terça-feira, 28 de setembro de 2021

Ordenações Filipinas - Livro II

 Depois da disponibilização do Livro 1 em PDF pesquisável das Ordenações Filipinas, aqui está o Livro 2, também em PDF pesquisável e acessível aqui. Trata-se de trabalho escolar de meus alunos de Direito Constitucional, efetuado entre os anos de 2004 e 2008 e que, somente agora, graças à aposentadoria, estou revisando detalhadamente e publicando. Como já falei em outra postagem, os meus ex-alunos do então IBES/Blumenau verteram a versão fotográfica em PDF (que foi trazida à lume pelos alunos da Universidade de Coimbra) para texto editável. Eu unifiquei todos os trabalhos, os revisei, verti para PDF pesquisável  e estou publicando. Trata-se de publicação sem fins lucrativos, como tudo que é publicado em meu blog.

O Livro 1 das Ordenações Filipinas trata da organização administrativa do Reino de Portugal, descrevendo ofícios (hoje cargos) e regimentos (hoje atribuições), tanto na administração da Corte, quanto na administração dos Concelhos (os municípios de hoje), Senhorios e Conquistas (havia Concelhos e Conselhos na administração portuguesa). O Livro 2 vai tratar das relações do Estado com a Igreja, dos poderes do Rei, da cobrança de seus créditos e da forma como os Senhorios (donatários de terras) exerceriam seus direitos e privilégios. No resumo que faço abaixo, deixo de indicar onde estão os assuntos que menciono, pois, como disse, a íntegra do livro 2 está em PDF pesquisável, de modo que basta acessar o link acima e encontrar o assunto desejado.

O Livro 2 se inicia regulando os conflitos de jurisdição entre a Justiça Eclesiástica e a Justiça Secular. É que a Monarquia Absoluta Portuguesa tinha uma relação de dependência com a Igreja Católica, como ocorria com a Europa toda (a chamada cristandade) até a Reforma Protestante. Passada a Reforma, Portugal e Espanha continuaram Estados católicos. De se notar aqui que, enquanto outros países da Europa lutavam contra os muçulmanos em Jerusalém (as Cruzadas), Portugal e Espanha faziam a guerra em seus próprios territórios até 1492. Por esta razão, havia tribunais administrados pela Igreja e tribunais administrados pelo Estado. Mas estas não eram as únicas jurisdições. Ao longo do Livro 2 veremos que havia pluralidade de jurisdições, sendo recente, entre nós, a jurisdição universal como a conhecemos hoje.

Um aspecto interessante nesta disciplina das competências, é que ele parece um eterno ir e vir, já que, na atualidade são constantes as discussões processuais acerca da competência das justiças comuns Federal e Estaduais e sobre as competências entre as jurisdições especializadas.

Outro aspecto interessante na disciplina que o livro 2 das Ordenações Filipinas faz acerca da competência entre a Justiça Eclesiástica e a Justiça Secular, é que as normas são baseadas em tratados celebrados entre o Estado Português e a Santa Sé.  

Além das definições sobre competência, também eram disciplinados os julgamentos de religiosos que fossem julgados pela Justiça Secular. 

A Igreja possuía imunidades, que se estendiam por todos os prédios que abrigassem templos (católicos). Assim, se alguém que era perseguido pela Justiça Secular se abrigasse numa igreja (isso se chamava “acoutar” - o conceito de couto está em uma das notas de rodapé ao Livro 2), estaria imune enquanto no interior do templo. Não alcançavam esta imunidade alguns criminosos, tais como o ladrão público e os que ateavam fogo em pães. E também não ficava imune o escravo que se acoutasse na igreja para fugir do cativeiro. Mas o escravo teria imunidade se se acoutasse na igreja por causa da crueldade de seu senhor. As igrejas também recebiam mercês do Rei para comprarem bens de raiz.

Está também no Livro 2 das Ordenações Filipinas a regulamentação dos casos em que a Inquisição (o Santo Ofício da Inquisição) necessitava do auxílio do braço secular da justiça para realizar diligências processuais.

