda há,por trás da trama, o apelo ecológico, tema que desperta desde reações razoáveis, até fanáticas (que só aceitam discutir aquilo que não contraria seus dogmas).
E, como na descrição de Montaigne, não há Na'vis doentes, remelentos ou enfermos. Chega-se ao ponto de serem todos magros (o padrão de saúde e beleza de nosso tempo). E pudicos, pois andam nus, mas não mostram "suas vergonhas".
Entre os índios, mais tarde se descobriu porque não se viam enfermos. Orlando Villas BÔAS (A arte dos pajés: impressões sobre o universo espiritual do índio xinguano. São Paulo, Editora Globo, 2000, pp. 27, 30, 31, 33 e 79) observou que, entre os índios do Xingu, caso nasçam filhos gêmeos, geralmente são mortos, pois, se um representa o bem e o outro, o mal, como saber distingui-los? Este costume ainda persiste, tanto que foi noticiado em edição recente da Revista ISTOÉ (Edição nº 1998, 20/02/2008, páginas 40 e 41):
Amalé tem quatro anos. (...) Índio da etnia kamaiurá, de Mato Grosso, Amalé (...) é, na verdade, um sobrevivente de sua própria história. Logo que nasceu, às 7 horas de 21 de novembro de 2003, ele foi enterrado vivo pela mãe, Kanui. Seguia-se, assim, um ritual determinado pelo código cultural dos kamaiurás, que manda enterrar vivo aqueles que são gerados por mães solteiras. (...)
"Antes de desenterrar o Amalé, eu já tinha ouvido os gritos de três crianças debaixo da terra”, relata Kamiru, hoje com 36 anos. “Tentei desenterrar todos eles, mas Amalé foi o único que não gritou e que escapou com vida”, relata. (...) Pesquisadores já detectaram a prática do infanticídio (sic) em pelo menos 13 etnias, como os ianomâmis, os tapirapés e os madihas. Só os ianomâmis, em 2004, mataram 98 crianças. Os kamaiurás, a tribo de Amalé e Kamiru, matam entre 20 e 30 por ano.
Os motivos para o infanticídio (sic) variam de tribo para tribo, assim como variam os métodos usados para matar os pequenos. Além dos filhos de mães solteiras, também são condenados à morte os recém-nascidos portadores de deficiências físicas ou mentais. Gêmeos também podem ser sacrificados. Algumas etnias acreditam que um representa o bem e o outro o mal e, assim, por não saber quem é quem, eliminam os dois. Outras crêem que só os bichos podem ter mais de um filho de uma só vez. Há motivos mais fúteis, como casos de índios que mataram os que nasceram com simples manchas na pele – essas crianças, segundo eles, podem trazer maldição à tribo. Os rituais de execução consistem em enterrar vivos, afogar ou enforcar os bebês. Geralmente é a própria mãe quem deve executar a criança, embora haja casos em que pode ser auxiliada pelo pajé.
(...)
Outra índia que ousou enfrentar a tradição foi Juraka, também kamaiurá, de uma aldeia próxima à de Amalé. Sua filha (...) nasceu com distrofia muscular progressiva, uma doença que a impossibilita de andar. A tribo descobriu o problema quando Sheila deveria estar dando os primeiros passos. A mãe fugiu antes de ser obrigada a aplicar a tradição. (...) Sheila deverá passar a vida numa cadeira de rodas.
(...) Edson Suzuki, diretor da ONG Atini, cria a garota Hakani, dos surwahás do Amazonas. Ela hoje tem 13 anos. A menina nasceu com dificuldades para caminhar. Os pais se recusaram a matá-la; preferiam o suicídio. O irmão mais velho, então com 15 anos, tentou abatê-la com golpes de facão no rosto, mas ela sobreviveu.(...)
Dos povos indígenas acima mencionados, os kamaiurá e os tapirapés pertencem ao grupo lingüístico macro-tupi e os ianomâmis pertencem a uma família lingüística menor, com uma história mais específica. Os madihas também são conhecidos como Kulina e pertencem ao grupo lingüístico arawá ou arawak (URBAN, Greg, A História da cultura brasileira segundo as línguas nativas. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. Em CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL. São Paulo, Companhia das Letras:Secretaria Municipal de Cultura:FAPESP, 2ª edição/1ª reimpressão, 2002, p. 88. O mapa também se encontra nesta página 88, pp. 89, 90, 95 e 97 e TISS, Frank. Gramática da Língua Madiha (kulina) – mais detalhes, ver aqui).

O termo “infanticídio” foi usado,na matéria da revista IstoÉ, indevidamente, pois infanticídio é um crime específico, que só pode ser praticado pela mãe, em relação a seu filho e está previsto no Código Penal, art. 123: Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Matar um ser humano, qualquer que seja sua idade, é sempre homicídio (salvo no caso específico do art. 123 do CP, acima citado).
Os Na'vi, do filme Avatar, viveriam, como os bons selvagens míticos (de Montaigne ou rousseau), em clima de paz, ou seriam como nossos índios Tupinambás, para os quais, viver dentro das normas consideradas certas, era viver para matar e comer muitos inimigos(FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL. São Paulo, Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 2ª edição, 2002., p. 387)?
O filme de Cameron acaba com os Na'vis derrotando os invasores civilizados e tomando suas armas. Haverá um segundo filme? O que farão os Na'vis com as armas que obtiveram: vão destruí-las ou substituir por elas suas lanças, arcos e flechas?
Os Na'vis, ao que parece, são apenas maiores que nós, mas são humanos. Serão mais aparentados com os bonobos ou com os chimpanzés?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Qual é a finalidade do Direito Penal?

