segunda-feira, 30 de junho de 2025

Homens Bons: há um conceito nas Ordenações Filipinas?

         A expressão “homens bons” aparece por diversas vezes nos 4 livros das Ordenações Filipinas que li até agora. 

         Esta expressão (homem bom ou homens bons), ou alguma similar, provavelmente era comum na idade média, pois é mencionada algumas vezes em obra famosa do Século XV: O Martelo das Feiticeiras. [KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum); introdução histórica, Rose Marie Muraro; prefácio, Carlos Byington; tradução de Paulo Fróes -  15 ed., Rio de Janeiro: Record:Rosa dos Tempos, 2001. 528p.]. Ao longo da obra vamos encontrar as seguintes menções: dois homens de bem podiam tomar depoimentos de testemunhas em processos para apuração de bruxaria (p. 398); três ou mais homens de boa reputação podiam testemunhar sobre a existência de hereges (pp. 401 e 402); um homem honesto poderia fazer as vezes de Notário, quando não houvesse no lugar este Oficial (p. 408); o livro era destinado a advertir e salvaguardar os homens de bem dos males da bruxaria (p. 520); um certo João Vörde de Mechili é dado como homem de bem (p. 522), ou honesto e de bem (p. 524).

        Como se percebe, a expressão é usada várias vezes, mas devo advertir que usei uma tradução da obra do idioma original para o português, ou seja, não consultei o original em alemão ou em latim. Por isso, é possível que se tenha traduzido “homem bom” para “homem de bem” ou vice-versa. Em suma: em se tratando de expressões que podem mudar, conforme a língua, o importante é considerar seu sentido.  

        Pois bem, vejamos o uso das expressões “homem bom” e “homens bons” nos quatro livros das Ordenações Filipinas que estudei até agora.

        No Livro 1 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui), a expressão “homem bom” aparece 7 vezes: um homem bom deveria estar junto com o Meirinho quando ele encoimasse, para que a multa valesse (encimar significa “multar”); um homem bom guardaria os processos na falta de juízes; um homem bom seria escolhido juiz nas aldeias com vinte a cinquenta vizinhos; um homem bom seria escrivão das eleições, caso os eleitores fossem analfabetos; os Almotacés só poderiam julgar as coimas na presença de um homem bom; um homem bom seria escolhido Alcaide dos lugares onde os reis os punha; a escolha era feita pelos “homens bons”. Ainda no livro 1, a expressão “homens bons” aparece 19 vezes: eles davam certidões, quando fosse terra chã, caso não houvesse no lugar Juízes, Vereadores ou Escrivães; tinham o regimento da cidade ou vila, junto com os Juízes; substituíam Vereadores; governavam junto com os Vereadores; faziam as posturas das cidades e vilas, ou opinavam sobre elas junto aos Vereadores; exerciam as funções de Alcaides e Alcaides pequenos das cidades e vilas. 


        Há uma distinção entre  os homens bons e o povo no texto do Livro 1 das Ordenações Filipinas. Deste conjunto de “homens bons e povo” (“homens e povo” significando pessoas do sexo masculino), seriam escolhidos eleitores, para elegerem o Concelho (com “c” mesmo), que era formado pelos Vereadores, Juízes, Procurador e Almotacé. Este Concelho administrava e distribuía justiça nas cidades e vilas. Hoje, sabemos, que tais funções nas cidades são exercidas pelo Executivo (Prefeito, Secretários e demais cargos) e Legislativo (os Vereadores exercem as funções legislativa e fiscalizadora). Não há, no Brasil, Poder Judiciário Municipal, só Estadual e Federal.  

        No texto dos quatro livros analisados das Ordenações Filipinas, não há qualquer explicação sobre o que seriam os “homens bons”. 

        Há algumas explicações nas notas de rodapé. Na primeira nota de rodapé sobre o significado de “homens bons”, no livro 1, Cândido Mendes de Almeida se baseia  em livros: 

Homens bons. O Legislador Português usa muitas vezes destas expressões, designando coisas diferentes, como se pode ver neste livro os t. 21 § 6, 58 § 44, 65 § 2, 67 pr. § 6, 68 § 3, e 75 pr.

Homens bons, segundo Moraes, diziam-se os cidadãos, vassalos e acontiados com cavalo; os besteiros de cavalo ou de couto, salvo trazendo suas bestas a ganho. Também eram como tais considerados os lavradores.

Mas desta disposição e da do t. 68 § 3 se vê que havia certo número de homens assim qualificados, que eram juramentados, e concorriam com os Vereadores em decisões das Câmaras. Homens bons que costumam andar no Regimento; eis como se expressa o Legislador.

Pegas no respectivo Com. diz no t. 67 pr. que por homens bons eram considerados os cidadãos; mas não é bastante explícito, quando trata desta disposição, sobre quais eram os homens bons a que se referia o Legislador, e tão pouco quais os mesmos homens que costumavam andar no Regimento. Por outro lado assegura que aquelas expressões no t. 65 § 2 refere-se aos Vereadores.

O t. 58 § 44 trata de três homens bons do Concelho, e diz Pegas no respectivo Com. que eram os que serviam em falta, tanto dos Juízes Ordinários, como dos Vereadores; mas sempre é silencioso quanto ao número desses homens; a menos que tais homens não sejam os seis eleitores encarregados da definitiva eleição dos Juízes, Vereadores etc, de que trata o t. 67 pr., ou os dezoito do § 14 do mesmo título.”


        Na segunda nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida, no livro 1, sobre o significado de “homens bons”,  temos uma explicação obtida junto um Magistrado:

 

“Consultando a  um Magistrado inteligente e instruído, e que servira por algum tempo os cargos de Juiz de Fora e Ouvidor,  sobre a inteligência da expressão – homens bons, e ao número certo dos que concorriam à eleição das Câmaras, disse-nos que não havia número certo, e que eram considerados tais os cidadãos que haviam ocupado os cargos das Municipalidades, ou governança da terra, ou costumavam andar  na governança, como se exprime o § 33 do t. 66 deste liv.; não nos podendo explicar com se recorria a tais homens, no começo ou crença de uma Vila ou Julgado, havendo deles falta absoluta.”


        Na terceira nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida sobre o significado de “homens bons”, no livro 1, temos uma interpretação do texto da lei:

“Já se vê aqui a expressão homens bons se toma na acepção de simples cidadãos.”



        No livro 2 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui), não há menção a “homem bom”, havendo uma menção a “homens bons”. Esta menção é feita na parte que regulamenta os direitos e deveres de donatários de terras [o livro 1 trata da administração do Reino e o livro 2 trata das relações do rei com a Igreja Católica, com os Senhores de Terras e trata também dos direitos do Rei (aí incluída a matéria tributária). Vou transcrever o trecho que trata dos homens bons, pois traz informação sobre como se tratava da administração das Capitanias no Brasil (um parêntesis: no começo as Capitanias eram privadas, razão pela qual até hoje se as chama, em geral erroneamente, de “Capitanias Hereditárias”, mas logo muitas delas foram compradas de volta pelo Rei, até que, em 1820, mudaram de nome, passando a se chamar províncias e, em 1889, passaram a se chamar Estados-membros, que são os nossos Estados-membros atuais). Vejamos o trecho a transcrever:


“TITULO XLV

Em que maneira os Senhores de terras usarão da jurisdição, que por El-Rei lhes for dada .


Como entre as pessoas de grande estado e dignidade, e as outras, é razão que se faça diferença, assim nas doações e privilégios, concedidos às tais pessoas, costumaram os Reis pôr mais exuberantes cláusulas, e de maiores prerrogativas, para se mostrar a maior afeição e amor, que lhes tinham. Polo que nas doações feitas às Rainhas  e aos Infantes, e alguns Senhores de terras foram postas cláusulas que lhes concediam algumas terras, Vilas e lugares, com toda sua jurisdição cível e crime, mero e misto Império, não reservando para si parte alguma da dita jurisdição, e em outras reservaram alguma parte dela. E posto que as ditas doações passassem assim largamente, sempre se entenderam, que fique reservada ao Rei a mais alta superioridade e Real Senhorio , que ele tem em todo os seus súditos e naturais, e estantes em seus Reinos.

1. Os Duques, Mestres das Ordens , Marqueses, Condes, e o Prior do Hospital de S. João ,  Prelados, Fidalgos e pessoas, que de Nós têm terras com jurisdição, usarão dela, como per suas doações, per Nós confirmadas , expressamente lhes for outorgado. E se em as doações e privilégios não for declarado, em que maneira devem usar da jurisdição, usarão em esta maneira.

2. Os Juízes ordinários, Vereadores e Procurador do Concelho, e os outros Oficiais, se farão por eleição dos homens bons, segundo forma da Ordenação. E os Juízes haverão Carta de confirmação, para usarem de seus Ofícios, dos Corregedores das Comarcas, em que as tais terras estiverem, ou dos nossos Desembargadores do Paço. E os ditos Senhores de terras e seus Ouvidores não se intrometam nas eleições, nem nas apurações delas, nem confirmarão os Juízes, salvo, se expressamente lhes for por Nós outorgado, ou pelos Reis, que ante Nós foram, e per Nós confirmado.”



        O livro 3 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui) trata do que hoje chamamos de Direito Processual. A expressão “homem bom” é usada uma vez, para determinar que um homem bom substituísse o Corregedor da Comarca, ou Ouvidor (dos Mestrados, de Senhor de terras), ou Juiz de fora, ou outro Julgador, que não seja dos sobreditos, quando estes julgadores se dessem por suspeitos. Dois homens bons também podiam substituir em casos que eram julgados por dois Juízes Ordinários. Homens bons, dignos de fé e sem suspeita também podiam ser louvados pelas partes (louvado era o nome que se dava aos hoje denominados peritos) para decidir se as partições e avaliações eram justas. Homens bons atuavam como testemunhas quando o Porteiro fosse cumprir algum mandado de penhora e o devedor não quisesse dar penhora, mas sim caução: o devedor fazia o requerimento de caução perante três homens bons e não seria penalizado por negar a penhora, já que daria caução. Porteiro era o um tipo de Meirinho, porque “portava” a ordem judicial. Hoje, Porteiro e Meirinho são denominados Oficiais de Justiça. O livro 3 das Ordenações usa a expressão “homens bons” 3 vezes.


        No livro 4 das Ordenações Filipinas (íntegra em PDF pesquisável aqui) a expressão “homem bom” aparece 8 vezes, mas 5 menções dizem respeito a um tema e duas a outro tema: 1) como depositário do preço ou da quantidade [“que façam por e consignar o preço, ou quantidade (...) em mão de um homem bom, fiel, leigo e abonado, morador do lugar”]; em nota de rodapé, consta que “homem bom” significa “chão e abonado”; 2) como Tutor e Curador de órfão: “um homem bom do lugar, que seja abonado, discreto, digno de fé, e pertencente para ser Tutor e Curador do dito órfão, e para guardar e administrar sua pessoa e bens…”

        Ainda no livro 4 das Ordenações Filipinas, a expressão “homens bons” aparece 9 vezes, em 5 temas: 1) para designar os homens bons árbitros do preço de coisa vendida (“homens bons dignos de fé, que tenham conhecimento e sabedoria da tal coisa, os quais per juramento dos Santos Evangelhos façam outro novo arbitramento”); 2) para os designar como julgadores, na falta de Juízes, das demandas entre mancebos e seus amos (“Se o mancebo, vivendo com outrem, lhe fez perda alguma, deve-lha emendar e pagar, ou descontar de sua soldada; e isto haverá lugar, se ao tempo, que o mancebo se dele partir, lhe requerer perante o Juiz a perda, que lhe tem feita, ou perante homens bons”); 3) para dá-los como árbitros para estimarem os rendimentos da terra, nos litígios entre lavradores e senhorios; 4) para facultar às partes escolhê-los como árbitros para estimarem penhores; 5) para considerá-los  representantes da sociedade ou do público, quando o donatário dissesse ao doador grave injúria, que caracterizaria causa de revogação da doação ou da alforria, por ingratidão.

        Conclusão: como se pode perceber, às expressões “homem bom” e “homens bons” não foi dado um significado objetivo, nem no texto das Ordenações, nem nas notas de rodapé e outras interpretações ali transcritas.

        Isto nos faz aprender que, ali, são expressões vagas e ambíguas, que possuem alta carga valorativa e, que, portanto, seu significado vai depender da interpretação de quem a está usando. Como a interpretação vai depender de quem a usa, no momento em que tal interpretação vai determinar escolhas, o intérprete adquire o poder de escolher pessoas que se adequem aos fins que pretende atingir com a escolha. Se os homens bons serão escolhidos para exercer algum poder, este poder vai emanar de quem os escolheu, pois selecionará os que compartilham de seus valores e crenças. 

        Se trouxemos estas reflexões para a atualidade, como que extraindo lições jurídico-políticas da infância do Direito Brasileiro, poderemos concluir que escolhas baseadas em definições vagas e ambíguas, carregadas de subjetividade, são sempre um perigo político e social. Expressões como “homens bons”, “homem bom”, “homem de bem”, “homem honesto” e seus equivalentes modernos, decorrentes das igualdades de gênero e orientação sexual, como “pessoas boas”, “pessoas de bem”, “pessoas honestas”, se usadas para determinar decisões e escolhas, sempre levarão ao arbítrio e ao autoritarismo, travestido de bondade e sabedoria. 

        Uma observação final: nesta postagem usei o mecanismo de busca de palavras no texto das Ordenações. A versão em PDF pesquisável, como se vê, permite pesquisar palavras nos 4 livros que já coloquei neste blog.


sexta-feira, 20 de junho de 2025

Classificação dos Bens no Livro 4 das Ordenações Filipinas

    O Direito (leis, doutrina, jurisprudência, costumes) muda com  passar do tempo e nas mudanças de espaço. Verdade que, se olharmos o livro 4 das Ordenações Filipinas e seu sistema jurídico ainda baseado no Direito Romano e no Direito Canônico, talvez as mudanças temporais não fossem tão perceptíveis. E os vínculos com o Direito Romano e com o Direito Canônico também tornariam os deslocamentos espaciais (pelo menos nos países predominantemente católicos) pouco significativos em termos de diferenças normativas.  

   Em se tratando de classificação dos bens, os 500 anos de vida do Brasil, viram poucas variações. Hoje temos a classificação dos bens no Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/01/2002 - artigos 79 e seguintes) que os divide, em resumo, entre móveis e imóveis. Mas no Livro 4 das Ordenações Filipinas a nomenclatura era um pouco diferente. 

   Os hoje chamados bens imóveis, eram chamados de bens de raiz (como os terrenos, as herdades, as casas, os prédios, as possessões ou campos de terras, vinhas, árvores, por exemplo). Já os bens móveis eram chamados do mesmo modo de hoje ( = móveis). Eram bens móveis, por exemplo, a mobília e os trastes, as benfeitorias feitas em bens de raiz. “Por bens entende-se os móveis, semoventes, e de raiz, e coisas, as ações, os direitos, etc”.

   A expressão “bens de raiz” parece ter sido usada antes do século XIX, porque, nas notas de rodapé, que são da segunda metade do século XIX, já se usa a expressão “bens imóveis”.

   As alienações dos bens de raiz “excedendo de duzentos mil réis demandam escritura pública”, diz-se em nota de rodapé.

   Bens e fazenda eram coisas distintas, como se vê pela frase: “E dispondo o pai, ou mãe, em seu testamento de todos os seus bens e fazenda…” A fazenda podia ser “de bens móveis, ou dinheiro.” Mas há também um trecho em que se fala “fazenda e patrimônio.” Fazenda também tinha o significado atual, de órgão estatal responsável pelas finanças.

   Além dos bens móveis e dos de raiz, havia os semoventes, como era o caso dos animais, por exemplo. 

   O dinheiro não era um bem móvel, nem de raiz.

  Havia casos em que certos bens eram considerados (ou equiparados a) bens de raiz: Apólices da Dívida Pública, os Ofícios (ofícios eram os hoje chamados cargos públicos). Os ofícios eram equiparados a bens de raiz porque “deles se percebia frutos e rendimentos.

   Havia outras subclassificações de bens, tais como parafernais, alodiais, eclesiásticos, da Coroa do Reino ou reguengos (após a independência, estes se tornaram “bens ou próprios nacionais”, como, por exemplo, os terrenos de Marinha), bens profanos (que não eram eclesiásticos - “mandamos que nos bens Eclesiásticos se guarde o Direito Canônico, e nos bens profanos o Direito Civil”), bens dotais, bens castrenses (“adquiridos na guerra ou na Milícia” - o testamento do soldado podia ser feito “no chão com a espada, ou nos escudos, ou nas espadas com o sangue das feridas”), quase-castrenses (adquiridos “pela profissão das letras, e por doações régias”, “pelas Letras, como pela Magistratura, Advocacia ou Professorado, ou qualquer arte liberal ou Ofício público, ou pelo Clericato…”), foreiros, censíticos, profectícios (“os que o filho herda de seu pai ou mãe, ou avós em sucessão direta"), adventícios (“os adquiridos por esforço próprio, ou herdados por sucessão não direta”), 

   A relação com os bens podia ser de Senhorio proveitoso: “é o domínio útil contraposto ao direto”; e de Senhorio maior: “é o domínio eminente do Rei ou do Estado”.

