A expressão “homens bons” aparece por diversas vezes nos 4 livros das Ordenações Filipinas que li até agora.
Esta expressão (homem bom ou homens bons), ou alguma similar, provavelmente era comum na idade média, pois é mencionada algumas vezes em obra famosa do Século XV: O Martelo das Feiticeiras. [KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum); introdução histórica, Rose Marie Muraro; prefácio, Carlos Byington; tradução de Paulo Fróes - 15 ed., Rio de Janeiro: Record:Rosa dos Tempos, 2001. 528p.]. Ao longo da obra vamos encontrar as seguintes menções: dois homens de bem podiam tomar depoimentos de testemunhas em processos para apuração de bruxaria (p. 398); três ou mais homens de boa reputação podiam testemunhar sobre a existência de hereges (pp. 401 e 402); um homem honesto poderia fazer as vezes de Notário, quando não houvesse no lugar este Oficial (p. 408); o livro era destinado a advertir e salvaguardar os homens de bem dos males da bruxaria (p. 520); um certo João Vörde de Mechili é dado como homem de bem (p. 522), ou honesto e de bem (p. 524).
Como se percebe, a expressão é usada várias vezes, mas devo advertir que usei uma tradução da obra do idioma original para o português, ou seja, não consultei o original em alemão ou em latim. Por isso, é possível que se tenha traduzido “homem bom” para “homem de bem” ou vice-versa. Em suma: em se tratando de expressões que podem mudar, conforme a língua, o importante é considerar seu sentido.
Pois bem, vejamos o uso das expressões “homem bom” e “homens bons” nos quatro livros das Ordenações Filipinas que estudei até agora.
No Livro 1 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui), a expressão “homem bom” aparece 7 vezes: um homem bom deveria estar junto com o Meirinho quando ele encoimasse, para que a multa valesse (encimar significa “multar”); um homem bom guardaria os processos na falta de juízes; um homem bom seria escolhido juiz nas aldeias com vinte a cinquenta vizinhos; um homem bom seria escrivão das eleições, caso os eleitores fossem analfabetos; os Almotacés só poderiam julgar as coimas na presença de um homem bom; um homem bom seria escolhido Alcaide dos lugares onde os reis os punha; a escolha era feita pelos “homens bons”. Ainda no livro 1, a expressão “homens bons” aparece 19 vezes: eles davam certidões, quando fosse terra chã, caso não houvesse no lugar Juízes, Vereadores ou Escrivães; tinham o regimento da cidade ou vila, junto com os Juízes; substituíam Vereadores; governavam junto com os Vereadores; faziam as posturas das cidades e vilas, ou opinavam sobre elas junto aos Vereadores; exerciam as funções de Alcaides e Alcaides pequenos das cidades e vilas.
Há uma distinção entre os homens bons e o povo no texto do Livro 1 das Ordenações Filipinas. Deste conjunto de “homens bons e povo” (“homens e povo” significando pessoas do sexo masculino), seriam escolhidos eleitores, para elegerem o Concelho (com “c” mesmo), que era formado pelos Vereadores, Juízes, Procurador e Almotacé. Este Concelho administrava e distribuía justiça nas cidades e vilas. Hoje, sabemos, que tais funções nas cidades são exercidas pelo Executivo (Prefeito, Secretários e demais cargos) e Legislativo (os Vereadores exercem as funções legislativa e fiscalizadora). Não há, no Brasil, Poder Judiciário Municipal, só Estadual e Federal.
No texto dos quatro livros analisados das Ordenações Filipinas, não há qualquer explicação sobre o que seriam os “homens bons”.
Há algumas explicações nas notas de rodapé. Na primeira nota de rodapé sobre o significado de “homens bons”, no livro 1, Cândido Mendes de Almeida se baseia em livros:
“Homens bons. O Legislador Português usa muitas vezes destas expressões, designando coisas diferentes, como se pode ver neste livro os t. 21 § 6, 58 § 44, 65 § 2, 67 pr. § 6, 68 § 3, e 75 pr.
Homens bons, segundo Moraes, diziam-se os cidadãos, vassalos e acontiados com cavalo; os besteiros de cavalo ou de couto, salvo trazendo suas bestas a ganho. Também eram como tais considerados os lavradores.
Mas desta disposição e da do t. 68 § 3 se vê que havia certo número de homens assim qualificados, que eram juramentados, e concorriam com os Vereadores em decisões das Câmaras. Homens bons que costumam andar no Regimento; eis como se expressa o Legislador.