No corpo das Ordenações havia muitas expressões em latim e a obra mais copiosamente citada pelo anotador desta edição da 1870 (Cândido Mendes de Almeida), qual seja, os Comentários às Ordenações, de Emanuel Álvares Pegas, edição de 1683, era totalmente escrita em latim (exceto os trechos de julgados e normas transcritos).

Já que estou tratando dos comentários, faço um parêntesis para registrar que estes comentários de Cândido Mendes de Almeida estão todos em notas de rodapé e, como a formatação da transcrição foi efetuada em Word ® , depois convertida para PDF, as notas de rodapé desta versão que publico foram distribuídas automaticamente, de modo que estão com numeração diferente da edição-base. O texto e a correspondência do que é referido está mantido conforme o original, que pode ser visto aqui. Ainda no que toca aos comentários, Cândido Mendes de Almeida faz referência a muitas obras jurídicas de seu tempo e dos séculos anteriores. Em geral, estas obras estão disponíveis na Internet, como é o caso da obra de Pegas. Nesta obra de Pegas há informações históricas interessantíssimas, como é o caso dos estatutos da cidade de Coimbra, ou Forais, e outras normas medievais. Estes textos estão mencionados no corpo da transcrição das notas de rodapé do Livro 2. 

Outro ponto necessário para registro é que preservei a linguagem da edição de 1870, de modo que há palavras em desuso. Somente atualizei a grafia das palavras quando aquela original estava fora dos padrões legais de escrita na atualidade. 

Há passagens desta transcrição digital do Livro 2 em que destaquei o texto em amarelo, o que fiz em pontos que, a meu arbítrio, achei interessantes para destacar.

Pois bem, voltando ao Livro 2.  

Além da disciplina da jurisdição eclesiástica e secular, ali são tratadas também as isenções da Igreja perante o Rei. Era usada a palavra “tributo” e também a expressão  “direitos do Rei”.

Nas Ordenações, a expressão “direitos reais” significa direitos do Rei. Creio (não fiz estudos detalhados) que a expressão “direitos reais” somente passou a ser usada como sinônimo de “direitos das coisas” a partir do século XIX. Mas isso é matéria para outros estudos. O fato é que, nas Ordenações, Direitos Reais significava Direitos do Rei. 

A expressão “direitos reais” não compreendia somente a matéria tributária, mas abrangia outros poderes do rei, como criar Capitães. Este é um ponto importante para nós brasileiros, pois diz respeito às Capitanias, que, até 1821, foram a forma de divisão territorial do país. Outros direitos reais consistiam na nomeação de oficiais que hoje chamamos de servidores públicos.  Em um ponto do livro 2 consta que eram necessárias licenças para se venderem e trespassarem Ofícios, que cessou no Brasil em 1827. Mas há um título (XLVI) que proíbe a venda de ofícios por donatários de terras. 

Um dos títulos do Livro 2 das Ordenações Filipinas traz a lista dos direitos reais. Segundo Coelho Sampaio, citado por Cândido Mendes de Almeida, estes Direitos Reais foram extraídos das leis romanas e do Direito Canônico. Ainda segundo Mendes de Almeida, os Direitos Reais equivaliam, na época da edição da obra (1870 - Brasil Imperial) aos Direitos Nacionais. Hoje são os bens e as competências da União. Claro que alguns desses direitos estão hoje mitigados, ainda que sejam do Estado Republicano. Assim, se era direito do Rei ser servido pelo povo, hoje a requisição de serviços e o serviço militar sofrem limitações; o direito do Rei de desapropriar (na linguagem do Livro 2: tomar carros, bestas e navios), hoje foi mitigado pela necessidade de justa e prévia indenização.

As relações das Ordens de Cavalaria (de Cristo, de Sant-Iago e de Aviz) era outro ponto tratado no Livro 2. O tema eram os privilégios de que gozavam os Mestres, os Comendadores e Cavaleiros destas ordens.

Nem todos os bens que não fossem privados pertenciam ao patrimônio particular do Rei: alguns pertenciam à Coroa, como era o caso dos Reguengos ou Realengos. Há pontos deste livro 2 em que se fala em “o Rei e a Coroa destes Reinos” (trecho acessível mediante caça-palavras). As estradas e ruas públicas (é esta a expressão usada: ruas públicas), bem como rios comuns a toda a gente, eram patrimônio real. A palavra República é usada no Livro 2, com sentido de coisa pública, apesar de se estar numa monarquia absoluta. Ainda não adquiri certeza sobre o significado da palavra “República” nas Ordenações.

Ainda no título relativo aos direitos reais, consta nota de rodapé de C. M. ALMEIDA, na qual este dá uma pormenorizada notícia sobre a legislação relativa à mineração, até o século XIX no Brasil.

C.M. ALMEIDA cita Coelho Sampaio para dizer que, em Portugal, não havia feudos. Mas o Regimento dos Capitães das Capitania tornava tais capitanias muito semelhantes aos feudos, em especial quando estas capitanias eram privadas, ou seja, fruto de doação do rei a particulares. Associou-se, no Brasil, a palavra “capitania” com a palavra “hereditária”, quando, na realidade, estas capitanias foram o embrião dos hoje Estados-membros, durando até 1820. Começaram particulares e, aos poucos, foram readquiridas pela Coroa Portuguesa; enfim, as capitanias no Brasil, duraram cerca de 300 anos e só por uma pequena parte deste período foram “hereditárias”; na maior parte do foram Capitanias somente, sendo descabido se referir a elas como “Capitanias Hereditárias.

O Livro 2 das Ordenações Filipinas se ocupa, em boa parte, das doações de terras e o que era incluído nestas doações. Assim, por exemplo, nem sempre estava incluído nas doações o recebimento de tributos que, usualmente, eram destinados ao Rei. E mesmo que algum Rei incluísse esse direito de receber tributos, a própria Ordenação invalidava esta doação, declarando literalmente que “não é de crer, que o Rei, que tal Carta assinou, a assinara, se a vira, por ser coisa tão prejudicial à Coroa do Reino.”. 

Na verdade, apesar do Livro 2 declarar que não havia feudos em Portugal, muito se assemelhavam a feudos estas terras doadas, como era o caso das Capitanias do Brasil. 

Os capitães da África tinham jurisdição - há um título sobre isso (XLVII). Nas notas de rodapé há notícias sobre a regulamentação das atividades dos capitães e governadores do Brasil. Além destas notícias, apresento link - junto às notas de rodapé - para acesso a tais regimentos. 

A normatização dos direitos reais permite que saibamos quais comidas eram consumidas no século XVII: milho, nozes, avelãs, trigo, pão, carne bovina, coelhos, galinhas… E bebidas: vinho. E se fica sabendo o conceito de lagar e de dorna. 

Outro ponto tratado no livro 2 era a sucessão da Coroa. Neste título, também se trata da Lei Mental. Esta Lei Mental era uma interpretação não escrita de legislação, ou seja, uma interpretação feita “pela mente do Rei” e se devia ao fato do Rei Dom João I ter feito promessas para subir ao trono e que não pode cumprir, revogando-as com a Lei Mental. E é nesta parte do Livro 2 em que se trata da Lei Mental, que vai aparecer o princípio do absolutismo: “nenhuma Lei, per o Rei feita o obriga, senão quanto ele, fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu Real poder.” Também é aqui nesta parte que se começa a falar em doação de jurisdição. Isto significa, como eu já disse acima, que havia pluralidade de jurisdições, ou seja, a jurisdição eclesiástica, a jurisdição secular, esta se dividindo em, digamos, originária (exercida pelo Rei ou por delegação sua) e derivada (exercida pelos donatários de jurisdição, ou seja, aqueles que ganhavam do rei as terras e a jurisdição sobre elas). Assim, se o Rei nomeava um magistrado de primeira instância, este era um Juiz de Fora; se o donatário nomeava um magistrado, este era um Ouvidor. Está também no livro 2 a forma como os Senhores de terras usariam a jurisdição recebida. Um ponto em que muito se insistia eram as Correições, que muito pouco se diferenciam das atualmente realizadas no Judiciário, Ministério Público e demais órgãos dotados de corregedoria.