   A palavra bens aparece 1006 vezes no Livro 4 das Ordenações Filipinas, incluídas as notas de rodapé.

   No livro 4 das Ordenações Filipinas há diversas situações em que a Escritura é da substância do contrato. Em nota de rodapé consta:

“A escritura pública ou é da substância do contrato, ou necessária para a prova, como nos casos da Ord. do liv. 3 p. 59.

Os casos em que, segundo nosso Direito, é da substância do contrato são os seguintes:

1°- Nas doações que devem ser insinuadas.

2°- Nos contratos de aforamento de bens eclesiásticos.

3°- Nos contratos esponsalícios (Lei de 6 de Outubro de 1784 § 6, que é extensiva aos contratos de casamento em geral, puramente esponsalícios ou não).

4°- Nos hipotecários (Lei de 20 de Junho de 1774 § 33, e Lei n. 1274 - de 24 de Setembro de 1864 art. 4 §6).

5°- Nos de compra e venda de bens de raiz, cujo valor exceda de 200$000, sob pena de nulidade (Lei n. 840 - de 15 de Setembro de 1855 art. 11, e Avs. n. 49 - de 22 de Janeiro, e n. 409 - de 16 de Dezembro de 1856, e n. 235 - de 30 de Julho de 1858).

6°- Nos contratos de compra e venda, e dação in solutum de escravos cujo valor ou preço exceda 200$000, qualquer que seja o lugar em que tais contratos se possam efetuar (Lei n. 1114 - de 27 de Setembro de 1860 arts. 11 § 3, e 11§ 7, e Decreto n. 2699 - de 28 de Novembro do mesmo ano art. 3).

Estas disposições têm somente vigor na Corte e respectivo Município.

Nas Províncias rege outra legislação a este respeito; ainda que pelo Decreto n. 2833 - de12 de Outubro de 1861 sobre a transferência de escravos e arrecadação de imposto da cisa, atualmente em todo o Brasil vigore aquela legislação; (...)

7° - Nos contratos em que as partes expressamente convencionam fazer escritura, ou se posa presumir ser essa a sua vontade.”


“Correa Telles Interp. § 75 referindo-se à Lei de 6 de Outubro de 1774 § 1 que exige escritura pública para os contratos esponsalícios diz, que a regra estabelecida no § da referida lei, oposta a todas as regras gerais do Direito, não deve ampliar-se fora do seu caso.

«Assim, continua o mesmo Jurista, também as Leis que exigem escritura, como substância do contratos não se estendem além dos seus casos (Ord. deste liv. t. 19 pr.) porque a regra geral é, que a escritura serve para prova, e não para a substância do contrato.»”

   Os escravos eram considerados bens, mas estes serão objeto de outra postagem.

  Como sempre esclareço, deixo aqui de mencionar o local do livro 4 em que constam os assuntos tratados em cada postagem, pois eles podem ser facilmente achados mediante “caça-palavras”, ou pesquisa em texto por palavras.


terça-feira, 17 de junho de 2025

Desapropriação e Licitação no Livro 4 das Ordenações Filipinas

    A desapropriação, como a conhecemos hoje, surgiu no Brasil após o fim da Monarquia absoluta. Veio com a Monarquia Constitucional, portanto. Mas a perda da propriedade para o Estado (no caso, para a Coroa) já era contemplada na Monarquia absoluta que nos governou na época colonial.

   Apesar da Constituição de 1824 admitir a perda da propriedade privada  (Se o bem público legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A Lei marcará os casos, em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para se determinar a indenização), não há nela a palavra desapropriação.

   No texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas, não se encontram as palavras “desapropriar”, “desapropriado”, ou  “desapropriação” e, nas notas de rodapé, a palavra “desapropriação” só aparece em uma nota: “Este meio é ainda recomendado no Av. n. 218 - de 21 de Maio de 1862, quando se teve de desapropriar o edifício do Internato do Imperial Colégio de Pedro II. Segundo o art. 31 do D. n. 353 - de 12 de Junho de 1845 nas desapropriações por utilidade pública no Município Neutro, o prédio desapropriado se considera livre de todos os ônus, hipotecas e lidespendentes.”

   O instituto da Desapropriação foi regulamentado nos artigos 64 e seguintes da  Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas, mas esta Consolidação é de 1858 (SUZART, Joseane. Teixeira de Freitas, o jurista que sedimentou o Direto Privado em prol da sociedade. Íntegra do texto aqui). E Teixeira de Freitas, aparentemente, usou as normas do Decreto nº 353/1845 para incorporá-las na Consolidação. Enfim, a desapropriação, como a conhecemos no Estado Constitucional, surge no Brasil independente, em 1824, mas é regulamentada a partir de 1845.

   Mas a possibilidade do Rei tomar a propriedade, já era contemplada no Livro 4 das Ordenações Filipinas: ora como razão para atender a necessidades: “…se… a mandássemos Nós tomar (a coisa, o bem) por alguma necessidade…”; ora como punição para herdeiros que impedissem alguém de fazer testamento: “e perca para a nossa Coroa toda a parte, que lhe cabia haver ab intestado por falecimento da pessoa, que assim foi forçada…”, ou para herdeiros que impedissem alguém de revogar testamento que os beneficiara: “E a herança se aplicará à nossa Coroa…”

   Como estamos falando de herança, é interessante anotar aqui de onde veio o termo licitação. A licitação ocorria para venda de coisa comum dos herdeiros, segundo consta em nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas: “os Praxistas têm com razão admitido a licitação na praça, ou seja para a venda da coisa comum, ou seja para o arrendamento dela”;  «Licitação, diz Pereira de Carvalho - Proc. Orphan. § 92, é o ato, pelo qual se põe a lanço os bens da herança, que não admitem cômoda divisão, para se adjudicarem àquele dos co-herdeiros, que mais oferecer.»; «Por Direito Romano L. 1 e 3 Cod. comm. divid. a licitação era unicamente permitida nas coisas, que se não podiam dividir, nem acomodar facilmente em partilha.” Esta disposição sobre licitação se encontra no “Corpus Juris Civilis”. Há uma edição espanhola (Cuerpo de Derecho Civil Romano, ed. Lex Nova, Valladolid, 2004), na qual, as disposições sobre licitação se encontram na p. 390 do Tomo IV:

TIT. XXXVII

COMMUNI DIVIDUNDO

1. Imp. ANTONINUS A. LUCANO.  — Frater tuus si solam portionem praedii ad se pertinentem distraxit, venditionen revocari non oportet, sed adversus eum, cum quo tibi idem praedium commune esse coepit, communi dividundo iudício consiste; et ea actione aut universum praedium, si licitatione viceris, exsoluta socio parte pretii, obtinebis, aut pretii portionem, si meliorem alius conditionem attulerit, consequeris. Quodsi divisio praedii sine cuiusquam iniuria commode fieri poterit, portionem suis finibus tibi adiudicatam possidebis; hoc videlicet custodiendo, ut post litis contestationem memo nec partem suam, ceteris eiusdem rei dominis non consentientibus, alienare possit.

   A palavra “licitação” ainda não aparecia no Código de Contabilidade da União (Decreto nº 4.536, de 28/01/1922), mas passou a constar do Decreto-Lei 200/1967 (art. 125).

   Se a palavra “licitação” só foi incorporada à terminologia do Direito Administrativo Brasileiro no século 20, o procedimento que se abrigou sob essa nomenclatura já estava no Livro 1 das Ordenações Filipinas, quando trata das despesas feitas pelos então Concelhos, que hoje, no Brasil, são denominados Municípios: “TÍTULO LXVI  Dos Vereadores  (...) 39. E não se fará obra alguma, sem primeiro andar em pregão, para se dar de empreitada  a quem a houver de fazer melhor e por menos preço;”.

   Como em todas as demais postagens sobre as Ordenações Filipinas, deixo de indicar a página ou fazer referência especial sobre onde se encontram, pois basta que se faça pesquisa por “caça-palavras” no texto integral que disponibilizo nos links ao longo desta postagem.


sábado, 14 de junho de 2025

Aluguel e Arrendamento no Livro 4 das Ordenações Filipinas

    Na vigência das Ordenações Filipinas, as casas podiam ser alugadas ou arrendadas. A propriedade imóvel também podia ser aforada, mas este é um tema que merecerá postagem específica. Quem quiser antecipar o tema aforamento, procure no texto integral do Livro 4 (aqui) as palavras aforamento, enfiteuse, prazo/praso e laudêmio.

    Casas, herdades ou qualquer outra coisa de raiz (os imóveis eram chamados “coisas de raiz” ou “bens de raiz”) podia ser alugada ou arrendada. O termo “herdade” ainda hoje é usado em Portugal. Nas Ordenações, aparentemente significa “vinha”.

    “Aluguer” também é uma palavra ainda usada em Portugal. No Brasil, apesar da grafia estar correta, consagrou-se o uso de “aluguel”, popularizando-se a pronúncia “aluguéu” (o L sendo substituído por “U”). O hoje denominado Inquilino, ou Locatário, era chamado de “alugador”. Os hoje chamados “locadores” eram denominados “senhorios”, ou “senhores das casas”. 

    A locação de casas é uma prática antiga. Nas notas de rodapé do Livro 4 já são noticiadas normas jurídicas do século XV: “O Al. de 11 de junho de 1644 impunha aos senhorios a obrigação de não levantarem os aluguéis das casas, depois da publicação da Lei das décimas. O Al. de 3 de julho de 1699 anulava o levantamento dos alugueres das casas que tinham feito os senhorios, pretextando o encargo do imposto de quatro e meio por cento, havia pouco criado.

        Usava-se, para marcar o aluguel por tempo certo, os dias santificados: “Porém as pessoas, que tiverem casas, e as alugarem a outrem per tempo certo, assim como até S. João, S. Miguel, Natal, ou outro tempo declarado pelas partes…” Se os senhores das casas quisessem que os alugadores ficassem nelas após passado o tempo convencionado, deveriam “requerer” trinta dias antes e os alugadores deveriam responder em três dias. Se não respondessem, teriam que pagar o aluguel de um ano. Se não houvesse o requerimento por parte do senhorio, o alugador poderia escolher sair da casa ou ficar e pagar o aluguel.

        Se o alugador (hoje inquilino, ou locatário) não pagasse o aluguel, o senhor da casa (hoje locador) não poderia penhorar, mas devia se dirigir ao Alcaide da Vila, ou do lugar, que faria a penhora sem autoridade de Justiça. Em nota de rodapé, cita-se Teixeira de Freitas, para dizer que, após a independência, a penhora tinha que ser por ordem judicial.

    Em casos de sublocação (“...se o senhor da casa não achar a pessoa, a que a alugou, e achar outrem nela”...) o senhor da casa podia cobrar os alugueres do ocupante da casa.

