quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Uma História Legal das Férias

A idéia de férias como período de descanso do trabalho, destinado a todas as pessoas, parece que só surgiu no Brasil no Século XX. Até então e especialmente na época da Colônia, quando vigoravam as Ordenações Filipinas, havia, legalmente, três tipos de férias (Livro 3, Título XVIII): as do primeiro tipo, tido como mais importante, era para louvor e honra de Deus e dos Santos (Domingos, festas e dias que a Igreja mandava guardar); as do segundo tipo eram as ordenadas pelo Rei e as do terceiro tipo eram as destinadas à colheita do pão e do vinho. As férias deste terceiro tipo eram outorgadas por prol comum do povo e duravam de dois meses. Os meses em que ocorreriam as férias podiam ser escolhidos pelos juízes, segundo a disposição e necessidade das terras, repartindo os tempos conforme as estações. Cândido Mendes de ALMEIDA (Comentários às Ordenações Filipinas) acha que estas férias nunca foram usadas no Brasil (pelo menos até 1873).
As férias eram destinadas tão somente à suspensão das atividades judiciais, para que pudesse haver um tempo em que as pessoas tivessem certeza de que não seriam importunadas por processos judiciais, audiências e defesas. Este tempo era destinado, em regra, a comemorações religiosas e respectivas atividades, ou para a inadiável colheita. Disto se tem notícia desde a primeira legislação surgida na Península Ibérica, o Fuero Juzgo (Código Visigótico, vigente na Península Ibérica do ano 500 até o ano 1200, aproximadamente).
O Livro II, Título I, item X do Fuero Juzgo dizia que nenhum homem podia ser chamado em Juízo no domingo e os processos deviam ser suspensos neste dia. Também não poderia haver processos em andamento nos quinze dias que antecediam a Páscoa e nos quinze que a sucediam; também deviam ser guardados o dia do Nascimento de nosso Senhor, o dia da Circuncisão, o dia da Aparição, o dia da Ascensão e a cinquesma (= o dia de Pentecostes); quinze dias em agosto e quinze em setembro; e, para as vindimas, quinze dias em setembro e quinze em outubro. Em todos estes dias de férias e feriados, nenhuma pena podia ser executada e, quem estivesse condenado, ficaria preso até que voltassem os dias normais, para a execução da pena. Note-se que, naqueles tempos, não havia pena de prisão: só havia açoite, morte, degredo, tormento e coisas do gênero. Assim, se alguém fosse condenado à morte, não seria morto nestes dias de férias, só o sendo nos dias comuns. No Fuero Juzgo, aquele que não obedecesse a lei das férias, seria punido com 50 açoites.
Ainda segundo Cândido Mendes de ALMEIDA (Comentários às Ordenações Filipinas), “férias"são os tempos de vacações em que, diz Pereira e Sousa, cessa o exercício dos Tribunais e Auditórios. Vem do Latim "feria".
Chamavam-se "férias" os dias da semana, do verbo (latino) "ferior", "feraris", que significa guardar festas, ou conforme outros a "ferendis hostiis", porque antigamente se traziam holocaustos e vítimas aos templos em dias festivos.
Também chamavam os antigos "férias" aos dias nefastos, porque era de mau agouro proferir alguma sentença, ou dar execução a lei. Nesses dias o Pretor não podia usar das três célebres palavras ("tria verba") e nem proferi-las ("Do, Dico, Addico").” O significado destas palavras, segundo o Free Dictionary, é: “Do", eu faço a ação; "Dico", eu declaro o direito, eu promulgo o edital e "Addico", eu invisto o juiz com o direito de julgar.
Ainda conforme ALMEIDA, foi o Papa Silvestre que chamou "feria" os nomes dos dias da semana, denominando o Domingo "primeira feria" etc, mudando assim entre os Cristãos as antigas denominações desses dias.” Espanhois, franceses, ingleses e os povos que adotaram suas línguas, por exemplo, permaneceram denominando os dias da semana com os nomes dos deuses pagãos (lunes, viernes e martes, no castelhano, por exemplo).
Diz ainda ALMEIDA que as disposições das Ordenações Filipinas foram alteradas, no Brasil, pelo Decreto nº 740 - de 28 de Novembro de 1850, que declarou quais os dias feriados nos diferentes Juízos e Tribunais do Império. As disposições deste Decreto foram alteradas pelo Decreto nº 1.285 - de 30 de Novembro de 1853, que dispôs assim sobre as férias, entre outras disposições:
Art. 1º. As férias do Natal começarão no dia vinte e um de dezembro até o último de janeiro; as da Semana Santa, de Quarta feira de Trevas até se completarem quinze dias, e as do Espírito Santo, desde o Domingo do Espírito Santo até o da Trindade.
Art. 2º. Serão também feriados nos Juízos de primeira e segunda Instância, e Supremo Tribunal de Justiça, os dias vinte e cinco de março, sete de Setembro, dois de novembro e dois de dezembro, assim como em cada Província os dias de festividade que forem aniversários da adesão da mesma Província à Independência Nacional.
Tanto no Fuero Juzgo, quando nas Ordenações Filipinas e na legislação do Império, as férias forenses não suspendiam os processos criminais.
O Decreto 848/1890, que instituiu a Justiça Federal no Brasil, apesar de não descrever quais eram os dias de férias, não só fazia referência a elas (artigos 381 e 382) como estipulava um recesso de natal (art. 383). Mas o art. 386 dizia que Constituirão legislação subsidiária em casos omissos as antigas leis do processo criminal, civil e comercial, não sendo contrárias às disposições e espírito do presente decreto. Provavelmente se referia ao Decreto 1.285, de 1853.
As férias como direito dos trabalhadores brasileiros, desvinculadas da religião, datam do ano de 1925 (Decreto do Poder Legislativo nº 4.982 de 24/12/1925). Mais tarde, este decreto passou a fazer parte da CLT.
O Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939) dizia o seguinte sobre as férias no Judiciário, sem mencionar motivos religiosos:
Art. 39. (...)
§ 1º As autoridades judiciárias e os serventuários da Justiça terão direito, respectivamente, a sessenta (60) e trinta (30) dias consecutivos de férias por ano, que poderão ser gozados na forma estabelecida nas leis de organização judiciária.
Com a revogação do CPC de 1939, pelo de 1973, as férias de 60 dias ficaram mantidas pelas leis das respectivas magistraturas, de modo que os Juízes Federais, por exemplo, tiveram o direito garantido de 73 a 79 pelo art. 51, da Lei nº 5.010/66. A partir de 1979, o direito aos 60 dias ficou garantido no art. 66 da LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LC 35/1979).
O direito a 60 dias de férias dos membros do Ministério Público da União está no art. 220 da LC 75/93.
O recesso de Natal, constante do art. 62 da Lei 5.010/66 (e hoje adotado também pela Justiça dos Estados), ainda existe, mas ficou menor do que aquele previsto em 1853, mas ocorre quase durante o mesmo período do Decreto de 1890.
Como se percebe, por muito tempo, os grandes períodos de inatividade do trabalho se destinaram a atividades religiosas e o nome "férias" se desvinculou totalmente da religião, no Brasil, a partir do Século XX. É claro que isto aconteceu também porque, até o fim do Século XIX, o trabalho, por aqui, era feito por escravos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Pequena Viagem a Pé