MEZGER diz que Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, associando ao delito, como pressuposto, a pena como consequência(1). Este conceito, à luz de uma constituição liberal,permite dizer que o Direito Penal moderno é a limitação da vingança estatal. Mas o Direito Penal também pode ser pensado como normas que estipulam um modelo de comportamento humano, punindo vigorosamente condutas que não adotarem tal comportamento (2).
Já vimos que o homem é criador e criatura do mundo das regras (3), de modo que o que caracteriza a existência de uma sociedade é o mundo das regras. Mesmo da obra de WRANGHAM & PETERSON (4) resulta a convicção de que, nas sociedades de animais, também existem regras:
As tradições dos chimpanzés variam, de comunidade para comunidade, através de todo o continente africano. Em qualquer dia do ano, em algum lugar há chimpanzés procurando saúvas com gravetos inseridos em orifícios curvos... Alguns estarão colhendo mel de uma colméia com um simples graveto, enquanto outros pegam formigas atraindo-as para uma vara sem casca e depois deslizando-as entre os lábios.

O homem anatomicamente moderno surgiu no planeta há cerca de 200 mil anos e o homem comportalmente moderno surgiu há 45 mil anos. Este homo sapiens chegou à Europa há 38 mil anos, à Península Ibérica há 32 mil e à América há 14 mil anos. A vinda para a América estima-se que foi via Nordeste da Ásia. Em 1974 e 1975 foi encontrado, por uma missão arqueológica, um esqueleto humano em Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasil. Esta Missão Arqueológica Franco-Brasileira foi organizada pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaine. O esqueleto e outros achados foram reanalisados por André Prous. Ao esqueleto, Walter Alves NEVES chamou de Luzia (veja a foto do crânio e o rosto de Luzia, reconstituído, aqui). E Prous defende uma idade de 11,5 a 11 mil anos (possivelmente mais próximo de 11 mil anos) para os restos humanos de "Luzia", o que a coloca entre os mais antigos esqueletos humanos da América, se não o mais “ antigo”(5).
A agricultura e a domesticação de animais surgiram no Velho Mundo por volta de 10 mil anos e, na América, por volta de 4 mil anos (6).

NEVES & PILÓ descrevem comportamentos prováveis para o povo de Luzia, ou seja, os brasileiros que aqui viveram 11 mil anos atrás. Os autores alertam, porém, que o uso da analogia etnográfica é um assunto polêmico entre os arqueólogos, cuja maioria entende que ela pode ter no máximo validade inspiradora, mas não linear. Ou seja, não é porque um ou outro grupo de caçador-coletador organiza sua sociedade e sua espacialidade de uma forma que todos tenham de fazê-la exatamente igual. Assim, o que se segue é a junção de várias fontes e tem grandes possibilidades de acerto em relação ao que aconteceu no passado.
O povo de Luzia era forrageador e, portanto, vivendo em bandos, ao contrário dos agricultores, que vivem em tribos. Forrageadores são caçadores-coletores e assim o eram os que viviam aqui na época de Luzia, que desconheciam completamente o cultivo de vegetais e a fabricação de vasilhas de cerâmica.
Nos grupos forrageadores, normalmente, ao final do dia, tanto homens como as mulheres e crianças retornam à aldeia com tudo que conseguiram caçar e coletar, e o alimento é repartido entre todos. Ninguém deixa de comer. Essa prática permite que os que não foram agraciados pela sorte hoje não passem fome, já que amanhã s situação pode se inverter. É um tipo de seguro-alimentação, baseado em um sistema de reciprocidade regido por leis severas que dificilmente são quebradas.
As sociedades de bando também se caracterizam pela falta de hierarquia e pela homogeneidade de status (sic) econômico, já que todos participam das atividades de obtenção de recursos alimentares. Não existem diferenças sociais. Todos têm acesso às mesmas coisas. Por isso são denominadas sociedades igualitárias. Tampouco há especialização do trabalho. Mas alguns indivíduos gozam de maior prestígio que outros, baseados em dotes pessoais, como liderança, por exemplo, mas não porque haja algum sistema formal de chefia.
(...)
E ainda que um grande caçador gozasse de enorme prestígio, ele jamais poderia se autoproclamar chefe ou cacique.
A prole destes grupos de caçadores-coletores não é grande, pois as mulheres amamentam até as crianças terem cerca de 4 anos (período durante o qual a mulher fica infértil), há uso de plantas abortivas e se matam crianças gêmeas, deficientes ou com sexo indesejado. Havia regras também para o enterro de pessoas (7).
Ou seja, as regras regulam a conduta de homens e bichos. Transgredir estas regras gera punições, exatamente para desencorajar os transgressores. Manter as regras de conduta, punindo com severidade os transgressores, portanto, é a finalidade do direito penal.

Notas:
1 - apud TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo, Saraiva, 5 ed., 1994, p. 1.).
2 - TOLEDO, obra citada, p. 3.
3 - Os conteúdos normativos da sociedade humana, sendo realidades institucionais, variam no tempo e no espaço, mas a existência de regras é um invariante formal (Lévi-Strauss, 1967a; Fortes, 1983); como tal, ele seria a característica distintiva da condição social, que deixa aqui de ser um dos atributos do Homo sapiens para definir a Humanidade como entidade singular, composta não mais de indivíduos, mas de sujeitos que são simultaneamente criadores e criaturas do mundo das regras.- VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2002, p. 298.
4 - WRANGHAM, Richard & PETERSON, Dale. O Macho Demoníaco – As Origens da Agressividade Humana. Trad. M. H. C. Côrtes. Rio, Objetiva, 1998, p. 20.
5 - NEVES, Walter Alves & PILÓ, Luís Beethoven. O povo de Luzia – em busca dos primeiros americanos. São Paulo, Editora Globo, 2008, pp. 52, 58, 60, 132-136.
6 - NEVES & PILÓ, obra citada, p. 170.
7 - NEVES & PILÓ, pp. 272, 281, 293, 294, 295, 300 e 306.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

De onde vieram nossas Constituições?