    O senhor da casa poderia lançar fora da casa o alugador em quatro casos: 1º - não pagamento da pensão (nome que se dava ao aluguel); 2º - “quando o alugador usa mal da casa, assim como danificando-a ou usando nela de alguns atos ilícitos e desonestos, ou danosos à casa”; 3º - “quando o senhor a quer renovar, ou reparar de adubios necessários, que se não poderão fazer convenientemente, morando o alugador nela…”; 4º - “quando o senhor da casa por algum caso, que de novo lhe sobreveio, e há mister para morar nela, ou para algum seu filho, filha, irmão ou irmã…”.  Em nota de rodapé se cita a obra de Silva Pereira (Repertório das Ordenações) para esclarecer que “A casa é danificada se o inquilino por si ou por outrem estabelece alguma oficina insalubre, ou criasse animais imundos ou daninhos”; o inquilino praticaria atos ilícitos e desonestos, ou danosos se empregasse a casa “em jogos, prostituição ou reuniões tumultuosas”. Em todos estes quatro casos, quem deitaria o alugador fora da casa era o Alcaide da Vila. Em nota de rodapé, Cândido Mendes de Almeida informa que este Alcaide da Vila, antes da Independência do Brasil, exercia as funções policiais e judiciais. O nome “Alcaide” é um resquício da dominação árabe na Península Ibérica e deriva de Cádi, que era autoridade que exercia as funções de Juiz entre os mouros, ou sarracenos. Em nota de rodapé, Cândido Mendes de Almeida informa que “adubios”era “tudo quando se faz necessário para conservação dos bens”. 

    O aluguel pressupunha pagamento, pois se fosse uso gratuito, seria comodato.

    Teixeira de Freitas (Consolidação das Leis Civis, art. 668, nota 4 - citada em nota de rodapé) diz que “as casas são alugadas quase sempre sem contrato por escrito, ‘ad libitum’ dos inquilinos". Interessante notar que, já no século XV, se alugavam roupas em Portugal: há menção no Livro 4 das Ordenações Filipinas de aluguel de vestidos e jóias, que podiam ser feitos na cidade de Lisboa.

    Não encontrei diferenciação, no Livro 4 das Ordenações Filipinas, entre aluguel e arrendamento. O arrendamento era uma outra forma de rendimento da propriedade. Quem arrendava um imóvel, na condição de dono, era denominado rendeiro. 

    Havia restrições sobre o arrendamento em se tratando de detentores de cargos estatais: “Provedor algum, nem Contador da Comarca, Juiz dos Órfãos, Tabelião do Judicial, Escrivão dos Órfãos, ou das Câmeras, nem outros Escrivães, de qualquer qualidade e de quaisquer Ofícios que sejam, nem Meirinhos, ou Alcaides possam arrendar alguma renda nossa (do Rei), nem de Fidalgo algum, ou de Senhor de Terras, que as de Nós (o Rei) tenha, nem de Comendador, nem de Prelado.” Os Ouvidores de Senhores de terras também não podiam arrendar. Neste ponto aparece, subliminarmente, o conceito de Ouvidor: eram os Juízes nomeados por Senhores de Terras. Os Juízes nomeados pelo Rei eram os Juízes de Fora. 

    Havia uma proibição específica quanto às rendas de detentores de certos cargos: Vedor da Fazenda e Escrivães dela, Contadores das Comarcas e dos Contos e seus Escrivães e outros Oficiais da Fazenda Real, não podiam arrendar suas rendas.

    Entre os bens de raiz (imóveis), herdades ou vinhas eram arrendadas. Ao se tratar delas, não se menciona a locação. Se o pagamento (renda)  ao dono da herdade (ou vinha) fosse em pão, vinho, azeite ou dinheiro, estaria caracterizado o arrendamento e não a parceria. A parceria já era um outro tipo de contrato.

     O arrendamento podia ser por mais de dez anos. Mas sendo o arrendamento por mais de dez anos, haveria transferência de domínio útil, de modo que, nesta situação (mais de dez anos), produziria o mesmo efeito que o aforamento. Entretanto, “Pelo Al. de 3 de novembro de 1757, por que (sic) arrendamentos de mais de dez anos não são aforamentos”, segundo nota de rodapé de Teixeira de Freitas.

    Não podia haver arrendamento de gados (vacas, cabras, porcos) ou colméias. Todavia, caso os herdeiros não pudessem partir a herança sem dano “assim como escravo, besta, moinho, lagar, ou outra coisa semelhante”, deviam arrendar e partir a renda entre si. 

    Como já dito acima, não há no Livro 4, nem nas notas de rodapé, explicação da diferença entre aluguer e arrendamento. Deixa-se de fornecer tal explicação, pois não é objetivo deste texto ensinar a diferença entre aluguer e arrendamento ou conceituá-los, mas sim noticiar o que consta no Livro 4 das Ordenações Filipinas e respectivas notas de rodapé. E delas não constando a diferença entre aluguer a arrendamento, foge ao escopo deste texto fornecê-la.

sábado, 7 de junho de 2025

Lesões enormes e enormíssimas (Ordenações Filipinas - Livro 4)

        Apesar do texto das Ordenações Filipinas não conter as expressões “enorme” e “enormíssima”, as notas de rodapé as mencionam. Isto significa que o que hoje chamamos “doutrina”, reconhecia tais gradações de lesão. Digo “hoje chamamos doutrina”, pois esta expressão, para fazer referência aos livros que discorrem sobre direito, parece-me que surgiu no século XX. Do teor das notas de rodapé das Ordenações, doutrina pareceu significar opções legislativas: “...e com elas se entenderá a doutrina da Ordenação do livro 4 título 44 § 1”; “A doutrina deste parágrafo está de acordo com a do parágrafo da Ordenação que desposou o rigor do Direito Romano…”  

         Um dos casos de lesão enorme - segundo os Doutores (era como eram chamados os doutrinadores nas notas de rodapé das Ordenações Filipinas) - ocorria quando alguma coisa fosse vendida pela metade do preço: “... E o preço pago ao vendedor se for achado que o vendedor foi enganado além da metade do justo preço” (texto da Ordenação). Esta lesão contratual, segundo a nota de rodapé, era uma lesão enorme. A “lesão enormíssima, segundo Corrêa Telles (Dig. Port. to. 1 art. 253) dá-se quando alguém recebe a terça parte do justo valor da coisa”. Em se tratando de lesão enormíssima, a prescrição era de 30 anos.