Caminhar por praias desertas no litoral de Santa Catarina era coisa comum ainda na década de 70. Ainda no começo dos anos 80 estas praias continuariam desertas, mas a partir do final da década e mais ainda a partir de 1990, mais e mais gente foi erguendo casas e edifícios nestas praias. Talvez as maiores expansões imobiliárias tenham ocorrido no triângulo que concentra a maior quantidade de pessoas e as cidades de maior PIB do Estado. Os vértices deste triângulo ficam em Joinville, Blumenau e Florianópolis. E quase no meio do lado deste triângulo que fica no litoral, está Balneário Camboriú. Mas na década de 70 ainda havia muitas terras a serem ocupadas. Daí porque uma caminhada a pé, de Balneário Camboriú a Itajaí, era um passeio com forte sabor de aventura. E quando se tem entre 15 e 20 anos, a imaginação do que resta de criança se soma à coragem e força do corpo que se torna adulto, e estes passeios com gosto de aventura ficam mais encantadores. E o encanto chega aos píncaros se o grupo de caminhantes é composto por moços e moças.
A ida de Itajaí até Balneário Camboriú era de ônibus. Saltava-se no frente do Hospital Santa Inês e se tomava a direção da praia pela rua que desemboca no Hotel Marambaia. Dali se ia até a barra norte. Era a barra do ribeirão Marambaia. Este ribeirão nasce perto da rua 2450 e vai se robustecendo na direção norte. Da rua 2450 até próximo à Alvim Bauer, serpenteia entre a Avenida Brasil e a Terceira Avenida. Então atravessa a Avenida Brasil e segue até o final norte da praia, por entre a Avenida Atlântica e a Avenida Brasil.
Até a década de 1960 havia uma lagoa onde hoje é a Praça Alimirante Tamandaré. Esta lagoa sumiu (com certeza foi aterrada), mas, enquanto existiu, alimentava o Ribeirão Marambaia. Este Ribeirão era muito limpo até começos de 1960 (vi suas águas transparentes no trecho que fica entre as ruas 1001 e 1101), mas foi ficando poluído (resultado de despejo de esgoto em suas águas, só estancado no ano 2000, por força de Ação Civil Pública), de modo que, na década de 70, a travessia de sua foz só podia ser feita por ponte, mesmo sendo rasa a profundidade.
Então, após passar pela frente do Hotel Marambaia, se atravessava o Ribeirão, quando era iniciada a caminhada rumo a Itajaí. Ou pelo menos o trecho mais interessante. Cruzado o ribeirão, ia-se ia caminhando por cima das pedras, depois por uma prainha, até que se tomava uma picada pelo mato, que subia o morro e desembocava na praia da Preguiça, também conhecida como Praia do Coco. Era o primeiro cenário deslumbrante, a vista daquela praia, de cima do morro: de um lado a praia deserta, de outro Balneário Camboriú, já bastante crivada de edifícios na orla (não tantos como hoje). Hoje, todo o trajeto que vai da margem norte do Ribeirão Marambaia até a Praia da Preguiça é feito por sobre uma passarela, que contorna as pedras e o morro, e vai terminar na areia.
Descia-se o morro e se pisava a areia da praia. E se estava num caminho de areia fina e branca, por onde a gente ia andando, ora numa areia mais fofa do que a de B. Camboriú, circunstância que já exigia mais esforço para andar, ora em areia mais dura, que permitia andar mais depressa e com menos esforço.
Toda a extensão da Praia da Preguiça era o trecho mais "selvagem" do caminho. Logo no início, os rapazes pegavam pequenos troncos de árvore que jaziam na areia, trazidos pelo mar, para os usarem como cajados. Caminhando entre o mar e o mato, era fácil imaginar que se estava numa caravana como aquelas que apareciam em filmes sobre a África ou sobre os primórdios do cristianismo ou do povo judeu. E se prosseguia andando pela praia deserta.
Hoje, onde era só mato, há um hotel tipo "resort".
Transposta esta praia, surgiam uma picada entre grandes pedras e pequeníssimas praias. Estas minúsculas praias eram formadas mais por cascalho, do que por areia.Era o trecho mais difícil de transpor.Difícil e perigoso, pois uma queda daquelas pedras podia causar grandes estragos ou mesmo ser fatal. Não era o único perigo que o passeio apresentava, mas ali os riscos de uma perna ou braço quebrados, de uma lesão na cabeça, eram significativamente maiores. Hoje, num local deserto como era aquele, o medo de furtos, roubos e violências seria maior do que o de cair das pedras.
Transposta esta trilha de pedras e prainhas, se chagava à praia Braba (ou Brava, que é o nome oficial). O primeiro trecho da praia Braba pertencia ao município de Balneário Camboriú. Aquele trecho também ficou conhecido como praia dos Amores. Conheci duas explicações para isso. A primeira, dizia que casais de namorados iam lá para "fazer amor", numa época que não havia motéis. Eram casais que faziam de seus carros motéis. Ou havia, também, os que iam a pé até lá e (certamente depois de um descanso) entregavam-se ao sexo recreativo (pois duvido que alguém tivesse tanto trabalho para fazer sexo procriativo).
A segunda explicação dizia que as moças que trabalhavam num dos prostíbulos da redondeza iam à praia para tomarem banho nuas ou, então, para atenderem seus verdadeiros amores. Havia um prostíbulo isolado numa das ruas próximas (do lado oeste da Rodovia Osvaldo Reis - a praia ficava ao leste da Rodovia) e, em outra rua (também a oeste da Osvaldo Reis) uma zona de meretrício. A zona era constituída por vários bordéis, ou boates ("boites"), formando assim um vilarejo (uma zona) e junto a cada boate havia uma edificação que era o conjunto de quartos destinados ao sexo profissional. Assim, ia-se na boate os clientes faziam a aproximação com as mulheres (ou elas se aproximavam dos clientes) e, depois, alugava-se o quarto. Após as 5 da manhã, hora que terminava o expediente, as moças podiam atender namorados, amigos e outros que não podiam arcar com as despesas usuais.
Creio que esta zona deixou de funcionar em meados da década de 80, exatamente quando começaram a se proliferar os motéis na região.
A praia Braba era o maior trecho de areia do passeio (evidentemente que sem considerar a praia central de Balneário Camboriú, que não fazia parte do percurso).
De novo - como ocorrera na Praia da Preguiça - se prosseguia a caminhada pela areia, com auxílio dos "cajados". De um lado o mar perigoso (não é de graça que a praia é chamada de "Brava") e de outro muito mato e pouquíssimas casas. Quase no meio da praia, já em território itajaiense, se destacava a então "sede campestre" da Sociedade Guarani. Na década de 60 ali funcionara o "Clube Santa Clara", que também era conhecido por "Cassino da Lagoa". Nunca eu soube com certeza se no local chegou a funcionar um cassino...
A travessia da Praia Braba era tão encantadora quanto a da Praia da Preguiça. E mais demorada, por se tratar de praia mais extensa.
A Sede Campestre do Guarani ficava quase na beira de um riacho que vinha da região do Morro Cortado e desembocava no mar. Na praia, este riacho perdia profundidade e era possível atravessá-lo a pé. O caminho prosseguia, até chegar nas pedras que dividiam a Praia Braba da Praia do Morcego. Esta praia, como já falei em outra postagem, tinha este nome por causa de uma caverna que lá havia, chamada Caverna do Morcego.
Novamente a passagem da Praia Braba para a Praia do Morcego era por um caminho tortuoso por entre as pedras. Tempos mais tarde creio que explodiram algumas pedras, de modo que se tornou muito mais fácil passar da Praia Brava para a Praia do Morcego. Então, transpostas as pedras, se chegava à Praia do Morcego, de onde se subia um morro por uma trilha, que dava numa estradinha (a estradinha do Farol de Cabeçudas) e, por esta estradinha, se chagava a Cabeçudas. Dali a Itajaí se ia de ônibus, pois, mesmo gente na faixa dos 15 aos 20 anos já estava exausta para enfrentar mais uma caminhada de Cabeçudas a Itajaí.
Deste pessoal que, por uns três ou quatro anos, sempre no dia 30 de dezembro, fazia comigo a caminhada de Balneário Camboriú a Itajaí, 3 rapazes morreram na faixa dos 30 anos (um de doença congênita, um de doença contagiosa e um de acidente automobilístico). Os demais, sei onde estão, mas não tenho mais contato.Das moças, namorei com uma, mas o namoro não chegou ao casamento. As outras nunca mais vi.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Evasão Escolar e Sebastianismo

Conheci dois carregadores de malas brasileiros no exterior. Um nos EUA e um em Portugal. Conversei mais tempo com o que morava nos EUA. Estava lá há mais de uma década, tinha família e filhos estadunidenses. Não me surpreendi que ele atribuísse as coisas negativas que via no Brasil e as coisas positivas que o fizeram optar pelos EUA somente aos Governos dos dois países. Achei previsível esta visão, que atribuo a um dos desdobramentos do sebastianismo: no fundo, se tudo depende de bons ou maus governos, a felicidade só virá quando um grandioso governante assumir as rédeas do país.
Mas, esta visão sabastianista é incompatível com a democracia. Um governo que resolvesse todos os problemas de um país, precisaria esmagar a vontade daqueles que desejassem outro caminho. Também teria que tolher o exercício dos outros três poderes. Por que isso?
Uma das qualidades que o braso-americano atribuía ao país de adoção era o controle do Governo sobre a frequência de seus filhos à escola: 3 dias de falta e tinha que dar satisfações "à corte". Não sei se esta corte era um órgão do executivo ou do judiciário.
Na verdade, existe base legal no Brasil para que se adote idêntica medida. O artigo 246 do Código Penal considera crime o "abandono intelectual":
Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.
Um amigo, Juiz de Direito, em 1988, resolvera colocar em prática tal dispositivo. Mas, depois, fez um concurso para outro cargo na Magistratura e eu não soube mais os efeitos de sua medida.
Para que o art. 246 seja colocado em prática, há necessidade dos poderes Executivo e Judiciário conjugarem esforços e tudo depende, ainda, da iniciativa do Ministério Público dos Estados. A "engrenagem" deve funcionar assim: os professores, ao detectarem faltas injustificadas devem comunicar o fato à direção da escola, que por sua vez comunica ao Ministério Público. O Ministério Público pode denunciar os pais pelo abandono intelectual ou propor transação penal.
Mas não há só este caminho. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90) prevê sanções aos pais, aplicadas pelo Conselho Tutelar (artigo 129, V) quando estes não zelam pela educação dos filhos.
Enfim, o funcionamento da "maquina de fazer crianças estudarem" não depende só do "Governo", seja o da União, seja dos Estados, seja dos Municípios: depende também da comunidade, seus serviços voluntários e do poder de pressão que esta comunidade tem como conjunto de eleitores. Depende, ainda, do funcionamento eficiente de cada um dos três poderes.
Enfim, de um funcionamento de dois dos elementos do Estado: povo e governo.
Então se vai perceber que tudo segue para um mesmo lugar comum: cada povo tem o governo que merece. Ou cada povo tem o governo que constroi para si. As mudanças políticas dependem do que cada pessoa faz na sua vida pessoal e profissional. Donde se percebe que quem acha que o governo resolve todos os problemas, ou pode, ou deve resolver todos os problemas, é um sebastianista (mesmo que não saiba o que é sebastianismo).

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A Independência foi mesmo em 7/9/1822?

Há um livro chamado 7 DE SETEMBRO DE 1822 - A Independência do Brasil, de Cecília Helena de Salles Oliveira, no qual a autora diz que a proposta de se considerar o 7 de Setembro data nacional só surgiu em setembro de 1823 e só foi concretizada em 1826 (p. 22). E, mais adiante, fala em somente uma narrativa do episódio e - a meu ver - coloca em dúvida se a independência foi mesmo proclamada nesta data e local.
Para tanto, a autora buscou períodicos, discursos oficiais e cartas.
Mas faltaram as buscas à legislação.
Pela Provisão nº 23, de 20 de Fevereiro de 1823 (ver aqui o texto integral), foi autorizada uma coleta de fundos para erigir no lugar denominado Ipiranga um monumento que faça memorável o dia 7 de Setembro próximo passado, em que foi por S.M. Imperial proclamada a Independência deste Império.
O ato é assinato por José Bonifácio de Andrada e Silva.
Portanto, em fevereiro de 1823, já se considerava, oficialmente e juridicamente, o dia 7 de Setembro de 1822 como data da proclamação da independência; também se reconhecia o Ipiranga como local da proclamação e o Brasil já era denominado Império.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Monarquia Absoluta

O que caracteriza uma monarquia absoluta é a circunstância de um rei concentrar em si as três funções estatais: legislativa, executiva e judiciária, ou os chamados três poderes. É possível verificar a ocorrrência desta concentração de poderes na monarquia absoluta portuguesa, que vigorou no Brasil de 1500 a 1820. Em Portugal, o absolutismo vigorou antes de 1500 e foi até 1820. Considera-se que o absolutismo se consolidou em Portugal no momento em que não mais se reuniram as cortes, ou seja, após 1698, já que foi em 1697 e 1698 que se reuniram as cortes em Lisboa. E se considera essa consolidação porque as cortes mitigavam o absolutismo. A expressão cortes designava uma reunião de representantes dos concelhos, ou seja, dos entes políticos que hoje chamamos de municípios; estas cortes também podiam reunir o clero e a nobreza (bispos, altos homens de religião, ricos homens e cavaleiros vassalos), como foi o caso das cortes reunidas em Coimbra, no ano de 1211. No reinado de D. Afonso IV, em maio de 1349, reuniram-se cortes (presentes prelados, ricos homens, priores, abades, cavaleiros, homens bons dos concelhos) em Santarém, que apresentaram reclamações ao referido rei.
Nas Ordenações Filipinas há textos que explicitam o funcionamento da monarquia absoluta e lhe dão base jurídica. As Ordenações eram leis feitas pelo Rei, segundo sua vontade, como se vê do que seria o conceito de "poder legislativo" do Rei:
O Poder LEGISLATIVO do Rei Português:

Livro 3, Título 75, parágrafo 1 –
... porque o Rei é Lei animada sobre a terra, e pode fazer Lei e revogá-la, quando vir que convém fazer-se assim.
O conceito de Poder EXECUTIVO do Rei Português era o seguinte:
Livro 2, Título 35, parágrafo 21:
Porque nenhuma lei, pelo Rei feita, o obriga, senão enquanto ele, fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu Real poder.

O conceito de Poder JUDICIÁRIO do Rei Português era o seguinte:

Livro 3, Título 66:
Das sentenças definitivas
Todo Julgador, quando o feito for concluso sobre a definitiva, verá e examinará com boa diligência todo o processo, assim o libelo, como a contestação, artigos, depoimentos, a eles feitos, inquirições, e as razões alegadas de uma e outra parte; e assim dê a sentença definitiva, segundo o que achar alegado e provado de uma parte e da outra, ainda que lhe a consciência dite outra coisa, e ele saiba a verdade ser em contrário do que no feito for provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece Superior, é outorgado por Direito, que julgue segundo sua consciência, não curando de alegações, ou provas em contrário, feitas pelas partes, porquanto é sobre a Lei, e o Direito não presume, que se haja de corromper por afeição. (sem negrito no original)


domingo, 13 de dezembro de 2009

Tirando o Povo da Merda

Nossas elites são um caso a ser estudado. Agora estão chocadas com o último dito do Presidente Lula: Tirei o povo da merda.
A palavra merda nem sempre foi considerada palavrão ou nome feio. Nos séculos XI e XII ela constava em textos legais:
Foral de Tomar de 1174
[5º] Por merda em boca metuda em qualquer que o faça peite sesenta soldos.
(Em português atual:
[5º] O que puser esterco na boca de outrem, onde quer que se encontre pague sessenta soldos.(veja o original aqui)

Esta disposição foi incorporada nas Constituições (= ordenações, leis) de Dom Afonso III, que reinou em Portugal de 1248-1279:

Constituição 99 da merda em boca:
Estabelecido é que todo aquele ou aquela que meter a homem ou a mulher merda em boca que morra porém (1).

E, ainda, e nas Leis de Dom Dinis, que reinou de 1279-1325:

Que pena deve ter aquele que meter ou mandar meter merda em boca:
Dom Dinis etc estabelecemos e pomos por lei que todo homem ou mulher que a outrem meter ou mandar meter merda em boca que morra porém.

Com o tempo, merda foi colocada como "nome feio".
É interessante que há palavras de uso permitido e outras de uso proibido, mas com o mesmo significado: as palavras meretriz, prostituta, mulher de vida fácil são permitidas; puta é proibida. Do mesmo modo, se pode dizer fezes, esterco e até titica ou cocô; mas não pode falar merda.
Assim, nossos elites culturais, econômicas e sociais estão se deliciando em criticar a última fala presidencial.
Quem sabe ficariam menos chocadas se o Presidente tivesse dito que havia pinçado o povo das fezes...

