quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Demarcação das Terras de Marinha


SOBRE O CONCEITO DE DISCRICIONARIEDADE - Há quem pense que a demarcação das terras de marinha pode ser feita quando e como o SPU/União tiver vontade de fazer. Este tipo de pensamento, vê a demarcação das terras de marinha não como o exercício do poder discricionário (porque este tem limites), mas como exercício do Sumo Império, ou seja, de atributo de monarca absoluto. O pensamento de que demarcar terras é ato meramente arbitrário e só poderia ter por base as Ordenações Filipinas: Livro 2, Título 35, parágrafo 21 - "Porque nenhuma lei, pelo Rei feita, o obriga, senão enquanto ele, fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu Real poder".  "Mutatis mutandis", o Executivo não seria obrigado por uma norma jurídica, senão enquanto ele, fundado em razão e igualdade, quiser a ela submeter seu discricionário poder. No caso da demarcação das terras de marinha, a situação é pior, por muito se assemelhar às ordenações: a norma que determina a demarcação emanou do Poder Executivo, cabendo a este suportar a norma que fez. Vejamos. 
Em 6.5.2011, por exemplo, a primeira norma que determinou a demarcação das terras de marinha após a independência (Instrução nº 348, de 14.11.1832) completava 178 anos, 5 meses, 3 semanas e 1 dia; a segunda norma (Decreto nº 4103, de 22.2.1868) completa 143 anos, 2 meses e 2 semanas. Mas, como a obrigação de demarcar data do Século XIX, tomemos aqui, por fundamento, obras daquela época.
Tem-se dado um sentido à discricionariedade que esta nunca teve, pois a se confunde voluntarismo, ou mesmo com arbitrariedade. A discricionariedade, ainda que tenha certa dose de arbítrio, só era ilimitada quando do regime absolutista, cujo cerne estava descrito nos Direitos Reais, constantes do Livro 2, Título XXVI das Ordenações Filipinas (http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/fi e lipinas/l2p440.htm). "Na monarquia portuguesa absoluta", dizia o Visconde do Uruguai em 1862, "a qual vivemos sujeitos até a Independência, não era conhecido o contencioso administrativo de hoje. Nem era necessário. Pela sua forma de governo absorvia o Executivo em si todos os poderes, ou, para melhor dizer, havia um só. Podia o rei avocar as causas que pendiam perante juízes e tribunais judiciais, e prover como entendesse conveniente. Nem qualquer autoridade ia ou podia ir de encontro ao que o governo julgasse de interesse público. Tinha este muitos meios para a fazer embicar no caminho que convinha, e era tão forte que não podia ser, e não era, contrariado. Eram os juízes seus delegados e instrumentos e não havia divisão entre o poder Judicial e administrativo, que jaziam confundidos" (SOUZA, Paulino José de. Ensaio Sobre Direito Administrativo, in VISCONDE DO URUGUAI - Editora 34, São Paulo, 2002, p. 169).
Com a independência, a Constituição de 1824 separou os poderes. E o Direito Administrativo tomou as feições típicas de um ramo do Direito contido pelo Direito Constitucional. E este Estado Constitucional só existe – segundo o art. 16 da Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789 – onde há separação dos poderes.
O alvorecer do Direito Administrativo no Brasil trouxe consigo o Conselho de Estado, cujo regulamento surgiu em 5.2.1842 (http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/legimp-28/Legimp-28_36.pdf e http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/conteudo/colecoes/Legislacao/legimp-28/Legimp-28_37.pdf). Este regulamento, em seu capítulo II, tratava dos objetos  não contenciosos (administração graciosa) e o capítulo III tratava dos objetos contenciosos (administração contenciosa). Segundo o art. 24 do referido regulamento, o Judiciário não poderia apreciar questões administrativas:
"Art. 24. Quando o Presidente de uma Província, ou o Procurador da Coroa na Corte e Província do Rio de janeiro, tiver notícia de que uma Autoridade Judiciário está efetivamente conhecendo de algum objeto administrativo, exigirá dela os esclarecimentos precisos, bem como as razões, pelas quais se julga com jurisdição sobre o objeto.
Art. 25. Se forem consideradas improcedentes as razões, em que a Autoridade judiciária firmar sua jurisdição, ordenará o Presidente, ou o Procurador da Coroa, que cesse todo o ulterior procedimento, e sejam citados os interessados, para em prazo razoável deduzirem seu direito.
Art. 26. Findo o prazo, se o Presidente entender que o negócio é administrativo, assim o resolverá provisoriamente, remetendo todos os papéis a respeito dele, com a sua decisão, à Secretaria da Justiça.
Se porém entender que o negócio não é administrativo, à vista dos novos esclarecimentos que tiver obtido das partes, ou da mesma Autoridade judiciária, declarará que não lugar o conflito, e que continue o processo no Foro judicial."

Vê-se, portanto, que nosso Direito Administrativo já nasceu sob a preocupação de afastá-lo do Judiciário. Com o tempo, foi-se definindo – ao longo do século XX - que o conteúdo discricionário dos atos administrativos, ou seja, seu mérito, não estava sujeito ao controle jurisdicional. Mas de onde veio essa ideia de mérito do ato administrativo e sua discricionariedade? Exatamente da ideia de administração graciosa. Voltemos ao Visconde do Uruguai: "A administração graciosa, atributo e instrumento essencial do poder Executivo, procede discricionariamente, e com arbítrio; o que não quer dizer que o seu poder é absoluto, porquanto tem por limites as leis e os direitos" (obra cita, p. 134). Diz-se 'graciosa' "para indicar que toda concessão é puramente obra de graça, de boa vontade" – nota de rodapé, citando Vivien. Atos de administração graciosa na França, segundo Adolfo Chauveau (citado por Uruguai) seriam, por exemplo, as licenças ou atos de permissão ou tolerância (obra citada, p. 135).
Percebe-se, portanto, que quando a União permite que particulares utilizem seus bens (fosse no século XIX, seja com base no art. 64 do DL 9760/1946), pratica ato de administração graciosa, hoje chamado de ato discricionário. A discricionariedade, portanto, só ocorre quando se trata de administração graciosa, ou seja, quando – no dizer de Uruguai – há restrição a interesses e não a direitos (p. 136). Logo, discricionariedade é ato de graça, ato que a administração pode ou não praticar, pode praticar de um modo ou de outro, dentro do leque de opções que lhe dá a lei.  
Portanto, como se viu acima, a administração graciosa, mesmo no século XIX, estava limitada pela lei e pelo direito. Vejamos o que dizia o Visconde de Uruguai: "Pelo direito administrativo francês o excesso de poder ou a ilegalidade constitui contencioso, ainda mesmo quando se dá em matéria administrativa graciosa. O excesso de poder, em sentido geral, é o fato de tomar a autoridade administrativa uma decisão ou praticar um ato excedente das atribuições marcadas pelas leis. Se a autoridade (…) desnatura, sem invasão, os poderes que lhe são confiados, há excesso de poder propriamente dito. Tudo porém constitui ilegalidade e excesso de poder no sentido geral" (ob. cit., p. 145).

No tocante às terras de marinha, o que é discricionário – já se disse acima – é a permissão de utilização por particulares. Mas a conservação de tais terras – e demarcá-las faz parte de sua conservação – é ato vinculado, é obediência – hoje – ao comando do art. 23, I da CRFB. Logo, hoje e no século XIX, não demarcar terras de marinha era e é abuso de poder, porquanto não demarcar é abandonar; demarcar terras da União não é interesse dos ocupantes, mas sim interesse da coletividade, pois é conservação do patrimônio público. Aqui convém voltar ao século XIX, desta vez com a notável Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas.
No art. 1332  da Consolidação das Leis Civis (pp. 772-773 da 3ª edição – 1875), já consta que as coisas do uso público não prescrevem em tempo algum. Mas Teixeira de Freitas, na nota 14, alerta que se as coisas de uso público são imprescritíveis, não o são do domínio do Estado. Na época, as terras de marinha eram coisas do domínio do Estado, segundo o art. 52, § 2º da referida consolidação (p. 53). Logo, a não demarcação das terras de marinha era abuso de poder, porquanto implicava em abandono dos bens do Estado, colocando-os sob risco de prescrição. 
Percebe-se, portanto, que, no século XIX, não demarcar terras de marinha era abandono, com risco de prescrição aquisitiva, logo, abuso de poder, que tornava contenciosos os atos então de administração graciosa. Hoje, a não demarcação implica em não conservação do patrimônio público (seja pelo abandono da terra, seja pela não cobrança das taxas, seja pela possibilidade de uso indevido de tais terras – com infração de leis ambientais, por exemplo), o que é uma ilegalidade e um abuso de poder (art. 23, I da CRFB), descaracterizando tal demarcação como discricionariedade da administração pública. Hoje, é verdade, as terras de marinha são imprescritíveis (DL 9760, art. 200; CRFB, artigos 183, § 3º e 191, parágrafo único). Ainda assim, a falta de demarcação implica também em apossamentos indevidos e transgressão às regras ambientais.

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