      Em casos práticos, são noticiadas situações em que os julgadores divergiram quanto a se tratar de lesão enorme ou enormíssima. Também houve discussão sobre a possibilidade de se alegar lesão enorme ou enormíssima nas transações. A propósito, o conceito de transação na nota de rodapé não diverge do sentido jurídico atual: segundo Barbosa (Comentários às Ordenações), citado por Cândido Mendes de Almeida nas notas de rodapé, a palavra transação “não se achava na Ordenação Manuelina, foi introduzida para pôr termo às questões dos Jurisconsultos”. Transação, segundo Teixeira de Freitas (nota 2 ao art. 359 da Consolidação das Leis Civis) é o “contrato de composição entre as partes para extinguirem obrigações litigiosas ou duvidosas”. Outra discussão que ocorria entre os Jurisconsultos era se poderia haver alegação de lesão enorme ou enormíssima  na compra e venda que se fizesse em hasta pública com as solenidades legais.

      Há extensas considerações nas notas de rodapé sobre a legalidade ou ilegalidade, moralidade ou imoralidade da cobrança de juros. E neste ponto também se lamenta que não caiba discussão sobre a possibilidade de lesão enorme ou enormíssima no contrato de juros, já que a Lei de 24 de outubro de 1832 não contemplava tal tipo de alegação. Sobre o tema “juros” farei uma postagem específica, pois são riquíssimas as discussões constantes nas notas de rodapé do Livro 4.

      Em outra nota se informa que a ação de lesão enormíssima (segundo Teixeira de Freitas em nota ao art. 859 da Consolidação das Leis Civis) é real. Mas também se admite ser pessoal, caso em que a prescrição seria de 15 e não de 30 anos.

    A ocorrência de lesões enormes ou enormíssimas também podia ser arguida quando das partilhas. 

     Nos Códigos Civis de 1916 e 2002 não se encontra nem a palavra enorme, nem enormíssima.

terça-feira, 3 de junho de 2025

COMPRA E VENDA 3 - VÍCIOS REDIBITÓRIOS (Ordenações Filipinas - Livro 4)

         




            Em algumas das aulas de latim que tive no Colégio Salesiano Itajaí (1970 e 1971), o professor explicou a necessidade de vírgula nas frases com o exemplo de uma profecia feita pelos oráculos aos soldados romanos, antes de irem à guerra: "Idis redibis non morieris in bello" (Irás voltarás não morrerás na guerra). Finda a guerra, ficava-se sabendo se a previsão fora acertada. Se o soldado sobrevivesse, a leitura seria essa: "Idis, redibis, non morieris in bello" (Irás, voltarás, não morrerás na guerra). Mas se o soldado morresse na guerra, a família era informada que a previsão também fora acertada: "Idis, redibis non, morieris in bello" (Irás, voltarás não, morrerás na guerra). "Redibis" se traduz por retornarás, ou voltarás. Quando estudei Direito Civil na FEPEVI, hoje UNIVALI, memorizei o significado de vício redibitório por causa da profecia da guerra. Redibitório é o que volta.

            As Ordenações Filipinas enumeram diversas situações em que a compra e venda podia ser desfeita por causa de vícios do bem objeto do contrato. Este desfazimento da compra tinha prazo e, segundo a doutrina da época, constante nas notas de rodapé do Livro 4, a prescrição aquisitiva era de dez anos entre presentes e de vinte entre ausentes. A prescrição até trinta anos "só cabe sendo a lesão enormíssima". Havia lesão enorme e lesão enormíssima.

            O comprador de casa, herdade ou qualquer outro bem de raiz (imóvel) só era obrigado a respeitar a locação ou arrendamento se fosse superior a dez anos. 

                 O preço injusto era causa de desfazimento da venda.

            Desembargos do Rei, da Rainha e do Príncipe não podiam ser vendidos nem comprados por pessoa alguma. E se o que comprar os ditos desembargos, ou os tomar em pagamento de qualquer coisa, que se possa dizer, que se lhe deve, for nosso Contador, Escrivão dos Contos, Tesoureiro, Almoxarife, Recebedor, Escrivão do Tesoureiro e Almoxarifado, ou outro algum oficial de nossa Fazenda, ou pessoa das que andam e servem nela na Corte, ou Corregedor, ou outro algum Oficial de Justiça ou outro Oficial nosso, de qualquer qualidade que seja, perca polo mesmo feito toda sua fazenda móvel e de raiz, a metade para o Hospital de todos os Santos da cidade de Lisboa, e a outra para quem o acusar, e haverá a pena crime, que houvermos por bem. Em nota de rodapé, consta: Desembargos nossos. Segundo Silva no com., pela expressão desembargos entendem-se ordens de pagamento. Vide também Arouca na l. Princeps 31 n. 17, e Sousa de Macedo - Dec. 94 n. 2. Por desembargos entendiam alguns, os diplomas ou títulos especiais, ou graças nos quais os Reis davam certas somas aos seus criados na Corte, quando se casavam. Moraes no Dicc. define: Alvará, despacho, ou cédula, porque se mandava pagar nos Contos ou Erário alguma soma devida ou de mercê. Desembargo quer dizer despacho. De desembargo provém a expressão - desembargadores, equivalente a Despachadores. Os Desembargadores do Paço eram outr’ora como os Ministros d’ Estado hoje, pois assim eram chamados porque despachavam com o Rei.

           Os casos de vícios redibitórios se iniciavam por escravos doentes, mas o tema escravidão será objeto de outras postagens. Quem tiver curiosidade, basta acessar o livro 4 na íntegra aqui e pesquisar a palavra "escravo"; se pesquisar "escrav" pegará variações do termo em mais pontos do livro 4.