Qual a origem da primeira Constituição Brasileira, a de 1824? Direitos e deveres constantes desta Constituição se repetiram nas demais?
A comparação da Constituição Brasileira de 1824 com a Portuguesa de 1821 e a Espanhola de 1812 pode trazer interessantes revelações a respeito das influências ocorridas em nossa história constitucional (veja quadro aqui).
Um acontecimento que muito influenciou os fatos que geraram a Constituição Portuguesa de 1821, a volta do Rei D. João VI para Portugal, a independência do Brasil e a Constituição Brasileira de 1824, foi a Constituição Espanhola de Cádiz, de 1812. A Constituição Espanhola de 1812, conhecida por Constituição de Cádiz, resultou de convocação das cortes, inclusive com representantes das colônias espanholas na América. Esta convocação se deu em 1809. A Constituição foi jurada em 19 de março de 1812, com o nome de Constituição Política da Monarquia Espanhola. Sua aplicação foi instável, pois em 1814, ao regressar do desterro, Fernando VII a revogou e restabeleceu o absolutismo, reprimindo brutalmente os grupos e líderes liberais. Mas uma revolta, em 9 de março de 1820, obrigou Fernando VII a reconhecer esta Constituição de Cádiz (ver fonte aqui ). Os revoltosos espanhóis, diz SARAIVA (José Hermano. História de Portugal. Mem Martins, Editora Europa-América, 6ª edição, 2001, pp. 229, 230, 231 e 328), entram em contato com os portugueses e uma revolta começa na cidade do Porto.
Em 24 de agosto de 1820 se iniciou uma revolta na cidade do Porto, liderada por militares. Mesmo se tendo formado uma Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, as proclamações lidas aos soldados na ocasião se mantinham leais a D. João VI e faziam referência à reunião de Cortes para a promulgação de uma Constituição. Conforme SARAIVA, “O vocábulo “cortes” desempenhou a função de gonzo entre dois batentes da consciência nacional: o dos que pretendiam resolver a crise sem mudar as estruturas e os que, por detrás da túnica da velha palavra, procuravam uma nova constituição”. Segundo LEAL(Aurelino, "História Constitucional do Brasil" ed. Fac-similar, Brasília, Senado Federal, 2002, p. 35), a história constitucional brasileira começaria nesta revolta de 1820. Pois bem, em 15 de setembro de 1820 a revolta começa a se manifestar em Lisboa e, entre as aclamações do povo, estava, segundo SARAIVA, “o Viva el-rei nosso senhor, a religião e as Cortes que hão-de formar uma constituição”. Diz ainda o próprio SARAIVA que “A “Constituição” começa então a desempenhar o seu papel mítico, e dela se confiava a solução de todos os problemas e carências que afligiam a população”. A 27 de setembro a revolta assumia o poder em Portugal. Mas este movimento não pretendia romper a orientação política tradicional e a Constituição pedida não era uma inovação subversiva, mas sim a “restituição das suas antigas e saudáveis instituições, corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado (SARAIVA, p. 346)”. Foi convocada e realizada uma Constituinte em Portugal, chamada de "reunião das Cortes". Das divergências com os representantes do Brasil se concretizou a nossa independência.
Em 03 de junho de 1822 foi convocada uma Assembléia Geral Constituinte e Legislativa somente para o Brasil (Decreto de 3.6.1822) e as instruções para esta Assembléia foram expedidas pela Decisão nº 57, de 19.6.1822. Estas instruções apontavam diversos requisitos para ser eleitor, dentre as quais a proibição de ter qualquer sombra de suspeita e inimizade à Causa do Brasil (artigo 6).
Eleita no ano de 1823, em 3 de maio do mesmo ano, a Assembléia Constituinte foi aberta, solenemente, pelo Imperador.
Compunham-na 15 padres, um nobre, 4 funcionários públicos, 24 bacharéis em direito, 4 bacharéis em outras ciências, 7 militares, 3 doutores, 1 matemático, 13 desembargadores e 1 médico.
Dois dias depois da abertura, ou seja, em 5 de maio, a Assembléia Constituinte nomeou uma comissão encarregada de redigir o projeto de constituição. Esta comissão foi composta por Antônio Carlos (relator), José Bonifácio, Pereira da Cunha, M. F. da Câmara de Bittencourt e Sá, Araújo Lima, José Ricardo e Moniz Tavares. Conforme MELLO (Francisco Ignácio Marcondes Homem de, Barão. "A constituinte perante a história". Rio da Janeiro, Typ. Da Actualidade, 1863, edição fac-similar do Senado Federal, Brasília, 1996, pp. 8-9), em 1º de setembro Antônio Carlos apresentou o projeto, que começou a ser discutido no dia 15 do mesmo mês. Em 24 de abril de 1840, conforme LEAL, Antônio Carlos assim se expressou sobre o projeto:
(Os membros da comissão) em pouco tempo, apresentaram os seus trabalhos, e eu tive a sem-cerimônia de dizer que não prestavam para nada: um copiou a Constituição Portuguesa, outros pedaços da Constituição Espanhola: à vista destes trabalhos, a nobre comissão teve a bondade de incumbir-me da redação da nova Constituição: e que fiz eu? Depois de estabelecer as bases fundamentais, fui reunir o que havia de melhor em todas as outras constituições, aproveitando e coordenando o que havia de mais aplicável ao nosso Estado; mas no curto prazo de 15 dias para um trabalho tão insano só pude fazer uma obra imperfeita.

Antônio Carlos, em 1840, afirmou que a Constituição de 1824 era cópia de seu projeto e que a Constituição de 1824 teve como fontes a Constituição francesa e a da Noruega, entre outras(cf. LEAL).

Mas, às onze horas da manhã do dia 12 de novembro de 1823 e, “a uma da tarde, a constituinte foi dissolvida à força armada” (cf. MELLO, pp. 15-16).

