sábado, 4 de novembro de 2023
João (Joca) e Alcino
Fiz um vídeo a respeito das atividades de João Marques Brandão (Joca) - meu avô; e Alcino Marques Silveira Brandão - meu pai, nas procissões e encenações sacras em Itajaí, nas décadas de 1920, 1950, 1960 e 1970. Também faço uma breve notícia sobre as encenações sacras que fiz, em continuidades às de meu pai, entre 1978 e 1984.
Da bruxaria para a feitiçaria
Aqui não temos bruxas, mas sim feiticeiros e feiticeiras. A origem da palavra "feitiço" é africana, conforme nota de rodapé de Cândido Mendes de Almeida, nas Ordenações Filipinas - Livro 4, título 88, item 7 (o texto é de 1870):
"Nenhum lexicógrafo português dá a origem desta expressão, à exceção de Constancio, pois não supomos vir do Francês – fetiche, nem do Inglês – Fetich, por quanto conforme Bescherelle, Poitevin, Webster, e outros lexicógrafos, tanto a expressão Inglesa, como a Francesa vem da Portuguesa – Feitiço.
Constancio diz que a palavra feitiço, vem de feito e isso, por não ter examinado melhor a questão.
A expressão é Africana, e vem do termo – Mokisso, ídolo de Guiné, que os Portugueses por corrupção pronunciaram – fetisso e depois feitiço.
E como as cerimônias desse ídolo se parecerão com os sortilégios dos antigos Mágicos, ou encantadores, eles ao revés foram aplicando aos últimos o nome de feiticeiros, que se generalizou em Portugal, já na época da Legislação Afonsina na Ord. do liv. 4 t. 98 § 7.
A melhor prova dessa etimologia está na palavra Moquisia também de origem Africana, que segundo Moraes significa, virtude oculta, que influi no bem e no mal e serve de descobrir os futuros, segundo a credulidade daquelas gentes.
Os povos da Guine e os Portugueses descobriram que tinham duas divindades, uma denominada Mokisse, que tinha por sacerdotes (ganga) uma velha, a semelhança da Pythia da Grécia, dando seus oráculos em subterrâneos, como outrora, fazia trophonio.
Além desta divindade havia outra denominada Checoke, e hoje mais conhecida por Wodu ou Iseque cuja residência ou Capela era quase sempre a beira das estradas. Sua imagem além de pequena era negra, e somente de noite podiam contemplá-la os devotos, solenidade que de ordinário era seguida de transportes e de êxtases de algumas horas. Este fato ainda se repete entre nós nas casas denominadas de fortuna, onde se congregam os devotos e iniciados nascem mistérios (...).
Consulte-se Picart. – História das Religiões e Costumes de todos os povos do Globo.
Como os povos Africanos, no culto prestado a estas e outras Divindades, serviam-se também de objetos animados como serpentes, bodes, rãs, etc, ou inominados como árvores, pedras, etc., chamou-se culto de Feiticismo (...).
Moraes chama Feitiço as drogas preparadas por arte mágica para fazer criar amor ou ódio, etc.
É o equivalente do que ele também chama Moquisia.
E Feiticeiros os homens ou mulheres, que se empregam na fabrica de feitiços, usando das ervas venenosas, e outras drogas, etc.
Também significa encantador, ou fascinado de outras eras, e ainda hoje sob o titulo de magnetizadores, espirituais, etc., podem encapitular os indivíduos que se empregam nessas praticas.
Nas nações Bárbaras este oficio anda sempre anexo ao de medico ou curandeiro, e adivinhador, etc."
segunda-feira, 22 de maio de 2023
Livro 3 das Ordenações Filipinas
Introdução
Depois da disponibilização do Livro 1 das Ordenações Filipinas e do Livro 2 das Ordenações Filipinas, ambos em PDF pesquisável, aqui está o Livro 3 das Ordenações Filipinas, também em PDF pesquisável.
Trata-se de trabalho escolar de meus alunos de Direito Constitucional, efetuado entre os anos de 2004 e 2008. Desde então tenho feito uma detalhada revisão dos trabalhos e, à medida que termino cada livro, os vou disponibilizando neste blog. Graças à minha aposentadoria (aposentei-me em 30/11/2018), estou tendo mais tempo para a revisão e, pois, posso fazê-la mais detalhadamente.
A revisão deste Livro 3 levou dois anos. Não trabalho nisso todo o tempo, pois ocupo minhas horas também com outras atividades. Não contei o tempo que levei para revisar os livros 1 e 2. Suponho que levei cerca de dez anos para revisar o livro 1, pois trabalhava até 2018 e a publicação no blog se deu em 2/8/2018; e 3 anos para revisar o livro 2 (a publicação no blog ocorreu em 28/9/21). Já na revisão deste livro 3, ocupei 1 ano e 7 meses.
O trabalho de meus ex-alunos do então IBES/Blumenau consistiu em verter a versão fotográfica em PDF (que foi trazida à lume pelos alunos da Universidade de Coimbra) para texto editável. Os livros foram divididos em diversas partes e estas partes distribuídas entre os alunos. Depois eu unifiquei todos os trabalhos, os revisei, verti para PDF pesquisável (link acima) e estou publicando.
Do que trata o Livro 3 das Ordenações Filipinas?
As Ordenações Filipinas compõem-se de 5 livros. O Livro 1 trata da organização político-administrativa do Reino de Portugal, o Livro 2 trata das relações do Estado com a Igreja e dos poderes, direitos e propriedades do Rei e da Coroa. O Livro 3 trata do Processo Civil e Penal, o Livro 4 das normas civis e o Livro 5 dos crimes e penas.
As principais origens do Direito Brasileiro estão nas Ordenações portuguesas. As primeiras delas foram as Afonsinas (1446), depois vieram as Manuelinas (1513) e depois as Filipinas. Antes das Afonsinas, havia leis esparsas em Portugal, mas havia também o Corpo de Direito Civil Romano. Entre o Corpo de Direito Civil Romano e as leis esparsas portuguesas, houve, na Península Ibérica visigótica, o Fuero Juzgo; depois do Fuero Juzgo, vigorou ali o Corão e a Sharia.
As Ordenações Filipinas entraram em vigor em 1603. Eram compilações das Manuelinas, do mesmo modo que estas eram compilações das Afonsinas. Na edição das Filipinas que aqui é apresentada, são indicados por “M”, seguido da indexação, os trechos compilados das Ordenações Manuelinas e por "S" e indexação, o que estava no Código Sebastiânico. Além de “L” indicando leis extravagantes.
As Ordenações Filipinas foram revogadas aos poucos no Brasil independente: primeiro, a parte política, com a Constituição de 1824; depois, a parte penal, com o Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832; durante o século XIX, outras revogações foram ocorrendo, em geral tácitas, como se vê nas notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida. Em 1916 houve uma revogação expressa no art. 1807 do Código Civil.
A rigor, apesar de revogações tácitas e expressas, as Ordenações continuam embutidas nos textos legais vigentes e quiçá, com muito mais vigor, na praxe forense e em costumes gerais.
Os temas “Direito Brasileiro antigo”, "História do Direito Brasileiro” e "Ordenações Filipinas" têm me parecido, nas relações sociais e nos textos que leio, enfadonho para os leigos e folclórico para profissionais e pesquisadores do Direito. Os leigos, em especial historiadores e sociólogos, parecem não acreditar que estas normas foram (e, arrisco dizer) ainda são cumpridas; os profissionais do Direito parecem mais preocupados com as atualidades jurídicas.
Até agora, o mais volumoso dos 3 livros que objeto dos trabalhos escolares que revisei, foi o primeiro (155.664 palavras); depois, veio o Livro 3 (90.982 palavras) e o menor, até agora, foi o livro 2 (29.091 palavras).
Enquanto os livros 1 e 2 têm mais curiosidades históricas, pois o tipo de Estado luso-brasileiro ali regulamentado é até certo ponto diferente do atual Estado brasileiro, o livro 3 surpreende pela pouca diferença entre a processualística básica da atualidade e a do século XVII. É verdade que os livros 1 e 2 trazem muitas origens jurídicas das nossas instituições vigentes (Cartórios, Câmara de Vereadores, fatos geradores e base de cálculo de tributos etc). Mas trazem também origens de fatos que deixaram de estar nas leis mas ficaram nos costumes. Contudo, esta relação fática é subjetiva, apesar de extensa.
O livro 3 das Ordenações Filipinas é decepcionante pela sua atualidade, ou por revelar uma impressionante estabilidade das normas e práticas processuais brasileiras. São 400 anos de direito processual com os mesmos nomes, os mesmos ritos, as mesmas palavras. Não há dificuldade de entender um texto que está aí desde do Século XVI (se considerada a compilação das Manuelinas). Ali estão a reconvenção, a Oposição, a Assistência, o Agravo, a Apelação, a citação, as precatórias, a coisa julgada, a demanda maliciosa (hoje litigância de má-fé), a contradita das testemunhas, o atentado, os embargos (à execução, à arrematação e de terceiro) e outros tantos termos e procedimentos que se repetem há, pelo menos, quatro séculos. Também ali já se reconhece que três instâncias são a medida suficiente para uma causa ser apreciada.
Há, é verdade, curiosidades históricas como a adequação de ritos processuais da Monarquia Absoluta para a República, cujo melhor exemplo é a ação rescisória de hoje, então chamada de “Revista”. A Revista era um recurso dirigido ao Rei e seus requisitos eram muito parecidos com os da ação rescisória. A ação rescisória é hoje julgada pelos tribunais e a Revista era julgada pelo rei (compare-se o art. 966 do Código de Processo Civil com o Título XCV do Livro 3 das Ordenações Filipinas). Outras adequações que foram necessárias quando da transição da Monarquia Absoluta para a Monarquia Constitucional e desta para a República também podem ser percebidas com a leitura do Livro 3, já que várias jurisdições coexistiam então: a Secular (do Rei, dos Senhores de Terras - caso das Capitanias, dos Mestrados) e a Eclesiástica.
O que há para ver no Livro 3?
O que torna importante o conhecimento do Livro 3 das Ordenações Filipinas, além do conhecimento da História do Direito Brasileiro, é - a meu ver - sua atualidade, não só em termos de normas jurídicas ainda vigentes, como explicações sobre palavras ou termos jurídicos que foram trazidos até nossos dias, mas cujo conceito só é achado na norma antiga. A absolvição de instância, por exemplo, ainda é uma expressão hoje utilizada pela doutrina, mas não consta mais na legislação (ela ainda estava no CPC de 1939). Seu conceito e seu largo uso está no livro 3 (a absolvição de instância é hoje equivalente ao indeferimento da petição inicial). Há práticas até hoje seguidas (lícitas e ilícitas), que estão descritas no Livro 3. Há regras proibindo e punindo a chicana, a procrastinação do processo e a litigância de má-fé.
Um outro aspecto que torna muito interessante o Livro 3 (no caso específico do Direito Processual) é termos ali, especialmente nas notas de Cândido Mendes de Almeida, 400 anos de história do Direito Processual e uma extensa bibliografia citada.
Pelo histórico das normas, fica-se sabendo que tivemos um Código de Processo Criminal em 1832 e um Código de Processo Comercial em 1850. Além de outras leis processuais que existiram até 1870 (data da edição anotada por Cândido Mendes de Almeida).
Pela bibliografia, ficamos sabendo de muitos livros jurídicos publicados entre 1600 e 1870, bem como que muitos destes livros eram escritos em latim, de modo que, para estudar Direito, era necessário - suponho - saber latim. E também passei a cogitar a hipótese de que muitos brocardos escritos em latim, talvez não fossem latinos, mas apenas escritos em latim, muito depois do fim do Império Romano. Cabe aqui registrar que muitos dos livros mencionados nas notas de Cândido Mendes de Almeida, tanto os redigidos em vernáculo quanto em latim, estão hoje disponíveis na Internet. Ainda sobre os livros escritos em latim: só precisavam lê-los os que faziam Faculdade de Direito, pois as próprias Ordenações permitiam operadores do Direito analfabetos. Há passagens que mencionam expressamente Ouvidores Letrados e Juízes de Fora Letrados, bem como que “os Juízes ordinários das terras comumente não são Letrados” (não letrados, na linguagem de então, eram os analfabetos; a palavra “iletrado” direcionada a Juízes, só é usada nas notas de rodapé de Cândido Mendes de Almeida). Pelo menos desde o século XIX, segundo nota de Cândido Mendes de Almeida, os advogados que não eram graduados em Direito, já eram chamados de Leguleios ou Rábulas. Havia, ainda no século XIX, documentos judiciais escritos em latim (as tenções dos Desembargadores, por exemplo), só abolidos pelo Decreto de 23 de maio de 1821.
Em resumo, temos no Livro 3 e nas notas de Cândido Mendes de Almeida a história do Direito Processual Brasileiro e a origem deste direito adjetivo (seus institutos, ritos, nulidades, chicanas, deslealdades processuais, fraudes processuais, abusos, proibição de proteções processuais etc).
Livro 3 e costumes forenses
Quando eu era Professor de Direito Administrativo, ainda na década de 1980, na UNIVALI, perguntei aos alunos, após lecionar sobre o Controle Judicial da Administração Pública, se havia alguma dúvida ou observação. Um aluno reclamou que faltava conteúdo prático. Fiquei atônito, pois não me vinha à ideia o que explicar que tivesse conteúdo prático. As Ordenações me deram a resposta, especialmente o Livro 3. Há palavras e expressões na praxe forense que ficaram até hoje nos formulários processuais, cujo conceito somente é encontrado nas Ordenações. Há práticas até hoje levadas a efeito que parecem brotar de uma herança social, quiçá de uma tradição oral, mas que estão explicitadas nas Ordenações. Trabalhei como operador do Direito por 41 anos: fui advogado, professor, servidor do Judiciário e membro do Ministério Público. Vi muitas práticas, mas o que ficou na minha memória sobre o que vi não cabe mencionar, por não ter validade como estudo formal.
Há, sim, conteúdo científico na pesquisa que embasou minha dissertação de mestrado. E nela e na convivência com leigos em Direito, independente do grau de instrução, sempre foi possível perceber o desconhecimento do processo. Na imprensa, a cada matéria sobre um processo famoso, os atos processuais são explicados como se tivessem sido criados no mês anterior. É inacreditável que 400 anos de repetição dos mesmos ritos não tenham feito os não profissionais do Direito saberem o trivial a respeito do processo judicial. Ou, quando tratam do processo, parecem se basear em livros e filmes estrangeiros… Filmes e novelas nacionais padecem do mesmo problema…
Pontos que destaquei no Livro 3
Tudo que achei interessante ou digno de atenção no Livro 3, eu destaquei em amarelo. Quando havia algum ponto a esclarecer ou informar, coloquei em letras azuis. Sempre que possível mantive a grafia original, desde esta ainda hoje fosse usada ou inteligível. Por exemplo: mantive “per”, não substituindo por “por”, pois sabemos que “pela” resulta da contração de “per” + “a”. Mudei “Scrivão” para “Escrivão”, porque a grafia não mais existe, sendo incompreensível para o vernáculo atual.
A seguir, quando comentar os pontos que achei interessantes no Livro 3, não indicarei o local onde se encontram as citações, pois eles podem ser encontrados mediante o uso de pesquisa caça-palavras.
O livro 3 começa disciplinando as citações. São relacionados quatro modos: pela parte, por porteiro, por tabelião (aí incluída a precatória) e, o quarto modo, que era por édito (hoje edital). Os motivos da citação por edital eram os mesmos de hoje: estar o citando em lugar incerto e não sabido, ou ser perigosa a citação. Os éditos eram fixados nos pelourinhos e lugares semelhantes. A citação valia para todos os atos judiciais. Havia uma forma especial de citação para a rainha, os infantes (os príncipes), duques, marqueses e outros grandes do reino. Como as embaixadas eram itinerantes, as disposições processuais sobre elas eram diferentes das de hoje. Alguns privilegiados (Desembargadores do Paço, Mordomo Mor, Camareiro Mor, Alferes Mor, Aposentador Mor, Almotacé Mor e outros podiam processar as pessoas na corte e não onde estas pessoas processadas moravam. Havia proteção processual para os órfãos e viúvas. Este privilégio não valia nos casos de força (estupro - Livro 5, título 18), roubo, furto, injúria e outros malefícios não mencionados.