1 -Ordenações Del-Rei Dom Duarte. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, p. 106 e 176.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Horário de Trabalho dos Desembargadores

A Casa da Suplicação era o maior Tribunal Português. Passou a ter este nome com as Ordenações Filipinas, em 1603. Em 1808 veio para o Brasil. Com a independência, foi, mais tarde, sucedida pelo Supremo Tribunal de Justiça (Lei de 18.9.1828).
Os Magistrados da Casa da Suplicação se chamavam Desembargadores (Livro 1 das Ordenações Filipinas) e o horário de trabalho era assim disciplinado:
O Regedor, todos os dias que não forem feriados, pela manhã virá à Relação, e fará vir os Desembargadores cedo, porquanto o desembargo dos feitos há de durar quatro horas inteiras ao menos, passadas pelo relógio de areia, que será posto na mesa, onde o Regedor está: o qual tempo se não gastará em práticas, ou ocupações outras, não necessárias ao ato, em que estão. (Livro 1, Título 1).

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Dinheiro Falso

O crime de moeda falsa (falsificar dinheiro, colocar dinheiro falso em circulação, guardar dinheiro falso etc - a lista está no art. 289 do Código Penal) pode ser praticado por qualquer um. Mas há tipos que tornam o processo constrangedor para quem nele atua. Uma das hipóteses mais constrangedoras é a de prostitutas cujos "programas" são pagos com dinheiro falso. Já vi meretrizes recebendo pagamento em dólares, mas o mais comum é em real. Casos de 50 reais e de 500 reais.E aí surgem os constrangimentos: para ver se o dinheiro foi mesmo pagamento de um "programa" precisa perguntar para a moça o preço unitário deste programa e até o grau de "generosidade" do cliente. É das respostas a estas perguntas que se vai ter meios para saber se a portadora de dinheiro falso realmente foi ludibriada por um cliente ou se está disfarçando de prostituição o crime de receber e passar para frente dinheiro falso.
Assim, se 50 reais pode ser um preço razoável para um programa, 500 pode parecer inverossímil, daí ficando difícil de sustentar a versão da prostituição e pendendo o fato para o tráfico de drogas ou mesmo a distribuição pura e simples de dinheiro falso.
Então, se a versão da acusada não se sustenta, o conjunto de provas é que vai levar à verdade processual.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Assassinato e Homicídio

Uma confusão muito constante de direito estrangeiro com direito brasileiro é achar que aqui existe o crime chamado assassinato (em direito penal se fala "tipo penal"). E daí a pensar que existe assassinato em primeiro, segundo ou terceiro graus é um passo. Não existe crime com este nome no Direito Penal Brasileiro.
Assassino vem do árabe "haxaxin", plural de "haxiax", fumador de haxixe. Segundo a narração de Marco Polo, os sequazes do Velho da Montanha, quadrilha de salteadores, quando deviam cometer algum crime, primeiro se embriagavam com um preparado das folhas de haxixe. (BUENO, Francisco da Silveira. "Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa", Santos, Editora Brasília, 1974, p.385).
O crime contra a vida que consiste em matar alguém se chama, no Brasil, "homicídio" (art. 121 do Código Penal), mesmo que o homicida mate depois de ter fumado haxixe. Quando se mata para roubar, o crime é chamado de latrocínio (art. 157, § 3º do Código Penal).

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

PF e Porção Individual

Quando eu tinha uns vinte anos (final da década de 70), os restaurantes finos que serviam "a la carte", apresentavam as refeições em diversos recipientes e um prato vazio para se comer. Como vinha comida em abundância (e o preço era correspondente a esta abundância), era possível que mais de uma pessoa se servisse de um mesmo pedido. Havia restaurantes que tentavam coibir esta prática cobrando um acréscimo quando se pedia dois pratos vazios.
Já os restaurantes mais simples serviam o "Prato Feito", cuja sigla era ou simplesmente "PF": vinha um prato pranto para ser consumido, com feijão, arroz, um bife duro, algumas rodelas de tomada, uma folha ou duas de alface. A quantidade de comida no PF é que ditava a qualidade do restaurante. E os "PF's" tinham um preço bastante acessível.
Pois bem, hoje, os restaurantes finos servem as chamadas "porções individuais", que nada mais são do que versões sofisticadas do velho "PF". Evidentemente que as comidas são mais chiques, os talheres, guardanapos e outros utensílios são de melhor qualidade. E o garçom é muito mais gentil e faz mais salameleques do que os garçons que serviam os "PF's" (quando o PF era servido por garçom, pois muitas vezes se pegava o prato no balcão).

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Assalto e Assalto à mão armada

Uma coisa que acho ridícula é gente "esclarecida" dando demonstrações de "esclarecimento". Mais ridículo ainda é quando o camarada vê muito filme estrangeiro, e começa a usar terminologia de outros países para o direito penal brasileiro. E tudo fica pior se o fulano lê muito livro policial estrangeiro. Aí, por se achar culto e bem informado, passa a usar uma terminologia errada achando que está abafando.
Não existem no direito penal brasileiro os termos "assalto" e "assalto à mão armada". Usar estas
expressões apenas denota ignorância e falta de informação; ou, pior, aparenta vontade de parecer informado, sem que se tenha a informação.
Assalto e assalto à mão armada são termos de uso popular, para nós, e não de uso culto. Assalto
serve para dizer que alguém deu um salto na sua frente e fez alguma coisa; e assalto à mão armada significa que alguém deu um salto com um revólver, ou faca, canivete, arco e flecha, besta ou caco de vidro na mão.
Quando as pessoas falam "assalto" me parecem que, ora querem se referir a furto, ora a roubo;
quando falam "assalto à mão armada" querem se referir a roubo somente.
Evidentemente que não se pode esperar que a bandidagem, ao realizar um roubo diga:
-"Mãos ao alto, isto é um roubo. E não facilitem, pois este roubo pode virar latrocínio".
(Latrocínio é matar para roubar).

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Barbeiros e Navalhas

Creio que me barbeio regularmente há uns 36 anos e, irregularmente, há 40. É que aos doze se é quase imberbe e é lá pelos 16 anos que começa a haver certa necessidade do barbear. Mas é aos 52 que estou mudando da lâmina para o barbeador elétrico (não sei se hoje é elétrico ou eletrônico), mas funciona à base de eletricidade.
Em uma semana de uso, o barbeador elétrico está me parecendo algo tão óbvio, que desconfio que o barbear com lâmina tem algum efeito ritualístico que o faz superar o barbeador elétrico. Talvez seja um momento de instrospecção do macho ou uma forma de exaltar a masculinidade. Só pode ser isso que dá tanta sobrevida a todo aquele artefato de espuma, lâminha, espelho, pia e água. O barbeador não exige água e se pode "fazer a barba" em qualquer lugar que tenha um espelho e a qualquer hora. O que isso tem de tão desinteressante?
Na minha cabeça, a grande mística dos cortes de barba e cabelo estava nas barbearias que frequentei quando ainda criança, em Itajaí. Era um ambiente muito interessante e agradável. Conversas engraçadas, ponto de encontro de homens e dos meninos que os adultos carregavam para lá e que, aos berros, viam seus cabelos sendo cortados. Os aparelhos caseiros de barbear ainda eram os primeiros sucedâneos das navalhas e não
produziam efeito muito melhor que elas além da possibilidade de, ao perderem o fio, serdescartados.
E a navalha? A navalha era um instrumento de briga e de barba.Soube de um homem que estava numa briga. O outro contendor enfiou a mão no bolso de trás da calça e a turma que assistia gritou: Vai, Fulano, vai que é um pente. Pois o Fulano foi e era uma navalha. Levou uma navalhada no rosto, mas sobreviveu.
Os homens que iam se barbear se sentavam na cadeira, que reclinava. O barbeiro pegava a navalha e a afiava num couro de bode, alguma coisa assim. E cortava a barba do freguês.Sempre achei aquilo interessante, mas quando tive barba que justificasse uma ida ao barbeiro, as navalhas já eram descartáveis e não tinha mais o ritual da amolação.
Hoje as barbearias já são instituições meio que do passado. Ou só comportam um ou dois barbeiros e poucos fregueses. Isto não dá mais ensejo àquela conversarada toda, que coloria os cortes de cabelo. É verdade que as máquinas de cortar cabelo eram manuais e um pouco violentas, pois cortavam alguns fios e arrancavam outros. Mas era o preço do alegre burburinho.
Ser barbeado em barbeiro, hoje, me parece algo impensável, dada à quantidade e variedade de aparelhos, láminas e barbeadores elétricos disponíveis no mercado. Já vi, inclusive, barbeadores elétricos que podem ser lavados com água.
Restaram os cabelos dos homens para ser cortados. Por isso, tenho a impressão de que devem ser muito poucos os barbeiros em atividade. Uma pena...

sábado, 5 de dezembro de 2009

Árvore de Natal



Num certo natal, há muitos anos, meu pai só conseguiu uma árvore cujos galhos estavam bastante secos. Criativo, cobriu todos os galhos com algodão para disfarçar as partes secas. E acabou gostando do que fez, adotando então a cobertura de algodão como modelo de ornamentação de árvore da natal lá em casa.
Apesar do motivo inicial, a verdade é que o algodão também tinha um efeito simbólico: representar a neve. E este efeito também era dado ao presépio, cujo telhado era coberto de gesso, branco e escorrido como se fosse neve.
Depois da morte de mau pai, mantive a tradição e continuei enfeitando a árvore com bolas, cabelos de anjo, luzes coloridas; mas antes cobria a árvore toda com algodão. Mas o presépio - que ele havia me presenteado - tinha cobertura de palhas e não de neve. É que - por ter sido o presépio um presente de meu pai, eu acreditava estar autorizado a quebrar a tradição neste ponto. O meu presépio, portanto, nunca foi coberto com algo que imitasse neve.
Tudo foi se passando assim, durante ano após anos.
Até 2003 eu nunca havia visto neve caindo. Vira gelo em 1990, quando fui a Bariloche, mas não vi neve. Em 2003 vi neve no Chile. O contato com a neve só ocorria (por óbvio) quando se ia para fora do hotel. Dentro, tudo era devidamente aquecido. Percebi, então, que a neve é muito bonita nas fotos, nos desenhos e nos enfeites natalinos. Mas o contato com a neve é desagradavelmente frio. Vestido como um repolho, com as roupas mais quentes que eu tenho, meu corpo era invadido por um ar gelado, que dava a impressão de que eu estava com febre. E roupas apropriadas para a neve só se conseguia quando alugadas, o que as deixava a dever em matéria de conforto.
Desde então comecei a perceber que o natal brasileiro, o natal a que estamos acostumados, não pode ter a neve como tema central de seus adornos. Para nós, brasileiros, enfeitar uma árvore de natal sem estar pingando de suor deve ser uma sensação muito estranha. Sair para o quintal sem camisa, ficar lá pintando ou pregando um arranjo natalino é coisa normalíssima para nós. Que difícil deve ser sair da casa quentinha e ir cortar uma árvore lá fora ou pegar alguns galhos para ornamentar a sala...
Desde então fui abolindo de meu natal os desenhos e temas relativos ao frio. Hoje coloco só alguns algodões na árvore ou uns borrifos de tinta branca para lembrar nossos antepassados europeus que trouxeram seus hábitos natalinos para cá. No presépio, nenhum resquício de neve.
Ultimamente tenho passado algum tempo imaginando como seria um Papai Noel tropical. De bermuda? Boné com protetor solar? Camiseta sem manga? Seria branco? Mulato? Preto? Índio? Talvez um dia criemos um Papai Noel com cara de gente do hemisfério sul e roupa apropriada para o clima que temos no Natal...
Nas fotos acima, a árvore que meu pai enfeitava (os dois na frente somos eu e meu sobrinho Paulo Cesar; no lado direito está o presépio, com telhado branco) e a árvore que
eu e minha esposa enfeitamos ano passado.

Morubixabas e Pajés

O que caracteriza em geral um chefe indígena é ser um fazedor da paz, é ser generoso, bom orador e ter o privilégio da poliginia. Durante a guerra, o chefe dispõe de um poder quase absoluto(1), como era o caso do Chefe Cunhambebe, dos Tamoios. O líder indígena se torna chefe somente em função de sua competência “técnica”: dons oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades guerreiras, ofensivas ou defensivas (2). Ao fazer a paz, o chefe indígena não tem uma função judiciária, pois ele não pode impor sua decisão pela força (ainda segundo CLASTRES): fracassando em reconciliar as partes, o chefe não pode impedir que a desavença se prolongue indefinidamente, com ataques violentos e outros tipos de vingança(3). Se o chefe não faz o que dele se espera, ele é abandonado pela aldeia, que escolhe um líder mais fiel aos seus deveres(4). O cacique não tem privilégios de autoridade, mas somente os de conselheiro e deve observar normas rígidas de comportamento: É comedido, não fala nem ri alto, não faz gestos bruscos, não anda apressado e jamais se põe a correr(5).
Para os índios Arara não há poder entre os homens que se estruture como possibilidade legítima de dominação ou coerção de qualquer natureza (a não ser aquela da apreciação da coletividade sobre o comportamento de cada um)(6).
Entre os índios tupinambá, os melhores guerreiros (que tinham direito a esposas secundárias) formavam o “Conselho” ao qual eram submetidas as decisões do chefe. Morrendo o chefe e sendo seu filho considerado inapto para sucedê-lo, era este “Conselho dos melhores guerreiros” que escolhia o novo chefe. Cada casa tupinambá tinha um líder; cada aldeia um chefe e havia chefias centralizadas agrupando várias aldeias(7).
Entre os Ipúrina do Juruá-Purus e os Kaigang do sul do Brasil, a caça é uma fonte decisiva de alimentação e, como a principal tarefa do líder é cuidar do bem-estar de seu grupo, dos melhores caçadores é que saem, geralmente, os homens elegíveis à chefia(8).
A chefia pode ser exercida pelo xamã (pajé ou caraíba) ou haver um chefe “político” (morubixaba) e o xamã, que é o chefe religioso. O xamã é respeitado, admirado e temido, pois só ele possui poderes sobrenaturais, só ele pode dominar o perigoso mundo dos espíritos e dos mortos. O xamã tem seus deveres, como, por exemplo, prestar atenção ao seu trabalho, dançar sozinho, não ter relações sexuais com mulheres quando exerce seu trabalho e nunca esquecer seu fumo(9). Entre os Arara, o xamã é um misto de curador, ministro de negócios das relações exteriores e gestor da base política da sociedade, fabricando as condições e controlando o funcionamento da vida social(10).

1- CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Tradução de Theo Santiago. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, pp. 46 a 51, 53, 222 e 223: 1) Faz a paz, sendo a instância moderadora do grupo; 2) é generoso, pois não se pode permitir, sem ser desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus “administrados”; os índios têm uma espécie de direito à pilhagem permanente do chefe e se reconhece o chefe “ porque ele possui menos que os outros e traz os ornamentos mais miseráveis”; entre os índios da América do Sul, quem mais trabalha é o chefe (p. 58); 3) “somente um bom orador tem acesso à chefia; o talento oratório é uma condição e também um meio de poder político”; o tema das arengas do chefe é a paz, a harmonia e a honestidade, essencialmente uma repetição de normas de vida tradicional: “Nossos avós se sentiram bem vivendo como viviam. Sigamos seu exemplo e, dessa maneira, levaremos juntos uma existência tranqüila”. (p. 171); em regra, os índios não prestam atenção ao que o chefe fala; a fala ocorre todos os dias, ao amanhecer e ao crepúsculo, estando o chefe deitado na rede ou sentado perto do fogo, pronunciando com voz forte o discurso;. 4) a poligamia em geral se dá sob a forma sororal. “Apenas um vigésimo das sociedades indígenas pratica a monogamia rigorosa. Isto quer dizer que a maioria dos grupos reconhece a poliginia e que esta é quase continental em sua extensão”. Segundo PERRONE-MOISÉS (Beatriz. “Os Mebengokre Kayapó: História e Mudança Social De comunidades autônomas para a coexistência interétnica”. In CUNHA, Manuela Carneiro da (org.) “HISTÓRIA DOS ÍNDIOS NO BRASIL”. São Paulo, Companhia das Letras: Secretaria Municipal de Cultura: FAPESP, 2ª edição, 2002, pp. 319 e 334), os Kayapó, por exemplo, são monogâmicos. Mas muitos cismas importantes na história dos Gorotire e Mekranoti (subdivisões dos Kaiapó) foram causados por questões de adultério ou rivalidade sexual.
2- CLASTRES, obra citada, pp. 90 e 223. Apesar de o chefe não ter poder, há um lugar reservado para a chefia, sendo estranho uma tribo que não tenha chefe – p. 258.
3- CLASTRES, obra citada, p. 48.
4- CLASTRES, obra citada, p. 62
5- VILLAS BÔAS, Orlando. “A arte dos pajés: impressões sobre o universo espiritual do índio xinguano”. São Paulo, Editora Globo, 2000, p. 25.

6- TEIXEIRA-PINTO, Márnio. “Ieipari – Sacrifício e Vida Social entre os Índios Arara (Caribe)”. São Paulo, Editora Hucitec Anpocs, UFPR, 1997, p. 329.

7- “Na maioria das sociedades sul-americanas, a chefia se herda patrilinearmente. Assim, levando-se em conta as aptidões individuais, o filho do chefe, ou em sua falta o filho do irmão do chefe, será o novo líder da comunidade” – CLASTRES, obra citada , p. 57. Entre os tupinambás, cada casa comportava de 100 a 500 ou 600 habitantes; uma aldeia de quatro a oito casas/malocas tem de 400 a 4.000 habitantes – pp. 89 e 104-105. CLASTRES ainda cita como exemplos de hegemonia de um chefe sobre tribos vizinhas os Takwatip (grupo Tupi-Kawahib), os Omagua e os Cocama (tupis estabelecidos no curso médio e superior do Amazonas – p. 91.
8- CLASTRES, obra citada, pp. 52-53.