Dissolvida a Assembléia, o imperador desfilou pela cidade, acompanhado de um numeroso estado-maior. Em 13 de novembro também foi composto o Conselho de seis ministros e um desembargador do Paço para redigir o projeto da futura constituição. O projeto, feito em 15 dias, depois de pronto, foi apresentado a diversos províncias, já que, em 17 de dezembro de 1823, foi determinada a expedição de exemplares do projetos a todas as Câmaras das províncias e ao Senado da Câmara do Rio de Janeiro. Em 20 de dezembro de 1823 o Senado da Câmara do Rio de Janeiro colocou dois livros à disposição do povo (do Rio de Janeiro) para neles lançar votos de repulsa ou adesão ao projeto de constituição. O projeto foi apresentado na Bahia (30 de janeiro de 1824), em Sergipe, um certo capitão Lourenço deu apoio em nome do Rio Grande do Sul, havendo ainda apoio ao projeto por parte das vilas de Barbacena, Sabará, São José do Rio dos Montes, São João d”El-Rei, São José do Príncipe, Ilha Grande, Mogi das Cruzes, São Bento do Tamanduá (mas pedia eleição da constituinte), Itu (que fez sugestões). Pernambuco opô-se ao projeto, sendo memorável o voto de Frei Caneca. Mas na Corte, concluiu-se, pelas representações das Câmaras do Império, que estas formavam a maioridade do povo brasileiro, pelo que, por decreto de 11 de março de 1824, foi marcado o dia 25 deste mês para juramento do projeto. No dia 25 o projeto foi jurado na Capela Imperial, por D. Pedro e a Imperatriz, pelo bispo, altos funcionários e dignitários; dia 26 o exército jurou a constituição e dia 31 a juraram os empregados públicos. Em 15 de maio foi determinado aos presidentes das províncias... que nas informações que lhes fossem exigidas declarassem impreterivelmente se as pessoas a que elas se referiram, além de terem a qualidade de adesão à causa do Brasil, juraram a Constituição do Império (LEAL, p. 93).

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA CONSTITUIÇÃO DE 1824

Se forem observadas em conjunto as Constituições Espanhola de 1812, Portuguesa de 1822, Projeto Brasileiro de 1823 e Brasileira de 1824, será possível notar que as quatro seguem um padrão, ou uma fórmula: conceituação dos nacionais e caracterização do território, opção pela religião católica como oficial, definição do governo (quem vota, quem exerce o poder legislativo, o executivo e o judiciário), opção pela monarquia constitucional, declaração de que o governo representa a nação, divisão do território e quem governa as respectivas divisões, definição do processo legislativo, disposições sobre o sustento da família imperial, regulamentação da sucessão à Coroa, existência de Secretarias de Estado e de um Conselho de Estado, normatização da Tributação, instituição da Força Militar (segurança externa e interna), incumbências do Estado quanto à instrução pública e regras sobre a reforma da constituição. Os direitos individuais aparecem dispersos na Constituição Espanhola de 1812 e em partes específicas das Constituições Portuguesa e Brasileira, bem como no projeto brasileiro de 1823. Ou seja, delineia-se o Estado que se formou e as suas atribuições. Todas as quatro constituições criaram uma monarquia constitucional, mantendo no poder os monarcas que foram absolutos; todos as quatro constituições adotaram a religião católica como a oficial do Estado; todas as quatro tinham a figura dos Juízes dos fatos e dos juízes do direito: todas as quatro colocavam o ensino fundamental como atribuição do Estado e todas mencionavam ou o ensino das ciências ou o Universitário como direito da população.
A nação era a fonte da soberania e do poder (C. Espanhola, art. 3º; Portuguesa, art. 20; Projeto Brasileiro, art. 38; Constituição Imperial, art. 11). Esta disposição também constava Declaração de Direitos Francesa (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26/08/1789): “Artigo 3º. O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação...” Não era o povo, portanto, a fonte do poder, como hoje consta de nossa constituição. Nação, no Brasil e em Portugal, era definida como “A gente de um país ou região que tem língua, leis e governo à parte: a nação francesa, espanhola, portuguesa, gente de nação; isto é, descendente de judeus, cristãos novos. Raça, casta, espécie (Antônio de Moraes Silva, Dicionário da língua portuguesa, tomo segundo, Lisboa, Tipografia Lacerdina, 1813, p. 232., apud RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Os símbolos do poder: cerimônias e imagens do Estado monárquico no Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1995, p. 11). Assim, “gente de nação” também podiam ser, no Brasil, os índios: nação Tupi, nação Carijó, Guarani, Potigar, Viatã, Tupinambá, Caeté, Tupiniquim, Apigapigtanga, Muriapigtanga, Tamôios, Tapuia, Tucanuço, Goitacá, Tobajara, Petiguará(ver fonte aqui) etc; e também os africanos, conforme povos, territórios, rotas e portos envolvidos no tráfico de escravos: mina, cabinda, congo, angola (ou loanda), cassanje, benguela, gabão, angico, monjolo, moange, rebolo (libolo), cajenge, cabundá, quilimane, inhambane, mucena, mombaça etc(SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros No Brasil Escravista. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002, pp. 139 e 144); ou, ainda, os cristãos novos (judeus convertidos ao cristianismo) e outros. O sentido da palavra “nação”, na Constituição de 1824, é aqui extraído da seguinte expressão de ALENCAR: A verdadeira e pura democracia é o governo de todos por todos, da nação pela nação... Donde se conclui ser a Nação, na Constituição Brasileira de 1824, a totalidade dos habitantes do Brasil. Mas, como era restrito o direito de voto no Império, a Nação seria representada pelos eleitores ou “a Nação” seriam os eleitores. O tema requer mais pesquisas, mas usemos, por ora, este conceito operacional de Nação. A Nação, ao eleger os membros do Poder Legislativo, outorgava tais poderes de representação. A menção à outorga constava expressamente na Constituição Espanhola (art. 99) e na Portuguesa (art. 58). Para se ter uma idéia desta outorga, vejamos o respectivo artigo da Constituição Portuguesa:

Art. 58
No auto da eleição se declarará que os cidadãos, que formam aquela assembléia, outorgam aos Deputados que saírem eleitos na Junta da cabeça da divisão eleitoral, e todos e a cada um, amplos poderes para que, reunidos em Cortes com os das outras divisões de toda a Monarquia Portuguesa, possam, como representantes da Nação, fazer tudo o que for conducente ao bem geral dela, e cumprir suas funções na conformidade, e dentro dos limites que a Constituição prescreve, sem que possam derrogar nem alterar nenhum de seus artigos; e que os outorgantes se obrigarão a cumprir, e ter por válido tudo o que os ditos Deputados assim fizerem, em conformidade da mesma Constituição.

Apesar de não fazer menção expressa a tal outorga de poderes, tanto o Projeto Brasileiro de 1823, quanto a Constituição de 1824 mencionavam a verificação de poderes:
Projeto de 1823:
Art. 51. Cada Sala (da Assembléia Geral) verificará os poderes de seus Membros, julgará as contestações que se suscitarem a esse respeito.

Constituição de 1824:
Art. 21. A nomeação dos respectivos Presidentes, Vice Presidentes, e Secretários das Câmaras, verificação dos poderes dos seus Membros, Juramento, e sua policia interior, se executará na forma dos seus Regimentos.

Todas as constituições mencionam a escravidão, ainda que a brasileira aparentasse ser lacônica a respeito, pois a única referência se dava pela menção, por duas vezes, aos “libertos”: uma para dizer que são cidadãos brasileiros (art. 6º, I) e outra para dizer que não podiam votar para Deputados, Senadores e Membros dos Conselhos de Província (art. 94). Na legislação infraconstitucional se “constitucionalizava” a escravidão ao interpretá-la como decorrência do direito de propriedade .
Os quatro textos constitucionais (espanhol, português, projeto e constituição brasileiros) adotaram a separação dos poderes (legislativo, executivo e judiciário). A Constituição Brasileira de 1824 diferia apenas ao adicionar um quarto poder, o moderador. Este poder moderador – exercido pelo Imperador - foi inserido por influência de uma das obras do escritor e político francês Benjamin Constant (Esquisse de Constituition - ver fonte aqui), conforme noticia Aurelino LEAL: Depois de dividir os poderes constitucionais em “real, executivo, representativo e judiciário”, disse ele: Causará admiração que eu distinga o poder real do poder executivo. Essa distinção, sempre desconhecida, é importantíssima. Ela (aqui está a frase que passou para a Constituição Brasileira de 1824, “ela é, talvez, a chave de toda a organização política”.).
O poder legislativo era unicameral nas constituições portuguesa e espanhola e bicameral no projeto e na constituição brasileira. Nas duas primeiras era denominado “cortes” e, nos dois textos brasileiros, senado e câmara. Curiosamente Espanha e Portugal, além de manterem a monarquia, com o mesmo rei e dinastia da monarquia absoluta, também mantiveram a denominação dos representantes da nação quando reunidos, utilizada no antigo regime e desde a idade média: cortes. “Cortes”, já antes do constitucionalismo, pelo menos em Portugal, era o nome da reunião dos Procuradores dos Concelhos, ou seja, do que hoje, no Brasil, chamamos de “municípios”. Nos quatro textos constitucionais era declarada a inviolabilidade dos legisladores quanto a suas opiniões (Espanhola, art. 128; Portuguesa, art. 28; Projeto Brasileiro, art. 72; Constituição Brasileira, art. 26).
Os quatro textos consideravam propriedade pública os bens do Estado e não mais propriedade do Rei, como faziam, por exemplo, as Ordenações Filipinas . E todas as quatro constituições reconhecem a dívida pública:
Espanhola:
Art. 355. A dívida pública reconhecida será uma das primeiras atenções das Cortes e estas terão o maior cuidado para que se vá verificando sua progressiva extinção (…).

Portuguesa:
Artigos 35 e 236:
236 - A Constituição reconhece a dívida pública. As Cortes designarão os fundos necessários para o seu pagamento ao passo que ela se for liquidando. Estes fundos serão administrados separadamente de quaisquer outros rendimentos públicos.

Projeto Brasileiro:
Art. 226. A Constituição reconhece a dívida Pública, e designará fundos para seu pagamento.

Constituição Brasileira:
Art. 179(...):
XXIII. Também fica garantida a Divida Publica.

Nas quatro constituições era declarado o dever dos cidadãos de pagarem impostos (em linguagem da época: contribuir com as despesas do Estado). Exceto na constituição espanhola, em todas as outras três havia declaração de que a força militar era essencialmente obediente (Portuguesa, art. 172; Projeto Brasileiro, art. 249; Constituição Imperial, art. 147). Esta força militar era composta, em regra, pelo exército de fronteira, encarregado da defesa externa e por milícias, que cuidavam da defesa interna (Constituição Espanhola, artigos 356 e 362; Constituição Portuguesa, artigos 171 e 173; Projeto Brasileiro, artigos 227 a 239). A Constituição Imperial mencionava somente a Força Militar permanente de mar, e terra (art. 146), mas força interna foi criada em 18 de agosto de 1831, sob a denominação de “Guarda Nacional”. Esta Guarda Nacional tinha as seguintes finalidades:
Art. 1º. As Guardas Nacionais são criadas para defender a Constituição, a Liberdade, Independência e Integridade do Império; para manter a obediência às Leis, conservar, ou restabelecer a ordem e a tranqüilidade pública; e auxiliar o Exército na Linha de defesa das fronteiras e costas.
Toda a deliberação tomada pelas Guardas Nacionais acerca dos negócios públicos é um atentado contra a Liberdade e um delito contra a Constituição.
(...)
Art. 3º. As Guardas Nacionais serão organizadas em todo o Império por Municípios.