As mulheres que recebiam doação do rei necessitavam de autorização dele para casar.

Os bens que hoje chamamos “imóveis” eram denominados “bens de raiz”. Bens vagos eram aqueles sem dono. Já havia o perdimento de bens auferidos na atividade criminosa.

Nem sempre os fatos punidos com degredo são hoje tidos como crimes. Assim, quem invadia uma igreja abandonada, sem licença do Ordinário (hoje chamado Vigário), era punido com degredo para a África. Quem vendia metais antes de serem marcados com o selo do quinto (20% do valor, a título de tributo) era degradado dez anos para o Brasil. Ou seja, sonegadores eram degradados para o Brasil. Também eram degradados para cá os que exercessem a função de tabelião sem carta do Rei.

A palavra “defesa” nas Ordenações, geralmente é usada no sentido de proibição. A palavra “deputados” significava “assinados, designados”.  A  expressão “vistas e examinadas”, ainda hoje usada em decisões judiciais, já constava do Livro 2. E as decisões que firmavam nova jurisprudência eram chamadas “façanhas”.  Havia restrição à prescrição das penas. Gafarias eram os hospitais de portadores de hanseníase. Eram admitidas penas arbitrárias (o castigo que houvermos por bem) em certos trechos do Livro 2, mas havia, no Livro 5 disposição expressa proibindo penas arbitrárias. Também se admitia a “sabida verdade” ou “verdade sabida”.

O Livro 2 também trata do prazo de execução das leis, hoje chamado de entrada em vigor. Era de oito dias na corte e três meses nas comarcas, um ano no Brasil, Guiné e Ilhas e dois anos para a Índia. Atualmente, no Brasil, é 45 dias (Decreto-Lei Nº 4.657, de 4/9/1942, art. 1º). Em nota de rodapé, C. M. ALMEIDA dá o conceito dos diversos atos normativos usados durante a vigência das Ordenações: Alvará, Decreto e Provisão. Quando estes entravam em conflito com as Ordenações, estas prevaleciam, ou seja, não sendo derrogadas por aquelas. Também em nota de rodapé constam as diferenças entre príncipes e infantes, entre cativos e escravos.

Há uma extensa regulamentação sobre a execução das dívidas para com a Fazenda Real (Título LIII), ou seja, do mesmo modo que hoje, as execuções fiscais eram regulamentadas diferentemente das execuções de dívidas entre particulares. O devedor só podia opor embargos em se recolhendo à prisão. A prisão por dívida deixou de existir em Portugal (e no Brasil) pela Lei de 20 de junho de 1774.

Também no Livro 2 se fica sabendo que a era de César cessou em Portugal em 1422.

Aposentadoria não tinha sempre o sentido de hoje. Aposentar também significava ter aposentos. Mas a aposentadoria, no sentido que hoje adotamos, somente era concedida a quem tivesse a idade de 70 anos (Título LIV).

O que hoje conhecemos por “nacionalidade”, era denominado “naturalidade” (Título LV). O Brasil, para fins de naturalidade, até 1815, era compreendido na expressão - Senhorios.

Interessante é o conceito de vizinho, que não aparece na legislação atual. O Código Civil Brasileiro em vigor  fala muitas vezes em vizinho, mas não o conceitua. Este conceito está no título LVI do Livro 2.  

Paniguados, apaniguados, ou epaniguados eram os empregados domésticos que só ganhavam alguma coisa para seu sustento. Mancebo era um servidor por soldada.

A leitura, enfim, das Ordenações Filipinas, traz, portanto, valiosas informações para compreender a administração pública brasileira, em todos os seus aspectos, bem como a vida da nossa sociedade. De se notar a extensa regulamentação de privilégios neste Livro 2, que muito explica nosso cotidiano privado.