Os Concelhos (com “c” mesmo), hoje, no Brasil, Municípios, podiam ser citados somente com licença do rei. O clérigo não podia ser citado na Igreja enquanto celebrava o ofício divino e o leigo não podia ser citado enquanto estivesse na missa. O estudante da Universidade de Coimbra tinha um foro especial.
Os juízes árbitros eram escolhidos pelas partes para resolver contendas e os arbitradores eram os hoje chamados avaliadores. Estes arbitradores deviam jurar aos Santos Evangelhos e arbitrar sem afeição, nem ódio.
Outro ponto interessantíssimo do Livro 3 das Ordenações Filipinas são as disposições sobre as férias, que eram de três tipos: os feriados religiosos, os feriados políticos e os, digamos, sociais. Neste último tipo estavam as férias forenses de dois meses, que se destinavam à colheita do pão e do vinho: o objetivo era que as pessoas não fossem chamadas a juízo enquanto faziam a colheita. Corriam nas férias as ações de alimentos e as relativas a cativeiro ou liberdade, havendo especial menção aos casos de réus presos. Mediante acordo das partes, as ações também poderiam tramitar durante as férias para colhimento de pão e vinho.
As audiências judiciais já tinham que ser em hora certa, nas quais deveriam estar presentes, antes do juiz chegar, tabeliães, escrivães, procuradores, distribuidores, porteiro, alcaide e meirinho com seus homens. Alcaide e meirinho com seus homens deviam acompanhar o juiz até sua casa. As pessoas tinham que estar na audiência com o chapéu na mão e só poderiam colocá-lo na cabeça se o juiz autorizasse, além de virem ao juízo (já chamado de vara) “com aquele acatamento que à Justiça é devido”. Havia no Livro 3 das Ordenações determinação expressa no sentido de que os Escrivães e Tabeliães fossem pessoalmente às audiências e não mandassem seus escreventes. Quanto aos Juízes, havia recomendação expressa para que não dissessem “palavras de escândalo, nem remoque aos Procuradores, nem Escrivães, nem outros oficiais da audiência, nem à parte alguma”.
A tríade processual já estava no Livro 3 das Ordenações Filipinas: “Três pessoas são por direito necessárias em qualquer Juízo, Juiz que julgue, autor que demande, e réu que se defenda”. E já constava a determinação ao Juiz para que tentasse conciliar as partes.
A acusação era chamada de Justiça, o que até hoje continua nos costumes forenses, apesar da Promotoria Pública como órgão de acusação ter surgido no longínquo ano de 1832.
Os juros eram chamados de interesses.
Os bens se dividiam em móveis e de raiz.
A sentença já tinha que ser dada sobre coisa certa.
O agravo podia ser por petição ou por instrumento.
O Juiz deveria pagar às partes todas as perdas e custas caso não cuidasse para coibir nulidades processuais.
Havia disciplina sobre as provas produzidas no Reino de Portugal e Algarve, nos seus domínios ultramarinos e em outros Reinos e domínios que não os de Portugal e Algarves (seria uma espécie de cooperação internacional nas Ordenações Filipinas).
As partes não poderiam por nos artigos palavras desonestas, nem difamatórias. Estes artigos eram de libelo, contrariedades, réplica e tréplica. Havia também artigos de excomunhão e de incompetência. A expressão “artigos” no sentido de trechos ou componentes das peças processuais ainda foi usada no Código de Processo Penal de 1941 (art. 417, II) até 2008, sem que houvesse qualquer definição ou conceito a respeito, já que os conceitos constavam somente do Livro 3 das Ordenações (no título “Em que modos se farão os artigos”). O CPC ainda usa a expressão “articulados” (artigos 387 e 435), o que também acontece no CPP (artigos 110, § 1º e 271). As réplicas e tréplicas foram proibidas já no Código de Processo Criminal de 1832, mas continuavam a ser praticadas nos processos, pelo menos até 2018, quando me aposentei.
Já se mencionava a possibilidade de palavras inadmissíveis serem riscadas dos autos (hoje isso se tornou bastante complicado por causa dos processos eletrônicos)
Também havia penas para advogados que retinham os autos além dos prazos.
Nas notas de Cândido Mendes de Almeida já era assinalado que a falta de alegações finais não anulava o processo.
As partes podiam alegar a suspeição do Julgador, dos Tabeliães e Escrivães.
Se usa muito a palavra desembargar em lugar de despachar. É nesta palavra “desembargar” que está a origem do nome “Desembargador”.
O ofício de Procurador (para procurar em Juízo) se extinguia com a sentença definitiva. Fidalgos e Cavaleiros não podiam ser Procuradores, salvo de pessoas que com eles vivessem ou para eles trabalhassem. Quando fossem a Juízo, deveriam ir honestamente e sem assuadas, falando mansamente ao Juiz e à parte contrária, alegando com toda honestidade. Os homens poderosos em razão do seu ofício [julgadores, vedor da fazenda do rei e outros oficiais da justiça (oficial da justiça eram todos os que trabalhavam na Justiça)] também não podiam ser procuradores ou advogados sem licença especial do rei. Mas poderiam advogar e procurar em causa própria ou de parentes.
Não precisavam ser feitas por escrivão as procurações escritas e assinadas “por mão de algum Doutor, feito em estudo geral por exame”. O Livro 3 das Ordenações ainda menciona “Doutores em Teologia, ou em Cânones, ou em Leis, ou em Medicina, feitos em estudo universal por exame”. Neste ponto temos uma pista para o conceito de doutor nas Ordenações Filipinas.
As causas de valor inferior a mil réis não precisavam ser iniciadas por petição escrita e o julgador procederia “sumariamente sem estrépito”. Aí temos o processo oral nas Ordenações Filipinas.
A prisão por dívida acabou em Portugal (e no Brasil) em 1774.
A cessão do direito de ação ou de contestação a algum poderoso era proibida, pois ele teria vantagem na postulação em relação à outra parte.
A maioridade nas Ordenações (e, pois, no Brasil Colônia) se dava aos 25 anos.
Muitas provas eram feitas por juramento, em geral dos Evangelhos, sem outros elementos de prova. Não chegava a ser uma ordália, mas a prova estava relacionada ao sobrenatural.
Já se diferenciava furto e roubo, como hoje ainda se diferencia.
Usa-se muito a expressão “verdade sabida”. Já se usava a expressão “força nova” quando a demanda começava antes de ano e dia do fato a que ela se referia.
Já existiam as exceções. As dilatórias eram três:
1) contra as pessoas - 1a - contra a pessoa do autor (hoje chamada de ilegitimidade de parte), 1b - contra o Procurador (hoje defeito de representação) e 1c - suspeição do Juiz;
2) incompetência do Juízo;
3) moratória, não vencimento de dívida, não cumprimento de condição.
Também havia a exceção de excomunhão.
Havia um direito ao silêncio do réu em processo criminal, pois a parte não era obrigada a depor sobre artigos contra ela dados.
Dilação é sempre usada no sentido de prazo e não de dilatação.
Já se tentava impedir a dilação maliciosa, que se destinava a dilatar o processo.
Havia preocupação em não dilatar os processos com réus presos.
O número máximo de testemunhas era 20.
Como hoje acontece, as pessoas não podiam se recusar sem motivo a depor.
Na lista de pessoas impedidas de testemunhar, a diferença para as normas atuais é a proibição aos escravos, judeus e mouros. Há curiosa menção a “escravo branco Cristão”.
Além da prova testemunhal, havia a prova por escrituras. Havia outras provas processuais além destas, no Livro 3. As escrituras públicas ficavam sob suspeição se tivessem rasuras, entrelinhas ou riscados. As testemunhas podiam ser reperguntadas.
As partes podiam fazer provas com traslados de documentos depositados na Torre do Tombo (escrituras, doações, privilégios, forais, sentenças e outras semelhantes).
O conceito de costume - termo até hoje usado nos termos de ouvida de testemunha - está no Livro 1 das Ordenações e a palavra é mencionada no Livro 3 quando trata das audiências, anotando Cândido Mendes de Almeida que “Costume, expressão forense, indicando a razão de parentesco, amizade, ódio, que a testemunha tem com as pessoas, a respeito de quem vai depor em Juízo: e do costume disse nada, i. e., declarou que não tinha parentesco compadrado, pleitos, ódio, amizade com alguma das partes.”
A expressão “verdade sabida” mencionada muitas vezes no texto do Livro 3 é conceituada como aquilo que for provado nos autos.
O Juiz da instância superior podia condenar o Juiz da instância inferior nas custas processuais decorrentes de erro que retardasse o andamento do processo.
Em caso de lacuna das Leis (incluindo, claro, as Ordenações), deveriam ser seguidos os estilos. Os estilos tanto podiam ser práticas repetitivas na Corte (hoje chamamos processo administrativo), quanto os assentos dos tribunais (as súmulas da jurisprudência dominante de hoje), quanto as decisões dos tribunais (o que hoje chamamos de jurisprudência). Ainda em caso de lacuna, deveriam ser seguidos os costumes. Em caso de lacuna das leis, estilos e costumes, seriam seguidos os sagrados Cânones, se a matéria julgada tratasse também de pecado.Era o caso dos pecados de heresia, de apostasia, blasfêmia a Deus e santos, e de feitiçaria, por exemplo, previstos também como crimes nos títulos I a III do Livro 5 das Ordenações Filipinas. Caso a matéria a ser julgada não estivesse regulada nas leis, nos estilos e nos costumes e não fosse pecado, seria julgada segundo as Leis Imperiais (o Direito Romano). Em caso de lacuna das leis, estilos, costumes, cânones e Direito Romano, serviriam de fundamento para os julgamentos as Glosas de Accursio, desde que não fossem reprovadas pela “comum opinião dos Doutores”. Em caso de lacuna nas Glosas de Accursio, seria usada a “opinião de Bartholo (...) salvo se a comum opinião dos Doutores (...) for contrária”. Se nada disso resolvesse, o caso seria remetido ao rei, para que ele decidisse, pois o rei podia decidir segundo sua consciência: “Todo Julgador, quando o feito for concluso sobre a definitiva, verá e examinará com boa diligência todo o processo, assim o libelo, como a contestação, artigos, depoimentos, a eles feitos, inquirições, e as razões alegadas de uma e outra parte; e assim dê a sentença definitiva, segundo o que achar alegado e provado de uma parte e da outra, ainda que lhe a consciência dite outra coisa , e ele saiba a verdade ser em contrário do que no feito for provado; porque somente ao Príncipe, que não reconhece Superior , é outorgado per Direito, que julgue segundo sua consciência , não curando de alegações, ou provas em contrário, feitas pelas partes, porquanto é sobre a Lei, e o Direito não presume, que se haja de corromper por afeição.” Até porque, ainda segundo o Livro 3, “o Rei é Lei animada sobre a terra, e pode fazer Lei e revogá-la, quando vir que convém fazer-se assim.”
As sentenças podiam ser interlocutórias e definitivas. A sentença definitiva não podia dar mais do que era pedido pelo Autor e tinha que ser certa, não valendo a sentença incerta.