As finalidades da Guarda Nacional não eram a mesma da força pública prevista na Declaração de Direitos Francesa (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26/08/1789):
Artigo 12. A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; por conseguinte, esta força fica instituída para o benefício de todos, e não para a utilidade particular daqueles a quem ela for confiada.
Ou seja, enquanto a Força Pública francesa tinha por fim a garantia dos direitos, a Guarda Nacional (expressão brasileira da força pública) foi criada para defender a Constituição (feita pelo Imperador) e a Liberdade (de uma parcela da população, já que havia escravos). Mas a Guarda Nacional também deveria defender valores que, se hoje ainda são fundamentais, tinham especial destaque para o Brasil, na época: a Independência e a Integridade do Império. Outra atribuição, como foi visto, era manter a obediência às Leis, leis que deveriam ser sempre feitas para atender à utilidade pública; mas – deve ser lembrado - a Constituição de 1824 não declarava que as leis eram a expressão da vontade geral. A Guarda Nacional conservava ou restabelecia a ordem e a tranqüilidade pública, atribuição dada à polícia nas Constituições de 1891 (art. 72, § 8), 1946 e 1967 (artigos 141, § 11 – 1946; e com referência explícita à Polícia Militar nos artigos 183 da Constituição de 1946 e 13, § 4º da de 1967 e EC 1/69), às Forças Armadas, nas Constituições de 1934, 1946, 1967, EC 1/69 e 1988 (manter a ordem e a lei – artigos 162, 177, 92, §1º, 91 e 142, respectivamente), à Polícia Federal, na Constituição de 1967 e EC 1/69 (ordem política e social – art. 8º, VII, “c” - 67 e VIII, “c” - 69). E a Constituição de 1988, no art. 144, atribuiu o exercício da segurança pública, com a finalidade de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio a diversas polícias: federal (com a incumbência, dentre outras, de apurar infrações contra a ordem política e social), rodoviária federal, ferroviária federal, civil e militar (esta com a incumbência de preservar a ordem pública). Se houve sempre preocupação com a manutenção da ordem pública, é na Constituição de 1988 que surge outra preocupação: manter a ordem jurídica e disso será encarregado o Ministério Público.
O poder executivo era exercido pelo Rei ou Imperador nos quatro textos constitucionais e a pessoa do Rei ou Imperador era inviolável, sagrada (menos na Constituição Espanhola) e não sujeita a responsabilidade (Espanhola, artigos 16 e 168; Portuguesa, artigos 23 e 31; projeto Brasileiro, artigos 138, 139, 175 e 177; Constituição Brasileira, art.102 e 99). As constituições espanhola e portuguesa e o projeto brasileiro vedavam ao legislativo deliberar na presença do Rei ou Imperador (espanhola, art. 124; portuguesa, art. 26; projeto brasileiro, art. 65). Já a Constituição Brasileira de 1824 não tinha vedação expressa à presença do Imperador nas sessões do legislativo, mas havia um dispositivo que disciplinava a presença de membros do executivo em tais sessões :
Art. 54. Os Ministros podem assistir, e discutir a Proposta, depois do relatório da Comissão; mas não poderão votar, nem estarão presentes á votação, salvo se forem Senadores, ou Deputados.

Nas quatro constituições havia, no Poder Judiciário, juízes do fato (ou que se pronunciam sobre o fato) e juízes de direito (const. Port., artigos 177 e 178; proj. bras., art. 189, const. bras., art. 152). A Constituição Espanhola apenas abria a possibilidade de ser feita esta distinção no futuro (art. 307). Ao poder judiciário era atribuída a função de aplicar as leis na constituição espanhola (art. 242), no projeto brasileiro (art. 189) e na Constituição Brasileira (at.152). Na Constituição Portuguesa era atribuída ao Judiciário a função de “julgar”, que, por mais óbvia que pareça, difere da nomenclatura usada nas demais. E vai ser nas Constituições Portuguesa e Brasileira que se denominará, originalmente, o cargo de Juiz de Direito:
Constituição Portuguesa:
Art. 177 - Haverá Juízes de Fato assim nas causas crimes como nas cíveis, nos casos e pelo modo, que os códigos determinarem.
Os delitos de abuso da liberdade de imprensa pertencerão desde já ao conhecimento destes Juízes.
(...)
Art. 179 - Haverá em cada um dos distritos, que designar a lei da divisão do território, um Juiz letrado de primeira instância, o qual julgará do direito nas causas em que houver Juízes de fato, e do fato e direito naquelas em que os não houver.
(...)

Projeto Brasileiro:
Art. 189. Os Jurados pronunciam sobre o fato e os Juízes aplicam a Lei.
Art. 190. Uma lei nomeará as diferentes espécies de Juízes de Direito, suas gradações, atribuições, obrigações e competência.

Constituição Brasileira:
Art. 152. Os Jurados pronunciam sobre o fato, e os Juizes aplicam a Lei.
Art. 153. Os Juizes de Direito serão perpétuos, o que todavia se não entende, que não possam ser mudados de uns para outros Lugares pelo tempo, e maneira, que a Lei determinar.

Não havia uniformidade entre os quatro textos constitucionais quanto às declarações de direitos, seja porque nem sempre eram colocados numa seqüência, seja porque havia alguma variação de um texto para outro. Difícil dizer qual dos quatro textos constitucionais era o mais completo, mas o único dos quatro que reunia num artigo (o 179) as declarações de direitos era o da Constituição Brasileira de 1824, técnica que foi seguida em todas as demais constituições brasileiras. A Constituição Espanhola colocava alguns direitos individuais (liberdade e propriedade) no início (art. 4º) e outros (proibição de tribunal de exceção e foro privilegiado, acesso ao judiciário, legalidade da prisão etc) na parte destinada ao Poder Judiciário (artigos 287 a 308). A Constituição Portuguesa listava alguns direitos nas Bases, ou seja, nos primeiros vinte artigos, que foram elaborados ainda quando D. João VI estava no Brasil e outros no restante do seu texto. Nas bases estavam o direito a liberdade (e o conceito de liberdade: A liberdade consiste na faculdade que compete a cada um de fazer tudo o que a lei não proíbe. A conservação desta liberdade depende da exata observância das leis - art. 2º), o direito à segurança (e seu conceito: A segurança pessoal consiste na proteção que o Governo deve dar a todos para poderem conservar os seus direitos pessoais. - art. 3º); o direito de propriedade (art. 7º), a declaração de igualdade entre todos (art. 11), a proibição das penas cruéis (art. 12) e outros direitos. O projeto brasileiro dedicava um capítulo (o segundo, do Título II) aos direitos individuais, compreendendo do art. 7º ao 28, mas havia declaração de direitos também na parte reservada ao Poder Judiciário (proibição de a pena passar do delinqüente, de penas cruéis (artigos 200 e 201) e nas disposições gerais (igualdade perante a lei e acessibilidade aos empregos públicos (artigos 260 a 264).

