quarta-feira, 31 de dezembro de 2025

As Justiças no Brasil Colônia




   O Sistema Judicial no Brasil colônia era aquele normatizado nas Ordenações Filipinas (nos primeiros cem anos da colônia, vigoraram as Ordenações Afonsinas e as Ordenações Manuelinas). A jurisdição não era universal, pois havia os Juízes de Fora (nomeados pelo rei), os Ouvidores (juízes nomeados pelos senhores de terras - que, no Brasil colonial, eram os donos das Capitanias, quando elas eram privadas), os Juízes Eclesiásticos (que decidiam questões religiosas, que muitas vezes se confundiam com as seculares - crimes que eram considerados também pecados), os Juízes Ordinários e os de Vintena, que eram eleitos pelos homens bons das cidades, vilas e lugares. Acima destes Juízes, estavam os Desembargadores. Eles atuavam na instância superior. A Casa da Suplicação era o mais importante Tribunal do Reino; mas as Decisões da Casa da Suplicação podiam ser reformadas pelo Desembargo do Paço. Havia também as Relações, que julgavam apelações. A Relação da Casa do Porto é mencionada nas Ordenações, mas havia outras, como a de Salvador, criada em 1609. Nestas postagens tenho me atido ao que consta no Livro 4 das Ordenações Filipinas, ou em outros livros das Ordenações Filipinas. Mas, para quem tiver interesse em conhecer uma abordagem sociológica do Sistema Judicial no Brasil Colônia, há uma obra muito interessante: SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial - A Suprema Corte da Bahia e seus Juízes - 1609-1751. Tradução   de Maria Helena Pires. Martins, São Paulo - Perspectiva, 1979. 354 p. A obra trata da Relação da Bahia, que era um tribunal de instância superior. A denominação “Suprema Corte da Bahia” certamente foi utilizada para melhor compreensão do leitor estadunidense, mas o nome oficial sempre foi “Relação”.

Nesta postagem darei ênfase ao que consta sobre o sistema judicial no Livro 4 das Ordenações Filipinas.

Boa parte da organização das justiças no Brasil Colonial está no Livro 1 das Ordenações Filipinas; no livro 2 há normas principalmente sobre as competências das Justiças Seculares em relação à Justiça Eclesiástica; o livro 3 trata do processo, mas também cuida da organização das justiças. O Livro 5 ainda está em verificação e será objeto de estudo no futuro.

Pelo texto do Livro 4, percebe-se que nem sempre a atuação de um Juiz estava vinculada a um processo. Assim, havia a hipótese de se pedir ao juiz que nomeasse - entre os homens bons - um árbitro de preço, caso comprador e vendedor não chegassem a um acordo sobre o preço do objeto da compra e venda. Estes homens, para receberem fé ( = credibilidade), teriam que fazer juramento dos Evangelhos. Mas o Juiz podia arbitrar com estes homens bons.

Uma outra situação era a consignação de preço, que neste caso era feita perante o Juiz Ordinário.

Os éditos do Juiz eram fixados no Pelourinho e em outros lugares. Os éditos eram o que hoje chamamos de editais.

Havia - pelo menos em Lisboa - Juízes do Cível.

Muitas vezes os Juízes compunham juntas de julgamento, atuando com vereadores: era o caso, por exemplo, das compras e vendas de escravos Mouros: “E se o comprador e o Senhor do Mouro se não concertarem no preço, onde houver dois Juízes, eles ambos com um dos Vereadores…”.

Os Juízes, bem como outros oficiais sofriam algumas vedações: 


Os Corregedores das Comarcas e Ouvidores dos Infantes, Mestres, Prelados, Condes, Capitães, e de quaisquer Senhores de terras, que forem postos em alguma Comarca, Cidade, Vila, ou em algum outro lugar, e os Juízes temporais, e aqueles que pomos em algumas Cidades, ou Vilas, sem limitação de tempo certo, durando o tempo de seus Ofícios, não poderão fazer casas de novo, nem comprar, nem aforar, nem escaimbar, nem arrendar bens alguns de raiz, nem rendas algumas, nem poderão receber doação de nenhuns bens móveis, ou de raiz, que lhe seja feita per alguma pessoa de sua jurisdição; salvo se for de seus ascendentes, ou descendentes, ou transversais dentro  no segundo grau inclusive, contado segundo Direito Canônico.