                Há uma disposição genérica sobre vício redibitório: "E todas as coisas acima ditas se poderão enjeitar, não somente quando são havidas per título de compra, mas ainda se forem havidas per troca ou escambo, ou dadas em pagamento, ou por qualquer outro título, em que se traspasse o senhorio: mas não se poderão enjeitar, quando forem havidas por título de doação.

                E as coisas, que não são animadas, quer sejam móveis, quer de raiz, se poderão enjeitar por vícios, ou faltas, que tenham, assim como um livro comprado, no qual falta um caderno, ou folha em parte notável, ou que está de maneira, que se não possa ler, ou um Pomar, ou Horta, que naturalmente sem indústria dos homens produze plantas, ou ervas peçonhentas."

                   Nas notas de rodapé há interessante interpretação da norma jurídica: 

                    1) A nota se inicia referenciando a obra de Barbosa, e Silva, que comentaram o Livro 4 das Ordenações. Referencia também Silva Pereira, autor do Repertório das Ordenações (no caso, o tema está no to. 2 nota "e" à pag. 249). Os imóveis e inanimados, enjeitam-se dentro do ano pela ação quanti minoris.

                 2) Mas a interpretação de lei mais curiosa é a que autoriza o desfazimento da compra e venda no caso de haver fantasmas na casa comprada ou ela ter vizinhança ruim: "Silva Pereira no - Rep. contempla também nas casas, como vícios redibitórios os fantasmas e maus vizinhos."

                    A escritura de compra e venda já era mencionada nas Ordenações:  "Se algumas pessoas fizerem contrato de venda, ou de outra qualquer convença, e ficarem para fazer escritura desse contrato, antes que se a tal escritura faça, se pode arrepender  e arredar da convença o que havia de fazer a escritura. E isto haverá lugar, quando o contrato for tal, que segundo o Direito não possa valer sem escritura, e que a escritura seja de substância do contrato, assim como nos contratos, que se devem fazer e insinuar, e em contrato enfitêutico de coisa eclesiástica  e em outros, que segundo Direito são de semelhante qualidade e condição."

                            Em nota de rodapé, consta: 

  1)  Ainda nos contratos feitos com o Fisco tem lugar o arrependimento. Não obstante, o senhorio que aceita o prazo que o foreiro lhe oferece não pode arrepender-se (Silva Pereira - Rep. das Ords. t. 1 nota (a) à pag. 228).  

 2)  A escritura pública ou é da substância do contrato, ou necessária para a prova, como nos casos da Ord. do liv. 3 p. 59. Os casos em que, segundo nosso Direito, é da substância do contrato são os seguintes:

1°- Nas doações que devem ser insinuadas.

2°- Nos contratos de aforamento de bens eclesiásticos.

3°- Nos contratos esponsalícios (L. de 6 de Outubro de 1784 § 6, que é extensiva aos contratos de casamento em geral, puramente esponsalícios ou não).

4°- Nos hipotecários (L. de 20 de Junho de 1774 § 33, e L. n. 1274 - de 24 de Setembro de 1864 art. 4 §6).

5°- Nos de compra e venda de bens de raiz, cujo valor exceda de 200$000, sob pena de nulidade (L. n. 840 - de 15 de Setembro de 1855 art. 11, e Avs. n. 49 - de 22 de Janeiro, e n. 409 - de 16 de Dezembro de 1856, e n. 235 - de 30 de Julho de 1858).

6°- Nos contratos de compra e venda, e dação in solutum de escravos cujo valor ou preço exceda 200$000, qualquer que seja o lugar em que tais contratos se possam efetuar (L. n. 1114 - de 27 de Setembro de 1860 arts. 11 § 3, e 11§ 7, e D. n. 2699 - de 28 de Novembro do mesmo ano art. 3).

Estas disposições têm somente vigor na Corte e respectivo Município.

Nas Províncias rege outra legislação a este respeito; ainda que pelo D. n. 2833 - de 12 de Outubro de 1861 sobre a transferência de escravos e arrecadação de imposto da cisa, atualmente em todo o Brasil vigore aquela legislação (...).

7° - Nos contratos em que as partes expressamente convencionam fazer escritura, ou se posa presumir ser essa a sua vontade. 

 

3)  As doações que segundo a taxa da lei, devem ser insinuadas, posto que, ainda nestas circunstâncias, nem todos obrigam à escritura pública, como as da Ord. do liv. 3 t. 59 §11.

T. de Freitas na Consol. art. 413 diz o seguinte referindo-se a esta Ord.: 

«As doações entre parentes nos casos da Ord. do liv. 3 t. 59 devem ser insinuadas, porém a escritura pública não é da substância dela, ex vi da citada Ord. §11, e da segunda parte do § 21 que diz: 

«E quanto aos dotes, e quaisquer outras convenções, e prometimentos feitos nos casamentos, haverá lugar no que acima dizemos no § 11.»

Vide Silva Pereira - Rep. das Ords. to. 1 nota (c) à pag. 623, e Reynoso – Obs. 44. 

  4) T. de Freitas na Consol. art. 367 § 2 nota diz o seguinte: 

«Na prática reputa-se a escritura pública como substancial de todos os aforamentos. 

«Devo observar que a despeito da Ord. do liv. 4 t. 19 pr., muitos aforamentos de bens Eclesiásticos existem entre nós sem escritura pública, constando apenas de assentos lavrados nos livros. Para não fazer-se injustiças cumpre atender ao que sensatamente tem escrito Lobão - Dir. Emphy, nota ao § 67.»

Na nota ao art. 605 da mesma obra - Consol. diz que também se pode constituir aforamento por testamento do que dá ideia o § 8 da Ord. deste liv. t. 37.

Consulte-se também a última parte dessa nota sobre a natureza do contrato de aforamento ou enfitêutico. 

                A Consol. mencionada é a Consolidação das Leis Civis, da lavra de Teixeira de Freitas, que esteve em vigor de meados do século XIX até 1916. Em regra eram normas extraídas das Ordenações Filipinas.