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Prato Feito de Luxo

Já falei outro dia sobre os pratos feitos de luxo, ou seja, as chamadas "porções individuais".
Não consigo deixar de me sentir logrado quando peço um prato que custa por volta de 50 reais e vem um filé (ainda que mignon) e cinco pedaços de batata, artística e finamente servidos.
Dizem que isto é chique, coisa de restaurante francês. Pois estive na França. Está certo que comi
quase sempre em brasseries, mas uma vez jantei no Moulin Rouge.Era o prato mais requintado. E ali vi que as porções são pequenas, porque são servidos vários pratos: entrada,primeiro prato, segundo prato, às vezes um terceiro prato e a sobremesa.
Vi cardápios na Espanha, Portugal e França e em todos havia esta sequência de pratos. Não entrei nos restaurantes por causa do preço e também porque achei que não daria conta de tanta comida.
Nos restaurantes finos daqui servem um prato, com a quantidade de um dos pratos da França. Mas este prato daqui é toda a refeição, enquanto que, na França, é só uma parte dela.
Mas não fiz pesquisa em todos os restaurantes do mundo. Nem entre os clientes brasileiros de restaurantes finos nacionais. Mas a julgar pelo pouco movimento que vejo no restaurante onde jantei, suponho que o brasileiro em geral (que pode pagar uma "refeição" deste tipo) se sente logrado com estas pequenas porções que constituem toda uma refeição.
Para dieta, a porção é excelente. Mas para matar a fome, não me parece que é.
E, se estou certo e o restaurante errado, coitados dos donos: vão ter que fechar o negócio...

domingo, 10 de janeiro de 2010

Os Índios e a Escravidão

Era raro entre os índios o costume de escravizarem permanentemente pessoas. Em geral, a escravidão era temporária, durando até o ritual de morte e devoramento do prisioneiro de guerra.
CLASTRES informa que os índios Achagua e os Chibcha (localizados na Colômbia e Venezuela) se diferenciavam do resto das populações índias sul-americanas porque escravizavam seus vizinhos menos poderosos e tomavam prisioneiras como esposas complementares. Os Omágua (localizados no oeste do Estado do Amazonas) também escravizavam prisioneiros de guerra e faziam das mulheres suas concubinas (1). Entre os Tupinambás, os prisioneiros de guerra eram escravizados temporariamente. Durante este tempo – que podia ser longo - eram alimentados e recebiam esposa. A escravidão provisória terminava com a festa ritual, na qual o prisioneiro era devorado (2). Américo Vespúcio (3), em carta a Lourenço dei Médici (1502) informa que se os prisioneiros fossem homens, os apreensores casavam-no com uma de suas filhas e, se mulheres, casavam com elas. Mas tantos os homens prisioneiros e seus filhos, quanto as mulheres prisioneiras e filhos que tivessem, seriam devorados nas cerimônias para tal fim realizadas. Viver dentro das normas consideradas certas, para os Tupinambás, era viver para matar e comer muitos inimigos(4). Os Arara não levavam para suas aldeias prisioneiros com vida (5).

NOTAS
1 - PORRO, Antônio. História Indígena do Alto e Médio Amazonas – Séculos XVI a XVIII. In CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL. São Paulo, Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 2ª edição, 2002, p. 182. Há registro também de que índios capturavam e aprisionavam outros índios como escravos em DANTAS (Beatriz G. et all. Os povos indígenas no nordeste brasileiro Um esboço histórico. In CUNHA, obra citada, p. 436).
2 - CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Tradução de Theo Santiago. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp. 51 e 87.
3 - Este documento, a carta de Caminha, as cartas de Américo Vespúcio, a certidão de Fernandes e a Crônica de Damião de Góis se encontram em AMADO, Janaína e FIGUEIREDO, Luís. Brasil 1500: quarenta documentos. Brasília, Editora UNB, São Paulo, IOESP, 2001.
4 - FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In CUNHA, obra citada, p. 387.
5 - TEIXEIRA-PINTO, Márnio. Ieipari – Sacrifício e Vida Social entre os Índios Arara (Caribe). São Paulo, Editora Hucitec Anpocs, UFPR, 1997, pp. 114-115.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Pescador Malcriado