E esta mesma defesa se entenderá nos Oficiais, que com eles andarem, assim como Meirinhos, Chancereis, Escrivães, que forem postos per tempo certo. E qualquer, que o contrário fizer, haja por pena, que o contrato seja nenhum; e tudo aquilo que per bem dele receber, fizer, ou houver, seja perdido e confiscado para nossa Coroa.

E isto não haverá lugar nas casas, que alugarem para morar no tempo, que durarem em seus Ofícios, porque tais alugueres e arrendamentos poderão licitamente fazer; nem haverá lugar, quando repairarem as casas, que tinham, antes que fossem Oficiais. 

1. Outrossim não poderão usar de mercadorias, nem comprá-las para revender[1], nem comprar fiado, nem receber emprestado de pessoa alguma, que seja de sua jurisdição, na terra, ou lugar, onde tiveram os Ofícios[2]. E o que o contrário fizer, perca toda a mercadoria, que contra esta defesa comprar, e o que receberem emprestado, pague a quem lho emprestou, e outro tanto para a Coroa de nossos Reinos.

 

[1] - Esta proibição foi reproduzida no Código Criminal art. 148 desta forma:

«Art. 148. Comerciarem diretamente os Presidentes, Comandantes de armas das Províncias, os Magistrados vitalícios, os Párocos e todos os Oficiais de Fazenda dentro do distrito, em que exercerem suas funções, em quaisquer efeitos que não sejam produções dos seus próprios bens.

«Penas - de suspensão do emprego por um a três anos, e de multa correspondente à metade do tempo.

«Será, porém, permitido a todos os mencionados dar dinheiro a juros, e ter parte por meio de Ações nos Bancos e Companhias Públicas, uma vez que não exerçam nelas funções de Diretor, Administrador ou Agente, debaixo de qualquer título que seja.»

[2] Hoje esta disposição se acha substituída pelo art. 149 do Código Criminal desta forma:

«Art. 149. Constituir-se devedor de algum Oficial ou Empregado seu subalterno, ou dá-lo por seu fiador, ou contrair com ele alguma outra obrigação peculiar.

«Penas -de suspensão do emprego por três a nove meses, e de multa de cinco a vinte por cento da quantia da dívida, fiança ou obrigação.»”

Dentre as restrições aos Juízes, estava a proibição de serem rendeiros (Título XXV):

“Defendemos que Provedor algum, nem Contador da Comarca, Juiz dos Órfãos, Ta­belião do Judicial, Escrivão dos Órfãos, ou das Câmeras, nem outros Escrivães, de qual­quer qualidade e de quaisquer Ofícios que sejam, nem Meirinhos, ou Alcaides possam arrendar alguma renda nossa, nem de Fi­dalgo algum, ou de Senhor de terras, que as de Nós tenha, nem de Comendador, nem de Prelado. Nem aceitem feitorias, nem procurações de algum dos Ren­deiros das ditas rendas, nem dos se­nhores delas, para lhes feitorizarem, procurarem, requererem, ou solicitarem coisa alguma das ditas rendas, na Comarca ou lugar onde forem Oficiais, e poderem usar de seus Ofícios, sob pena de os perderem, e pagar cada um vinte cru­zados, a metade para quem os acusar, e a outra para os Cativos.”

  Além da Justiça Secular (hoje chamamos estatal) havia a Justiça Eclesiástica. Esta Justiça Eclesiástica ainda hoje existe, mas ela não disputa jurisdição com a justiça estatal, como acontecia na vigência das Ordenações. Na vigência das Ordenações, caso o processo envolvesse algum clérigo, a competência seria da justiça eclesiástica, para a qual os autos seriam remetidos (Título XVI). 

Já havia menção a Juízos Especializados no Livro 4, como, por exemplo, os Juízes dos Órfãos (Título XXXIV).

Quando um mancebo (hoje denominado empregado) causasse dano ao seu amo, este poderia pleitear reparação tanto perante um juiz, quanto perante homens bons (Título XXXV). Outras causas (sobre propriedade de sesmarias, por exemplo), podiam ser julgadas tanto pelos almoxarifes quanto pelos juízes (Título XLIII).

Os casamentos não adquiriam existência legal por uma solenidade perante um órgão estatal, mas sim perante a Igreja. Havia contratos de casamento destinados a regular os dotes e o regime de casamento, mas eram pactos antenupciais. As provas do casamento eram feitas com documentos da Igreja, ou com justificações no Juízo Eclesiástico (Título XLVI). Mesmo após a independência, a legislação brasileira (Decreto de 3/11/1827) referendava as disposições do Concílio de Trento e das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e determinava seu cumprimento pelos Párocos. 

