domingo, 6 de julho de 2025

Escravos e Cativos nas Ordenações Filipinas

        As expressões “escravo” e “cativo” não tinham, em geral, o mesmo significado no Livro 4 das Ordenações Filipinas (acesse a versão integral aqui). Não é fácil estabelecer uma distinção clara entre “escravos” e “cativos” a partir das Ordenações. De modo geral, pode-se dizer que, nas Ordenações, “cativos” são os prisioneiros de guerra portugueses e “escravos” são as pessoas que prestam serviços sem correspondente contraprestação financeira ou material. As pessoas que vieram ao Brasil na condição de escravos, provavelmente foram em algum momento cativos, ou seja, prisioneiros de guerra na África, antes de virem para o Brasil. Pelo menos esta condição de “prisioneiros de guerra” é fartamente mencionada no livro História Geral das Guerras Angolanas, do qual tratei extensamente em outras postagens (ver aqui, aqui e aqui). Instrutiva notícia sobre o comércio de pessoas entre Brasil e África pode ser encontrada em FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras – Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.

        “Cativos”, nas Ordenações Filipinas eram, segundo Cândido Mendes de Almeida, em nota de rodapé do Livro 1, os “Portugueses apresados nos Estados Muçulmanos da Costa do Mediterrâneo, e de Marrocos”. Muitas das multas previstas nas Ordenações, se destinavam ao resgate destes cativos, havendo até um Ofício (hoje chamaríamos “cargo público”) destinado a arrecadar estas multas: era o Mamposteiro-mor, a quem cabia a “arrecadação de todas as rendas que tinham por fim o resgate dos cativos, na Costa Setentrional d'África e Marrocos. Havia um em cada Diocese, e constituía um Juízo, extinto pela L. de 4 de Dezembro de 1775. As rendas que entravam para o cofre dos Resíduos tinham esse destino, isto é, o resgate.” (...) “Tendo os Mamposteiros deixado de existir pela L. de 4 de Dezembro de 1775, passando suas atribuições para os Provedores, todas as multas e imposições destinadas aos cativos foram cobradas pela Fazenda Pública, até que cessando o cativeiro mourisco, tiveram elas diferentes destinos

        No Livro 2 das Ordenações Filipinas, há outra nota de rodapé explicando o significado de “cativos” naquele contexto:

Cativos. Entre Cativos e escravos faz diferença a legislação antiga.

Por Cativos se entendia o nacional que os Corsários Barbarescos aprisionavam, e detinham em servidão, e que eram resgatados pelo Governo e particulares.

Criou-se para esse fim uma renda administrada por um funcionário, instituído – Mamposteiro. Haviam Mamposteiros-mor e pequenos, aos quais se deu Regimento em 11 de Maio de 1560.

Tanto uns como outros foram abolidos pela L. de 14 de Dezembro de 1775 §§ 1, 2 e 14, passando suas atribuições para os Provedores das Comarcas.

Tendo cessado as correrias dos Barbarescos, desapareceu a necessidade desse resgate, e do imposto denominado da Redenção dos Cativos.

Vide sobre esta instituição, Borges Carneiro – Direito Civil de Portugal liv. 1 t. 3 §§ os que 43.”

        No livro 3 das Ordenações Filipinas, era considerado ofensivo dizer a alguém que era cativo: “Item, todo aquele, que difamar outro sobre o estado de sua pessoa, como se dissesse, que era seu cativo, liberto, infame, espúrio, incestuoso, Frade, Clérigo, ou casado, e em outros casos semelhantes a estes, que tocarem ao estado da pessoa, de qualquer qualidade que a causa do estado seja, pode ser citado para vir citado ao domicílio do difamado, que o manda citar

        No livro 4 das Ordenações Filipinas se menciona a possibilidade de alguém que tenha um mouro cativo ser obrigado a vender este mouro para resgatar um cristão cativo em terra de mouros. Também se contempla a hipótese do resgate não ser feito por motivo do cristão cativo morrer ou se tornar “elche”. Elche era o apostata, arrenegado, o Cristão que se tornou Mouro.

        Há uma nota de rodapé no Livro 4 em que se discute se a liberdade dada aos índios no Brasil e na Ásia deveria ter idêntico entendimento quanto aos indígenas de Angola. Nesta nota se observa também que, enquanto estavam em Angola, os que viriam a ser escravos, ainda eram chamados de cativos, provavelmente por ostentarem a condição de prisioneiros de guerra; interessante também notar que o Brasil era designado por “Estado”:

Pelo que respeita à liberdade dos Índios da Ásia existe o Al. de 2 de Abril de 1761 declarando que sendo batizados ficariam hábeis para todos os empregos, sendo preferidos aos estranhos; não se devendo trata-los por negros ou mestiços. 

Sobre a liberdade dos indígenas de Angola existe a Carta Régia de 5 de Dezembro de 1613, cuja integra não conhecemos.

 Mas na Collecção de Justino vem o seguinte transunto: sumpto   r

«Por Carta Régia de 5 de Dezembro de 1613 foi determinado, a instâncias do Procurador-Geral dos Jesuítas,  que o Desembargo do Paço consultasse se era justo observar-se em Angola a liberdade dos Índios do Brasil

Parece que esta súplica não foi atendida, por isso que o tráfego de Africanos continuou com o aplauso ou tolerância da Metrópole.

Por esta causa em em 18 de Março de 1684 se expediu um Alvará contendo o Regimento da ordem com que se haviam de embarcar os Negros cativos de Angola para o Estado do Brasil, posteriormente alterado pelo Al. de 22 de Janeiro de 1810.

Em 3  de Março de 1741 expediu-se outro Alvará impondo a  pena de marca de ferro em uma das espáduas aos Negros que se achassem nos Quilombos.”

        Em nota do Livro 4, também se vê qual o sentido principal da palavra “cativos” nas Ordenações: “Tirar cativos, i.e., resgatar, remir Cristãos, presos ou escravizados por Maometanos e Mouros.” 

       Outro ponto interessante era a obrigação (sob pena de deserdação) dos filhos em remir eventual cativeiro dos pais, ou dos pais em remir o cativeiro dos filhos (no caso, cativeiro junto aos Maometanos e Mouros).

        O livro 5 das Ordenações Filipinas menciona também várias vezes a palavra cativo, mas isso será objeto de outra postagem quando da análise de tal livro.

    Enfim, pela linguagem das Ordenações Filipinas, alguém poderia ser cativo sem ser necessariamente escravo e alguém poderia ser escravo sem ter sido cativo (ou seja, sem ter sido prisioneiro de guerra).


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