9- CLASTRES, obra citada, pp. 159-160, 161-162
10- TEIXEIRA-PINTO, obra citada, p. 188

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Bandeira do Brasil 2

A bandeira do Brasil é um símbolo nacional. A palavra “símbolo” significa “aquilo que une (daí “sinfonia”, “sinopse”, “síntese” etc). E o antônimo da palavra símbolo é “diábolo”, ou seja, aquilo que separa (daí vindo a palavra “diabo”).

A bandeira do Brasil não só é um símbolo do presente, mas traz a história do país:
Segundo a tradição, o emblema dos lusitanos era um dragão verde, aplicado sobre um pano branco. Isto ocorreu nos séculos I e II a.C.
O estandarte do Condado Portucalense (ano de 1097) era um quadrado branco com uma cruz azul sobreposta. A cor azul estava na Bandeira do Reino de Portugal, de 1139 a 1385: escudos azuis tinham, em seu interior, círculos brancos.
De 1332 ou 1385 até 1651, a bandeira de Portugal era a cruz vermelha da Ordem de Cristo sobre um pano branco.
Os escudos azuis e/ou a cor azul voltam a aparecer nas seguintes bandeiras: Real Portuguesa (1500-1521), de D. João III (1521-1616), do Domínio Espanhol (1616-1640), do Brasil Holandês (1610-1654), da restauração portuguesa (1645), Real do Século XVII, do Principado do Brasil (1645-1816), nas bandeiras de Dom Pedro II de Portugal (regência e de 1683 a 1706), na bandeira de Dom João V (1706-1750), na do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve (1816-1821), na bandeira do Império (1822-1889) e na atual. A esfera azul, dividida por uma faixa branca apareceu, pela primeira vez, na Bandeira do Principado do Brasil (1645-1816), mas a esfera armilar dourada que havia na bandeira do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve (1816-1821) já tinha, em seu interior, uma esfera azul. Esta esfera armilar de ouro em campo azul simbolizava o reino do Brasil, segundo o art. 1º do Decreto Real que criou o Reino Unido Brasil, Portugal e Algarve. E a bandeira do Império tinha um círculo azul, sobre o qual estavam 20 estrelas simbolizando as 20 províncias. LUZ informa que a esfera azul com uma faixa atravessada é um velho emblema usado pelos antigos romanos como símbolo de soberania. A igreja católica também a adotou, dando-lhe uma aplicação ritual. No nosso primeiro pavilhão privativo – a Bandeira do Principado do Brasil – uma esfera armilar era carregada por uma esfera menor em azul, atravessada por uma faixa branca em curva. Esta mesma figura ornou as coroas dos reis de Portugal e as dos imperadores do Brasil, sempre na cor azul e sempre cingida de branco.
A cor amarela surge pela primeira vez na Bandeira do Reino de Portugal e Algarve e simboliza o Reino de Castela, já que Dom Afonso III se casara com a filha de Dom Fernando II, rei de Castela. Esta cor é mantida nas seguintes bandeiras: Dom João I (1385), Real Portuguesa (1500-1521), pessoal de Dom Manoel I (1495), de D. João III (1521-1616), do Domínio Espanhol (1616-1640), do Brasil Holandês (1610-1654), da restauração portuguesa (1645), Real do Século XVII, do Principado do Brasil (1645-1816), nas bandeiras de Dom Pedro II de Portugal (1683 a 1706), na do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve (1816-1821), na bandeira do Império (1822-1889) e na atual.
A cor branca esteve presente em todas as bandeiras de Portugal e do Brasil.
A cor verde apareceu, como se viu acima, entre os lusitanos, nos séculos I e II a.C.. Reaparece na bandeira de Dom João I, em 1385, na forma de cruz florenciada. O verde, na bandeira de Dom João I, era uma referência à Ordem de Avis, da qual Dom João era Mestre. Segue-se um período de bandeiras sem a cor verde, que volta na bandeira do Domínio Espanhol (1616-1640). O verde, agora novamente alusivo à Ordem de Avis, volta na bandeira de Dom Pedro II de Portugal (1683 a 1706), mas desaparece e só retorna na bandeira do Império do Brasil, de 1822. A bandeira do Império foi desenhada pelo francês Debret e o losango amarelo (atribuído à Casa de Lorena-Habsburgo, à qual pertencia Dona Leopoldina, mas que também poderia ser alusivo ao Reino de Castela, ao qual pertenceu Portugal) sobre o fundo verde (simbolizando a Casa de Bragança, de Dom Pedro I)(1) permaneceu até hoje. Permaneceu em termos, pois, como alerta LUZ, agora, já não se dizia que o losango amarelo deveria ser inscrito num retângulo verde, e sim colocado num campo verde. É assim que a nova bandeira republicana figura no Anexo I do Decreto nº 4, de 1889: com um losango amarelo solto dentro de um retângulo verde, "sem tocar os lados deste”. Esta simbologia de que o amarelo representa a Casa de Habsburgo (Dona Leopoldina) e o verde representa a Casa de Bragança (Dom Pedro I) é aceita pela família imperial brasileira .

1 - Os dados históricos sobre as diversas bandeiras de Portugal e Brasil foram retirados das obras RIBEIRO, João Guilherme C. Bandeiras que contam histórias. Rio de Janeiro, Zit Gráfica e Editora, 2003, pp. 23-91 e LUZ, Milton. A História dos Símbolos Nacionais. Brasília, Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 1999, pp. 29-30, 47, 59-60.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Liberdade de Expressão

A liberdade de expressão é um dos bens mais caros àqueles que vivem da palavra. Vivem da palavra o escritor, o jornalista, o ator, o diretor de teatro, televisão e cinema, o professor, o juiz, o membro do ministério público, o advogado, enfim, vários profissionais. Tolher a liberdade de expressão de qualquer um destes profissionais, é impedi-lo de trabalhar.