Os juízes não podiam ser depositários:

Defendemos a todos os Corregedores, Juízes, Meirinhos, Alcaides, Tabeliães, Escrivães de nossos Reinos, e a todos os Oficiais da Justiça e da Fazenda e da Governança das Cidades e Vilas, de qualquer qualidade que sejam, posto que de maior condição que os sobreditos, que não recebam per si, nem per outrem, nem per modo algum hajam à sua mão, ou poder, dinheiro, nem outra coisa, que per seu mandado, ou de qualquer outro Oficial se houver de consignar, ou depositar[1]. E fazendo o contrário, sejam privados dos Ofícios; e nunca mais os hajam, e paguem em dobro outro tanto, quanto receberem, a metade para quem os acusar, e a outra para nossa Câmera, e seja degredados um ano para África[2].


1. E porque algumas vezes os Corregedores e Juízes, ou outros Oficiais mandam consignar dinheiro, ou outra coisa em mão de algum homem bom, e depois lho pedem emprestado, ou per outro algum modo, de maneira que o preço, ou coisa depositada, que não podiam receber em consignação, vêm-no depois a receber da mão daquele, a que foi entregue, como a homem bom, e o convertem em seus próprios usos: querendo Nós a isto prover, mandamos, que em este caso esse homem bom, em cuja mão foi consignado o preço, ou por qualquer outra coisa, não se possa escusar, por dizer que o entregou ao tal Juiz, Corregedor, ou Oficial, mas seja obrigado a responder por ele, e entregá-lo a quem com direito deva ser entregue. E não o entregando do dia, que lhe for mandado, a nove dias, seja preso, e não seja solto, até que o entregue.

[1]Consignar ou depositar.

«A palavra depósito, diz Coelho da Rocha, toma-se umas vezes na significação de contrato; e outras objetivamente pela coisa depositada.

«Ainda que uma pessoa prometa guardar a coisa de outrem; em quanto a não recebeu, não há depósito, mas sim outra espécie de contrato.»

No § 783 diz:

«O depósito propriamente dito, é o contrato, pelo qual uma pessoa dá a guardar uma coisa móvel à outra, que se obriga a restituí-la, quando pelo deponente lhe for pedida.»

O depósito pode ser voluntário, ou necessário. O segundo resulta algumas vezes do caso de incêndio, roubo, naufrágio, ou qualquer acidente extraordinário, e também se julga tal em relação aos efeitos dos passageiros ou hóspedes, que se acolhem às hospedarias, etc.

Vide T. de Freitas – Consol. art. 430 nota (1), importante, e que convém consultar.

Se o depósito é de coisa litigiosa, chama-se sequestro. É o depósito judicial, mas o nome de sequestro se aplica de ordinário aos depósitos de bens de raiz.

Também o sequestro pode ser voluntário, quando os litigantes concordam no depósito, e na pessoa do depositário, ou ex-ofício.

Vide Caminha – de Libellis ann. 12 n. 2 e 11.

[2] As penas desta Ord. foram substituídas pelas do Código Criminal art. 146, que assim dispõe:

«Art. 146. Haver para si direito ou indiretamente, ou por algum ato simulado, em todo, ou em parte, propriedade, ou efeito, em cuja administração, disposição, ou guarda deva intervir em razão de ofício; ou entrar em alguma especulação de lucro ou interesse relativamente à dita propriedade ou efeito.

«Penas – de perda do emprego, prisão por dois meses a quatro anos, e de multa de cinco a vinte por cento da importância da propriedade, efeito, ou interesse da negociação.

«Em todo o caso a aquisição será nula.»

Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Phebo – Dec. 89, e Almeida e Sousa – Acç. Sum. to. 1 pag. 144. 

A doutrina (= autores de livros sobre dogmática jurídica) continha reclamação sobre excesso de processos:

O terceiro, possuidor de coisa litigiosa, ignorando o litígio, nem tendo razão para saber, deve ser citado e sumariamente ouvido em processo da própria execução, na conformidade da Ord. deste liv. t. 10 § 9, a qual segundo refere T. de Freitas na Consol., art. 926 nota (4), não é execcutada no foro. Eis suas palavras: «Nossos Juízes, não obstante essa legislação tão expressa, tão justa, mostram-se unicamente escrupulosos em tais execuções contra terceiros, que (dizem eles) não foram ouvidos nem condenados; de modo que acumulam-se processos sobre processos, sem a menor necessidade.»