Pegas no respectivo Com. diz no t. 67 pr. que por homens bons eram considerados os cidadãos; mas não é bastante explícito, quando trata desta disposição, sobre quais eram os homens bons a que se referia o Legislador, e tão pouco quais os mesmos homens que costumavam andar no Regimento. Por outro lado assegura que aquelas expressões no t. 65 § 2 refere-se aos Vereadores.
O t. 58 § 44 trata de três homens bons do Concelho, e diz Pegas no respectivo Com. que eram os que serviam em falta, tanto dos Juízes Ordinários, como dos Vereadores; mas sempre é silencioso quanto ao número desses homens; a menos que tais homens não sejam os seis eleitores encarregados da definitiva eleição dos Juízes, Vereadores etc, de que trata o t. 67 pr., ou os dezoito do § 14 do mesmo título.”
Na segunda nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida, no livro 1, sobre o significado de “homens bons”, temos uma explicação obtida junto um Magistrado:
“Consultando a um Magistrado inteligente e instruído, e que servira por algum tempo os cargos de Juiz de Fora e Ouvidor, sobre a inteligência da expressão – homens bons, e ao número certo dos que concorriam à eleição das Câmaras, disse-nos que não havia número certo, e que eram considerados tais os cidadãos que haviam ocupado os cargos das Municipalidades, ou governança da terra, ou costumavam andar na governança, como se exprime o § 33 do t. 66 deste liv.; não nos podendo explicar com se recorria a tais homens, no começo ou crença de uma Vila ou Julgado, havendo deles falta absoluta.”
Na terceira nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida sobre o significado de “homens bons”, no livro 1, temos uma interpretação do texto da lei:
“Já se vê aqui a expressão homens bons se toma na acepção de simples cidadãos.”
No livro 2 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui), não há menção a “homem bom”, havendo uma menção a “homens bons”. Esta menção é feita na parte que regulamenta os direitos e deveres de donatários de terras [o livro 1 trata da administração do Reino e o livro 2 trata das relações do rei com a Igreja Católica, com os Senhores de Terras e trata também dos direitos do Rei (aí incluída a matéria tributária). Vou transcrever o trecho que trata dos homens bons, pois traz informação sobre como se tratava da administração das Capitanias no Brasil (um parêntesis: no começo as Capitanias eram privadas, razão pela qual até hoje se as chama, em geral erroneamente, de “Capitanias Hereditárias”, mas logo muitas delas foram compradas de volta pelo Rei, até que, em 1820, mudaram de nome, passando a se chamar províncias e, em 1889, passaram a se chamar Estados-membros, que são os nossos Estados-membros atuais). Vejamos o trecho a transcrever:
“TITULO XLV
Em que maneira os Senhores de terras usarão da jurisdição, que por El-Rei lhes for dada .
Como entre as pessoas de grande estado e dignidade, e as outras, é razão que se faça diferença, assim nas doações e privilégios, concedidos às tais pessoas, costumaram os Reis pôr mais exuberantes cláusulas, e de maiores prerrogativas, para se mostrar a maior afeição e amor, que lhes tinham. Polo que nas doações feitas às Rainhas e aos Infantes, e alguns Senhores de terras foram postas cláusulas que lhes concediam algumas terras, Vilas e lugares, com toda sua jurisdição cível e crime, mero e misto Império, não reservando para si parte alguma da dita jurisdição, e em outras reservaram alguma parte dela. E posto que as ditas doações passassem assim largamente, sempre se entenderam, que fique reservada ao Rei a mais alta superioridade e Real Senhorio , que ele tem em todo os seus súditos e naturais, e estantes em seus Reinos.
1. Os Duques, Mestres das Ordens , Marqueses, Condes, e o Prior do Hospital de S. João , Prelados, Fidalgos e pessoas, que de Nós têm terras com jurisdição, usarão dela, como per suas doações, per Nós confirmadas , expressamente lhes for outorgado. E se em as doações e privilégios não for declarado, em que maneira devem usar da jurisdição, usarão em esta maneira.
2. Os Juízes ordinários, Vereadores e Procurador do Concelho, e os outros Oficiais, se farão por eleição dos homens bons, segundo forma da Ordenação. E os Juízes haverão Carta de confirmação, para usarem de seus Ofícios, dos Corregedores das Comarcas, em que as tais terras estiverem, ou dos nossos Desembargadores do Paço. E os ditos Senhores de terras e seus Ouvidores não se intrometam nas eleições, nem nas apurações delas, nem confirmarão os Juízes, salvo, se expressamente lhes for por Nós outorgado, ou pelos Reis, que ante Nós foram, e per Nós confirmado.”
