Já estava anoitecendo, quando todos foram saltando à praia, sem saber se era um continente, uma ilha ou algum pedaço de terra abençoado que o acaso lhes havia dado como salvação. Sem qualquer meio de comunicação, trataram de se instalar ali, de modo a passar a noite da melhor maneira possível. Nos dias que se seguiram, iniciaram uma rotina de sobrevivência que passava desde a dificuldade de encontrar comida, até a problemática de construir abrigos. Com tantas e urgentes preocupações e como todos tinham ficado em clima de cooperação, as armas acabaram esquecidas num compartimento do bote (então fortemente ancorado numa enseadazinha que havia na ilha). E, como o grande conhecimento exigido até então dizia respeito à construção de abrigos e busca de comida, Reinaldo (que fora militar) liderava a situação. Moema, então, contou-lhe certo dia sobre as armas, especialmente porque ninguém, além de Reinaldo, dominava seu manejo.
Reinaldo, com quarenta e cinco anos, cabelos grisalhos, era descendente de alemães. Moema tinha cerca de trinta e cinco anos, pele morena, cabelos crespos, olhos amendoados, nariz chato. Moema Mbandi de Castro carregava traços de diversos povos, era um pouco índia, um pouco mulata, um pouco visigoda. Não era só mulata porque nela havia um pouco de negra e de branco, mas aqui se a chama de mulata, porque em Moema não havia só um pouco de negro e de branco, mas também de mouro, berbere ou árabe. Mesmo porque a palavra “mulato” vem do árabe “muwallad", que significa mestiço de árabe e estrangeira. Moema era querida por todos os náufragos: sempre disposta a ajudar, a dar um conselho pessoal, a dividir uma tarefa, também não regateava sorrisos. Deixara em Blumenau marido e filhos. O marido era médico e, como se sabe, mulheres de médicos também entendem de medicina. Mas se havia no grupo de náufragos alguns que procuravam Moema para mediar pequenas dissensões, outros desentendimentos estavam prestes a acabar em violência, inclusive com uso de armas de madeira que já havia na ilha quem construísse: espadas, lanças e tacapes. Foi por causa de uma destas brigas que Moema procurou Reinaldo para falar sobre as armas.
Com algumas horas de treinamento, Moema ficou apta para manejar a submetralhadora e as pistolas. O fuzil passou a estar sempre com Reinaldo. Pedro e Antônio também se mostraram confiáveis à dupla, que aquiesceu que andassem. E, como a comunidade de náufragos já dominara a arte de achar comida e já tinha onde se abrigar, as habilidades pessoais de Moema é que passaram a ser mais valorizadas, colocando-a, então, em posição de emergente liderança. Com as armas e seus colaboradores, não só adquiriu mais respeito, como também controlava os recalcitrantes.
Dois meses se passaram e a vida entre as oitenta pessoas que saíram do transatlântico num barco salva-vidas havia entrado na sua rotina: alguns plantavam, outros pescavam, outros consertavam as choupanas de moradia, outros faziam artefatos de cerâmica (panelas, bilhas, pratos e copos), enfim, as tarefas iam se distribuindo. O grupo desorganizado e desesperado que lá chegara, formara uma pequena Vila. Moema, pelo que sabia de medicina, acabava sendo vista como enfermeira da comunidade. E, por entrar na intimidade de todos quando tratava os doentes, volte e meia era chamada para arbitrar desavenças. Assim, de uma certa forma, tinha considerável influência no dia-a-dia daqueles vilões. Mas nem todos os conflitos que Moema resolvia acabavam com uma solução que todos achavam justa. Estevão, um dos oitenta vilões, passara a coabitar com Jurema. Um certo dia, depois de violentas discussões, Estevão espancou Jurema com tal violência, que a deixou paraplégica. O caso foi submetido a Moema, que decidiu pela morte de Estevão. Reinaldo cumpriu a sentença fuzilando Estevão. Idêntica pena teve Malaquias, que furtara comida de Josefina (Josefina estava doente, com tifo). Enfim, as penas aplicadas por Moema foram ficando cada vez mais severas. O controle do uso das armas havia dado um poder maior a Moema, de sorte que ela passou a regular comportamentos. Com o excesso de poder, vieram os abusos: horário para que as pessoas se recolhessem às suas casas, proibição de reuniões não autorizadas e vedação de acesso a alguns lugares da ilha. E, como as atividades administrativas, médicas e “judiciais” de Moema lhe tomavam muito tempo, exigindo também mais tempo de trabalho por parte de Reinaldo, Pedro e Antônio, foi instituída uma doação a cargo de todos, para o sustento desta administração da ilha. E quem não cooperasse com produtos que colhia de suas plantações (vinte por cento) ou com horas de trabalho, sofreria, primeiro, mais limitações em suas andanças pela ilha e, se isto não resolvesse, poderia ser punido com a morte. Furtos, lesões corporais e pequenas trapaças eram punidas com açoites num tronco erguido no meio da Vila e os reincidentes eram mortos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário