domingo, 4 de abril de 2010

O Estado Democrático de Direito num Conto 1





Depois de muito trabalho, um grupo de alunos de uma determinada Faculdade de Direito conseguiu juntar fundos para um cruzeiro marítimo. Seria uma rota histórica: partindo do Porto de Itajaí, faria-se o que, nos tempos dos descobrimentos, os portugueses denominaram “a Volta do Mar”, ou seja, cruzava-se o Atlântico em direção ao Sul da África, mais especificamente em direção ao Cabo da Boa Esperança; de lá, quase que contornando a costa, ia-se até a Ilha de Cabo Verde, onde haveria dois pernoites; dali começaria o retorno à costa brasileira. Portanto, a viagem não tinha só cunho recreativo, já que iria reproduzir parte da rota da expedição de Cabral. Assim, partindo da Ilha de Cabo Verde, o cruzeiro tocaria a costa brasileira na altura do Estado da Bahia, de onde, em navegação de cabotagem, voltaria ao Porto de Itajaí. No dia marcado, todos estavam à bordo e logo o navio passava os molhes da barra do Rio Itajaí-Açu e entrava no mar. O transatlântico era bastante confortável: visto de fora, parecia um edifício de quatro andares, com sacadas nos camarotes superiores. Dentro, restaurantes, lojas, piscinas, enfim, uma cidade flutuante. E, como tal, também tinha seu aparato de segurança: devidamente guardadas, havia uma série de armas e respectivas munições, para enfrentar eventuais problemas a bordo. Nos primeiros quatro dias de viagem, muita diversão, comilanças, bebedeiras, sol, piscina, enfim, tudo que uma viagem deste tipo permite. Na tarde do quarto dia, o tempo começou a virar e, lá pelas três horas, o vento, de uma brisa, foi tomando velocidade: era um ciclone que, sem que se conseguisse perceber a tempo, mudara de direção e entrara na rota do navio. Numa velocidade cada vez mais intensa, a tempestade fez o navio entrar pela noite sendo violentamente sacudido e com vagalhões estourando pelo convés. A tripulação não conseguia juntar os passageiros e dar-lhes um comando único, razão pela qual, pelo menos durante uns noventa minutos, o clima foi do “salve-se quem puder”.
Para o grupo de estudantes, a tarde ainda havia terminado numa agradabilíssima reunião. Moacir tinha cerca de trinta anos e era um daqueles homens que, numa reunião alegre, acaba deixando todos à vontade e facilmente toma a liderança do grupo. Foi sob esta liderança de Moacir que o grupo de estudantes se viu surpreendido pela tempestade. Naquela altura, os que menos tinham bebido, haviam consumido uma tulipa de chope. Assim foi que ficou fácil serem tomados pelo pânico. Acreditando estar vivendo um naufrágio, todos acorreram quando Moacir lhes indicou o bote salva-vidas mais próximo. Na passagem pela sala de armas (aberta em face do pânico que se alastrava), Pedro e Moema lembraram-se de que poderia ser necessário enfrentarem alguma disputa de espaço ou, mesmo no mar, sabiam de rumores sobre a bandidagem marinha, ainda hoje identificados como piratas. Entraram na sala e se apoderaram do que foi possível levar: uma sub-metralhadora Colt, automática, com rajadas de 32 tiros; duas pistolas Taurus PT 911, 9 mm Parabellum, cada qual com um carregador para 10 tiros e um Fuzil FAL M 964, 7,62 x 51 mm, automático, com capacidade para 20 tiros . Ainda chamaram Antônio e Manoel, que passavam pela porta, para ajudarem no transporte das armas e munição que conseguiram carregar. Dos cento e cinqüenta estudantes que embarcaram em Itajaí, oitenta conseguiram entrar no bote salva-vidas e ir para o mar. Exaustos que estavam e sem conseguir decidir uma direção, deixaram-se ficar à deriva, até que o dia clareasse. De manhã não viram qualquer vestígio do navio: eram eles e o mar. O bote tinha um pequeno motor, que logo foi posto em funcionamento. O sol, que brilhou depois de uma noite de tempestade, permitiu-lhes tomar a direção oeste que, afinal, era a direção do Brasil. Depois de oito horas de navegação, uma mancha negra no horizonte foi aos poucos ficando nítida, aparecendo, então o contorno da vegetação e logo uma paisagem que trouxe àqueles marinheiros de primeira viagem um pouco da sensação que os tripulantes da expedição de Cabral talvez tiveram ao ver o Monte Pascoal. Afinal, nossos náufragos também tinham terra à vista naquele momento.
(a foto acima, à esquerda, foi tirada por Jorge L. Malburg)

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