O livro 3 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui) trata do que hoje chamamos de Direito Processual. A expressão “homem bom” é usada uma vez, para determinar que um homem bom substituísse o Corregedor da Comarca, ou Ouvidor (dos Mestrados, de Senhor de terras), ou Juiz de fora, ou outro Julgador, que não seja dos sobreditos, quando estes julgadores se dessem por suspeitos. Dois homens bons também podiam substituir em casos que eram julgados por dois Juízes Ordinários. Homens bons, dignos de fé e sem suspeita também podiam ser louvados pelas partes (louvado era o nome que se dava aos hoje denominados peritos) para decidir se as partições e avaliações eram justas. Homens bons atuavam como testemunhas quando o Porteiro fosse cumprir algum mandado de penhora e o devedor não quisesse dar penhora, mas sim caução: o devedor fazia o requerimento de caução perante três homens bons e não seria penalizado por negar a penhora, já que daria caução. Porteiro era o um tipo de Meirinho, porque “portava” a ordem judicial. Hoje, Porteiro e Meirinho são denominados Oficiais de Justiça. O livro 3 das Ordenações usa a expressão “homens bons” 3 vezes.
No livro 4 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui) a expressão “homem bom” aparece 8 vezes, mas 5 menções dizem respeito a um tema e duas a outro tema: 1) como depositário do preço ou da quantidade [“que façam por e consignar o preço, ou quantidade (...) em mão de um homem bom, fiel, leigo e abonado, morador do lugar”]; em nota de rodapé, consta que “homem bom” significa “chão e abonado”; 2) como Tutor e Curador de órfão: “um homem bom do lugar, que seja abonado, discreto, digno de fé, e pertencente para ser Tutor e Curador do dito órfão, e para guardar e administrar sua pessoa e bens…”
Ainda no livro 4 das Ordenações Filipinas, a expressão “homens bons” aparece 9 vezes, em 5 temas: 1) para designar os homens bons árbitros do preço de coisa vendida (“homens bons dignos de fé, que tenham conhecimento e sabedoria da tal coisa, os quais per juramento dos Santos Evangelhos façam outro novo arbitramento”); 2) para os designar como julgadores, na falta de Juízes, das demandas entre mancebos e seus amos (“Se o mancebo, vivendo com outrem, lhe fez perda alguma, deve-lha emendar e pagar, ou descontar de sua soldada; e isto haverá lugar, se ao tempo, que o mancebo se dele partir, lhe requerer perante o Juiz a perda, que lhe tem feita, ou perante homens bons”); 3) para dá-los como árbitros para estimarem os rendimentos da terra, nos litígios entre lavradores e senhorios; 4) para facultar às partes escolhê-los como árbitros para estimarem penhores; 5) para considerá-los representantes da sociedade ou do público, quando o donatário dissesse ao doador grave injúria, que caracterizaria causa de revogação da doação ou da alforria, por ingratidão.
Conclusão: como se pode perceber, às expressões “homem bom” e “homens bons” não foi dado um significado objetivo, nem no texto das Ordenações, nem nas notas de rodapé e outras interpretações ali transcritas.
Isto nos faz aprender que, ali, são expressões vagas e ambíguas, que possuem alta carga valorativa e, que, portanto, seu significado vai depender da interpretação de quem a está usando. Como a interpretação vai depender de quem a usa, no momento em que tal interpretação vai determinar escolhas, o intérprete adquire o poder de escolher pessoas que se adequem aos fins que pretende atingir com a escolha. Se os homens bons serão escolhidos para exercer algum poder, este poder vai emanar de quem os escolheu, pois selecionará os que compartilham de seus valores e crenças.
Se trouxemos estas reflexões para a atualidade, como que extraindo lições jurídico-políticas da infância do Direito Brasileiro, poderemos concluir que escolhas baseadas em definições vagas e ambíguas, carregadas de subjetividade, são sempre um perigo político e social. Expressões como “homens bons”, “homem bom”, “homem de bem”, “homem honesto” e seus equivalentes modernos, decorrentes das igualdades de gênero e orientação sexual, como “pessoas boas”, “pessoas de bem”, “pessoas honestas”, se usadas para determinar decisões e escolhas, sempre levarão ao arbítrio e ao autoritarismo, travestido de bondade e sabedoria.
Uma observação final: nesta postagem usei o mecanismo de busca de palavras no texto das Ordenações. A versão em PDF pesquisável, como se vê, permite pesquisar palavras nos 4 livros que já coloquei neste blog.