Se a sentença tivesse palavras “escuras e intrincadas”, o mesmo juiz poderia declarar a interpretar (as decisões sobre embargos declaratórios de hoje). Mesmo se os julgadores fossem analfabetos (não letrados), tinham que declarar e interpretar suas sentenças em caso de obscuridade.
O nome “agravo” significava que a parte fora agravada por alguma decisão judicial, ou seja, fora colocada numa situação mais grave, “foi agravado pelo Juiz”.
Nos casos criminais em que houvesse condenação pecuniária, o condenado ficaria preso até pagar a dívida.
A sentença deveria sempre condenar nas custas processuais, mas havia os isentos de custas, inclusive os pobres (a pobreza era provada por juramento).
O rei ou a coroa poderiam ser parte em processos (autor ou réu).
Se o apelante não prosseguisse na apelação e o apelado, revel ou não, não aparecesse para responder, a apelação seria tida por deserta, salvo nos processos criminais. Neste caso, “o Juiz apelaria, quando a parte não apelasse”. Mas se o Escrivão declarasse uma apelação deserta e isso não fosse verdade, perderia seu ofício.
A apelação de sentença interlocutória não era regra, mas podia ocorrer em alguns casos, como, por exemplo, quando "o Juiz julgasse, que metam algum a tormento” (tortura), “porque sendo feita a execução de tal interlocutória, já nunca mais a parte poderá reparar o dano recebido.”
O prazo para apelação era de dez dias, contados da publicação da sentença. Este prazo podia ser majorado em função da distância entre o Juízo e o lugar em que estava a parte, sendo a contagem de seis léguas por dia.
Havia um valor de alçada para a apelação, salvo se a demanda fosse “sobre jurisdição, ou Direitos Reais” (aqui entendidos como direitos do rei), “ou sobre armas e penas delas”.
Como havia diversas jurisdições, as apelações seguiam trâmites diferentes. Na transcrição a seguir, creio que o Brasil se enquadrava como terra de Prelados, ou Fidalgos, a depender de quem eram os donatários das Capitanias:
“Todas as apelações, que saírem dante os Juízes das terras das Ordens de nosso Senhor JESUS CRISTO, Sant-Iago, e S. Bento de Aviz, e da Ordem de S. João de Jerusalém, e bem assim das terras de quaisquer Prelados, ou Fidalgos, e de outras quaisquer pessoas, assim eclesiásticas, como seculares, que de Nós jurisdição tiverem, irão aos Mestres das ditas Ordens em suas terras, e aos outros Senhores em as suas, ou aos seus Ouvidores, e deles irão as apelações aos nosso Desembargadores, a que o conhecimento, segundo a qualidade dos feitos, pertencer; salvo, se as nossas Casas da Suplicação, ou do Porto estiverem no lugar, onde a sentença, de que se apela, for dada, ou cinco léguas ao redor; porque em tal caso, sem mais irem aos Ouvidores dos Mestres, ou dos Senhores das terras, irão direitamente aos Desembargadores das ditas Casas, a que pertencer. Porém, se os seus Ouvidores estiverem dentro das ditas cinco léguas, irão primeiro a eles.”
Havia recomendação expressa nas Ordenaçõe no sentido de que os que detinham jurisdição não ameaçassem nem constrangessem as pessoas a não apelarem, “Porque, segundo Direito e geral costume de nossos Reinos, em todas as doações, per os Reis feitas, sempre fica resguardado ao Rei as apelações e justiça maior, e outras coisas, que ficam ao Rei em sinal e reconhecimento de universal e supremo Senhorio.”
Depois de interposta a apelação, o Juiz não podia mais inovar no processo, pois era suspensa sua jurisdição.
As sentenças nulas nunca transitavam em julgado.
A partir do título 76, o Livro 3 passa a regular a execução das sentenças. Os executores das sentenças eram os Porteiros, Alcaides, Meirinhos, os quais não tinham jurisdição. Podia haver executores nomeados pelo rei. Já se regulava o excesso de execução e os embargos à execução. A penhora deveria ser “em tantos bens que bastem” para saldar a dívida. O prazo da execução era de três meses. Se o executado fosse Escudeiro, Cavaleiro, ou Fidalgo, ou daí para cima, ou Desembargador, esposa de algum destes, mulher fidalga, a penhora tinha que ser feita primeiro nos bens que estivessem fora de casa e só podia ser feita dentro de casa se não houvesse bens fora. Mesmo assim, não podiam ser penhorados cavalos, armas, livros, vestidos de corpos e camas dos fidalgos, cavaleiros e desembargadores, bem como de suas mulheres e mulheres fidalgas, salvo se não tivessem outros bens móveis ou de raiz (imóveis). Mas se a execução decorresse de roubos e malfeitorias, haveria a devida penhora e o necessário constrangimento, inclusive prisão, até que pagassem. Havia, ainda, outras restrições a penhoras, como, por exemplo, nos bois de arado dos lavradores. Os bens móveis ficavam em pregão (hoje leilão) oito dias contínuos e os de raiz (imóveis) vinte dias. O leilão era chamado almoeda. Havia norma também para execução do fiador.
Sobre a execução dos mandados, há uma norma interessante, por ser feita no Século XVII: “E os Oficiais, a que forem apresentados Mandados para fazerem alguma execução, os receberão logo, sem porem nisso dúvida. E sendo na cidade de Lisboa, não se escusarão com dizerem, que as pessoas, que hão de ser executadas, não são do bairro da sua partição.”
Se os advogados viessem nos embargos à execução com matéria velha, que já fora tratada no processo principal, seriam suspensos de seus ofícios e multados em dez cruzados. Há norma, também, específica para evitar que as partes façam dilações ao virem com muitos embargos.
Havia normas especiais sobre a arrematação de bens e rendas dos morgados, capelas e bens foreiros, bem como sobre a arrecadação e arrematação das coisas achadas ao vento (depois chamadas de “ao evento”; no Código Civil de 1916, invento; e com rápida menção no Código Civil de 2002 - art. 1263).
Após os processos percorrerem todas as três instâncias, cabia pedido de Revista ao Rei, desde que fosse alegado que as sentenças foram dadas por falsas provas, ou por falsas escrituras, ou por Juízes subornados, e peitados para darem as ditas sentenças, ou quando o rei, por graça especial, mandasse rever algumas sentenças, e os processos, mesmo que não fossem alegadas as irregularidades acima listadas. A revista implicava num pagamento de sessenta cruzados, salvo em se tratando de pessoa pobre. O prazo para revista era de dois meses, contados da publicação das sentenças. Se as sentenças fossem dadas na Relação da Índia, o prazo era de dois anos. Para efeito de contagem de instâncias, a primeira era a do Juiz e Ouvidor da terra. Se as três sentenças das três instâncias fossem conformes, não era concedida revista.
Há um título (96) que estipula os pagamentos dos Juízes e demais oficiais da justiça. Eles recebiam por assinatura. Conforme o ofício (hoje cargo), havia um valor por assinatura: Chanceler da Casa da Suplicação, 2 vinténs; Desembargadores dos Agravos da Casa da Suplicação, de 4 a 600 réis, conforme o ato que fosse assinado; os Juízes da Coroa e da Fazenda Real, de 40 a 100 réis; os Corregedores dos feitos crimes da Corte, de quatro a cem réis; os Desembargadores da Casa do Porto, de 100 a 300 réis; os Juízes das Justificações do Juízo de Guiné e Índia, e da Fazenda, de 40 a 100 réis; o Ouvidor da Alfândega, de 4 a 100 réis; os Corregedores, Ouvidores dos Mestrados e Provedores, de 4 a 100 réis; apesar de ser óbvio, consta que os não letrados que ocupavam algum destes cargos, não eram remunerados por assinatura; os Juízes de Fora recebiam de 4 a 20 réis por assinatura.
Quando os Desembargadores eram escolhidos pelas partes e nomeados pelo Rei para decidirem algum caso (que não fossem criminais), recebiam espórtulas. Juízes nomeados para resolverem algum caso, também eram pagos com espórtulas. Para o arbitramento do valor das espórtulas era levado em conta o trabalho do estudo, a grandeza do feito (o processo), a valia da causa e o tempo gasto.
O Terceiro Livro das Ordenações Filipinas finaliza com uma proibição das pessoas de fazerem rogo aos Desembargadores por Carta, ou sem ela.
sábado, 23 de outubro de 2021
Uma conversa sobre café
Há cerca de 4 anos comecei a tomar café de forma, digamos, mais detalhada: aprendi a moer o grão, a coar com água não muito fervente e a beber sem açúcar ou adoçante. Aprendi também que o pó de café não pode queimar quando é coado. Este problema fica muito evidente quando se trata de café expresso. O ideal é que a água esteja a 90ºC. Acho que este é um grande problema das cafeterias que frequento. Raras são as que não servem o café expresso queimado.
Se o café não queima quando da filtragem, ele pode ser bebido sem açúcar ou adoçante. E sem açúcar ou adoçante se consegue perceber os sabores reais do café e suas nuances.
Para fazer em casa o café filtrado, melhor moer o grão. Apesar de existirem variedades caras e sofisticadas de grão, para o meu gosto, basta a moagem para que se sinta o cheiro e o frescor do pó. Também ainda não descobri as diferenças entre o pó resultante dos três tipos de moedores que uso. Como acho que a melhor marca de carro é o zero quilômetro, ainda estou na fase de achar que o melhor café é o recém moído.
Não sei quais países têm tradição de café, mas o cheiro e os outros odores dos demais produtos que compõem uma mesa de café, são tão ou mais encantadores do que os sabores. E o ritual do café em família ou entre amigos, ainda é parte do prazer.
O café que mais me dá saudade é o café da tarde, aquele que as pessoas tomavam por volta das 15 horas. Em Itajaí, na década de 1960 (minha infância), havia padeiro que vendia pães nas casas por volta das 14 horas e às 15 se montava uma mesa simples de café. Ali se tomava café com leite e pão com manteiga ou geleia. Mesmo aposentado, não consegui mais remontar estas mesas de café. Os tempos são outros.
Curiosamente, até ontem achava que o grande introdutor do café no Brasil fora Francisco de Melo Palheta. Lendo, porém, um capítulo do livro História Geral da Agricultura Brasileira - de Luís Amaral, p. 179/184 pdf (ver o livro aqui) descobri que há controvérsias sobre a origem do café brasileiro, inclusive se falando na possibilidade de termos espécies nativas de café.
sábado, 9 de outubro de 2021
Cortesões
Cortesões eram as pessoas que compunham as cortes. Mas o que faziam? O título V do Livro 3 das Ordenações Filipinas dá uma relação dos cargos ocupados pelos que ficavam próximos do rei, talvez morando em palácio. As Ordenações os consideravam tão essenciais, que lhes davam o privilégio de somente serem processados na Corte. Ou seja, se alguém morasse em Salvador ou Recife, em 1680, por exemplo, e quisesse processar o Anadel Mor, teria que contratar um advogado na corte, em Lisboa e o processo tramitaria lá. Desanimador, não é mesmo?