Dona Cidinha gostava de comer peixes frescos. De classe média, vivia em Itajaí e veraneava em Balneário Camboriú, onde tinha a casa de veraneio. Era o mês de janeiro de um dos primeiros anos da década de 1960 e Balneário Camboriú ainda se chamava Praia de Camboriú. De manhã, todos os dias, pescadores "puxavam rede". Mais tarde se passou a chamar este tipo de pesca de "arrastão". Antes de puxar a rede, os pescadores a colocavam no mar: as duas pontas da rede eram amarradas em cordas muito compridas; um ou dois pescadores ficavam, na praia, segurando a corda ligada a uma ponta da rede e os demais entravam no mar soltando corda; depois de soltarem uns cem metros de corda no mar, passada a zona de arrebentação das ondas, começavam a soltar a rede, fazendo um arco e voltavam; faltando uns cem metros para chegarem na praia, a outra ponta da rede acabava e ficava a segunda corda, que era levada até a areia. Então iam puxando a rede, primeiro a parte com corda e depois a rede. Os pescadores usavam chapéus, uma camisa de mangas compridas arregaçadas; a camisa era amarrada na cintura (talvez por não poderem substituir botões perdidos); as calças compridas arregaçadas até as canelas; e estavam descalços. À medida que puxavam a corda, os pescadores iam formando rolos no chão (eram uma perfeição estes rolos: a corda era colocada em círculos, que ficavam sobrepostos, formando um cilindro de corda). E a forma de puxar a rede era muito peculiar (veja fotos atuais aqui e aqui): os pescadores ficavam em diagonal, em relação ao chão e usavam um cinturão de pano de saco (ou saca) de alinhagem (ou linhagem), que tinha por fivela dois tocos de madeira, em forma vertical, um costurado em cada ponta do cinto. No meio de cada um dos dois cilindros de pano de linhagem que envolviam os respectivos tocos, havia um buraco, por onde passava a corda que, numa ponta amarrava o cinturão na cintura do pescador e na outra, prendia o cinturão na rede, de forma que a força para puxar a rede fosse feita mais com o corpo do que com os braços.
A ponta da corda do cinturão que se prendia na corda da rede tinha um nó na ponta, mas se fixava na corda da rede por uma volta (a corda do cinto abraçava a corda da rede, servindo o nó da ponta para impedir que o abraço se desfizesse). E assim os pescadores iam puxando a rede, enrolando a corda e fechando o arco lá no fundo do mar; e os dois grupos de pescadores, um em cada ponta da rede, iam se aproximando à medida que a rede chegava na areia da praia. Neste arco, que se fechava em U, vinham presos os peixes que estavam na região do mar em que a a rede passava. Enfim, depois de puxada a corda, chegava a rede e os peixes pulando dentro dela
ou presos em suas malhas. Alguns vinham nadando na parte de dentro do U, até toda a rede tocar a areia.
Todo o preparo da pesca, ou seja, a chegada dos pescadores no barco, a colocação do barco na água (o barco deslizada em cima de cilindros de madeira, que eram tirados da parte de trás, à medida que saíam de debaixo do barco e colocados de novo em baixo do barco, agora na frente, para dar continuidade ao traslado), a colocação da rede no mar e o puxamento da rede, serviam como chamariz da venda do peixe que fosse capturado. Assim, tão logo a rede era arrastada pela areia, cheia de peixes, uma pequena multidão já se acercava dos pescadores para simplesmente ver ou para comparar peixe. O acontecimento também servia de diversão para crianças: os tempos eram de abundância e politicamente incorretos, de modo que meninos e meninas iam catar os pequenos peixes que não serviriam para venda. Catavam-se os peixinhos, que eram colocados em baldinhos de brinquedo ou amarrados pela guelra, com o caule de umas plantinhas que germinavam nas dunas da praia (naquele tempo não existia a Avenida Atlântica e havia dunas com vegetação na beira da praia - mas havia também carros trafegando livremente pela areia da praia). Estes peixinhos ou eram jogados fora (depois de as crianças se divertirem com a captura) ou - a depender da paciência ou gula das mães - eram fritos e devorados por toda a família (especialmente pelas crianças que os cataram, que assim se poderiam se orgulhar de ter contribuído com o sustento da família).
Na pequena multidão que se acercava da rede estava Dona Cidinha, esperando para comprar alguns peixes. Ela esperou que a rede fosse totalmente colocada na areia, que os peixes fossem selecionados (alguns sendo colocados para venda, outros atirados fora ou dados para mendigos ou crianças) e que começassem, enfim, o comércio que determinara toda aquela atividade. Chegou para o pescador Manoel e perguntou-lhe o preço de um peixe. Manoel lhe disse e Dona Cidinha respondeu que o preço estava caro e pediu um desconto. Manoel deu a resposta errada: disse para Dona Cidinha que praia era lugar para rico e quem não tinha dinheiro para vir para praia, deveria ficar em casa. Dona Cidinha foi embora, sem seu peixe.
Seu Manoel e os demais pescadores, depois de venderem o peixe, distribuíram entre si o que sobrou e foram recolher os equipamentos: os remos eram enfiados no meio dos rolos de corda e eram transportados nos ombros dos pescadores até o barco; a rede era lavada e colocada em dobras no barco, de modo a já estar pronta para a próxima pescaria; o barco era levado - de novo em cima dos cilindros de madeira - até as dunas da praia, onde ficaria até a próxima pescaria.
Dona Cidinha ficou em Balneário Camboriú até o final da temporada, ou seja, até a semana de carnaval. E voltou para sua casa em Itajaí.
Na década de 1960 a temporada de veraneiro, em Balneário Camboriú, começava em torno do dia 3 de janeiro e terminava na semana de carnaval.
Em junho, Dona Cidinha estava em sua casa, em Itajaí, quando lhe batem à porta. A casa de Dona Cidinha não era luxuosa, mas muito confortável e de boa qualidade: alvenaria, dois andares, duas cozinhas, dois banheiros, copa, pequena biblioteca, sala de estar, sala de jantar, sala de visitas e, no andar superior, quatro quartos.
Dona Cidinha foi atender à porta e um homem lhe pediu um prato de comida. Era normal pessoas pedirem comida nas casas e Dona Cidinha era generosa com os pedintes. Era uma mulher dura, pois, como dizia, "não era de dar milho a pinto": doava comida, roupas, enfim, utilidades, mas se enfurecia se lhe pedissem dinheiro.E não perdia a oportunidade de admoestar quem não se comportava conforme seus padrões.
Dona Cidinha reconheceu o pescador Manoel. Nada disse e apresentou ao pedinte um bom prato de comida e um copo d'água. Esperou seu Manoel comer e quando foi buscar o prato, não se conteve:
"- O Sr. é pescador na Praia de Camboriú, né?
- Sim, Senhora.
- Pois olhe que com tantas casas aqui em Itajaí e o senhor veio bater logo na minha porta. Veja como Deus é justo: um dia, eu estava na Praia e fui comprar peixe com o senhor. Reclamei do preço e pedi para deixar mais barato e o senhor me disse que pobre não devia vir à praia. E olhe onde Nosso Senhor lhe mandou: à minha casa,pedir comida."
Seu Manoel ficou envergonhado e, certamente, arrependidíssimo do que fizera.Restou-lhe pedir desculpas a Dona Cidinha e reconhecer que se comportara muito mal ao humilhá-la. Entregou o prato vazio de comida e, pedindo mil vezes desculpas, saiu da varanda da casa, transpôs e jardim e mal fechou o portão. Em duas passadas atravessou a calçada, cruzou a Rua Guarani e foi em direção ao Cine Luz. Era o caminho que se fazia para chegar na Rodoviária e voltar para a Praia de Camboriú.
Foi Dona Cidinha quem me contou esta história. E a contava como forma de ilustrar o dever de tratar as pessoas respeitosamente, sem humilhar aquelas que, num dado momento, estão numa posição de desvantagem em relação a nós. Pois a situação poderia se inverter.
Dona Cidinha deixava claro que o motivo para tratar bem as pessoas, para não ofendê-las, era a possibilidade de se precisar delas algum dia.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Casamento dos Sonhos

O casamento dos sonhos pode não se adequar à realidade.