Os cargos das pessoas que atendiam ao Rei eram, dentre outros, o Regedor da Casa da Suplicação, Presidente da Mesa do Desembargador do Paço, o Chanceler Mor, Desembargadores do Paço, Vedores da Fazenda Real, Desembargadores da Casa da Suplicação, Presidente da Mesa da Consciência e os Deputados dela, Escrivão da Chancelaria da Corte, os Oficiais da Justiça, que continuadamente nela andam, os Escrivães que escrevem perante os Desembargadores e Corregedores do Crimes e Cível dela, e haviam do Rei mantimento ordenado, Escrivães da Real Fazenda, o Escrivão da Puridade Real, os Secretários do Rei, a pessoa, que despachava com o Rei as petições do Estado, o Mordomo Mor, o Camareiro Mor, Alferes Mor, Guarda Mor, Meirinho Mor, Reposteiro Mor, Anadel Mor, Monteiro Mor, Copeiro Mor, Aposentador Mor, Coudel Mor, Porteiro Mor, Caçador Mor, Almotacé Mor, Vedor da Casa Real, enquanto andassem na Corte. E se algum dos sobreditos tivesse contenda com outro algum de semelhante privilégio, em todo caso sempre litigariam na Corte.
Se algum Desembargador da Casa da Suplicação tivesse contenda com outro Desembargador da Casa do Porto, o da Casa da Suplicação seria demandado perante o Corregedor da Corte, e o da Casa do Porto perante o seu Corregedor, seguindo o autor o foro do réu .
E o Governador, Chanceler, Desembargadores da Casa do Porto, e os Escrivães dela, que tinham mantimento do Rei, quer sejam réus, quer autores, poderão levar seus contendores à dita Casa, se quiserem perante o Corregedor dela litigar, posto que os réus sejam moradores nas Comarcas do distrito da Casa da Suplicação.
As atribuições de alguns desses cargos são mencionadas por Emanuel Pegas - neste link, volume 13, p. 152/84pdf.
sexta-feira, 8 de outubro de 2021
Embaixada
Tanto nas Ordenações Filipinas (Livro 3, Título IV), quanto em obras contemporâneas (veja--se, por exemplo, minhas postagens sobre a obra de CADORNEGA aqui, aqui e aqui), percebe-se que as embaixadas, no Século XVII, ainda não eram permanentes:
Nas Ordenações:
"1. Se algum Embaixador a Nós vier de fora do Reino com Embaixada de algum Príncipe, ou comunidade, tanto que entrar em nossos Reinos e senhorios, o havemos por seguro de qualquer malefício, que neles houvessem cometido em qualquer tempo, antes de ser enviado com a dita Embaixada; e em assim a todos os que sai companhia vierem pelo servir, e acompanhar na dita Embaixada, não sendo nossos naturais . E por tanto não sendo citados, acusados, nem demandados em nossa Corte, nem em outra parte de nossos Reinos, por tais malefícios, durando a Embaixada, e mais dez dias: salvo, acusando eles, ou cada um deles outrem, como dito é."
Em CADORNEGA, Tomo I, p. 156:
"Tomou posse João Corrêa de Souza, no ano de 1621, e logo no princípio do seu Governo, teve uma memorável embaixada, digna de individual narração. Assim que Gola Bandi soube, ser chegado novo Governador, desejando reconciliar-se com os Portugueses; e não ignorando o mau conceito, em que estes o tinham, pela sua pérfida conduta; com notável sagacidade, nomeou para embaixatriz, a sua Irmã Ginga Bandi, em cuja viveza e desembaraço, pôs toda a esperança."
Vicente M. Rangel dá interessante notícia sobre quando as embaixadas começaram a ficar permanentes:
"1. É noção difundida, embora nem sempre clarificada e aceita, a de que somente a partir do Século X V se constituíram as chamadas embaixadas permanentes."
E, enfim, estou estudando o motivo de, em 1955, a Escola de Samba Embaixada Copa Lord ter colocado "embaixada" em seu nome. A palavra "embaixada" teria o antigo sentido, o do século XVII, ou seja, de missão de uma potestade à outra? É provável.
Abelardo Henrique BLUMENBERG (Avez-Vous)- Quem vem lá? A história da Copa Lord - Florianópolis, Editora Garapuvu, 2005, pp. 16 e 17 - explica que o nome deveu-se a uma gíria carioca da década de 1950 ("copa Lord", que significava viver numa boa) e que Embaixada Copa Lord significava "vivermos numa boa nessa embaixada". O emblema da escola de samba era "um Ás de Copas significando o amor e paixão do sambista pela Copa Lord; o conjunto luva, cartola e bengala expressando a nobreza dos sambistas da escola". (foto: Jônathas Paré)
Imagens, porém, podem ser interpretadas de várias maneiras, de modo que o Às de Copas poderia ser a copa; e a luva, bengala e cartola, o Lord.
O sentido de embaixada, porém, vai aparecer na p. 64, quando se menciona um "samba de quadra" intitulado "Copa Lord, a Embaixada do Samba". Na letra do samba não aparece a palavra embaixada. Fica-se com a interpretação do título, que remete ao antigo sentido de embaixada, aquele do século XVII (missão de uma potestade à outra). Faço aqui este registro, por achar interessante que, na Florianópolis de 1955 (ano da fundação da Embaixada Copa Lord) se revivesse um significado da palavra embaixada tão distante no tempo. Ou, talvez, este significado nunca se perdera na cultura popular florianopolitana (ou brasileira, caso todo o nome da Escola de Samba - e não só uma parte - se tenha abeberado no Rio de Janeiro, como se insinua na p. 16 do livro de Avez-Vous).
(The meaning of the word "embassy" in the 17th century, in Portuguese.)