Jurar ou dar fé significam a mesma coisa”, consta em nota de rodapé (Título LXXIII).

Havia pontos no Livro 4 das Ordenações que se menciona “arbítrio do Juiz”, “arbítrio de bom Juiz”, mas estas expressões devem ser entendidas no respectivo contexto.

Os soldados podiam ser sentenciados pelos respectivos capitães ou por juízes: “O que se entenderá, quando o seu Capitão, ou o Juiz, que a sentença der…” (Título LXXXIII).

Havia os Juízes da terra, que eram os eleitos pelos homens bons (Título LXXXIV).

O direito de herança poderia ser prejudicado por sentença do Juízo Eclesiástico (nota de rodapé - Título XCIV).

Havia uma previsão nas Ordenações de fazer “residências” na gestão dos Juízes. Em nota de rodapé, consta que Residências - Era outr’ora uma sindicância sobre o proceder do Magistrado, durante o tempo que exercia o seu cargo.”. O texto do Livro 4 das Ordenações sobre “residências” é o seguinte:

 13. E porque o Juiz dos Órfãos e mais Julgadores, que fazem partilhas, tenham cuidado de fazer os ditos sequestros, mandamos que em suas residências se pergunte particularmente, se os fizeram nos casos acima declarados, e não os fazendo, se lhes dará em culpa nas ditas residências. E os ditos sequestros se não levantarão, posto que as partes o requeiram, com se oferecerem a dar fiança
(TITULO XCVI).

Um Juiz poderia ser auxiliado por outro, não havendo menção a Juiz Substituto. Mas, em nota de rodapé, vê-se que a ordem de substituição e as regras de substituição mudaram, no Brasil Imperial, mas mudaram pouco, em relação com o que se tornaram no século XX (Título XCVI):

25. E vindo alguma das partes com suspeição ao Juiz das partilhas, sendo na cidade de Lisboa, o Juiz dos Órfãos, ou outro Julgador, a que a suspeição se puzer, tomará por Adjunto[1] para o ajudar a proceder, e para determinação das dúvidas, outro Juiz dos Órfãos da mesma Cidade, ao qual se não poderá por suspeição alguma; e nos outros lugares do Reino, quando for posta suspeição aos Juízes dos Órfãos, ou a outros Julgadores, a que algumas partilhas forem cometidas, ou as fizerem por razão de seus Ofícios, tomará cada um deles por Adjunto o Juiz de Fora, se o no lugar houver, e não o havendo, tomará um dos Juízes Ordinários, que seja mais sem suspeita.

E sendo o Juiz de Fora juntamente Juiz dos Órfãos, tomará por Adjunto[2] um dos Vereadores do tal lugar, que seja mais sem suspeita[3]. E uns e outros procederão nas ditas partilhas com os ditos Adjuntos, até de todo se acabarem, sem aos ditos Adjuntos se poder pôr suspeição alguma.

[1] Tomará por Adjunto.

O Av. n. 522 - de 20 de Outubro de 1837 declarou que neste caso se deverá observar o seguinte:

1º - Quando for suspeito o Juiz dos Órfãos, poderá tomar por Adjunto o Juiz Municipal do respectivo Termo, ou o Juiz de Direito, se no mesmo Termo se achar.

2º - Quando o suspeito for o Juiz Municipal, ou o Juiz de Direito, deverá qualquer deles tomar por Adjunto o Juiz de Órfãos do Termo, não podendo ser o Juiz Municipal Adjunto do Juiz de Direito, nem vice-versa., visto que já conforme o direito ambos devem intervir no processo, sendo um o preparador, e o outro o Julgador a final.»

O Av. n. 400 - de  24 de Setembro, de 1838 declarou que quando o Juiz de Órfãos se der de suspeito, não procede a presente Ord., nem o Av. n. 522 – de 1837 por ser só relativa ao caso de vir alguma  das partes com  suspeição, por se evitar no processo sumário dos inventários e partilhas a demora do incidente, devendo na questão em vez de dar-se o Juiz por  suspeito, observar-se as disposições dos Avs. de 11 de Novembro de 1833, e de 14 de Junho de 1834, o que está de acordo com as disposições da Ord. do liv. 1 t. 97 § 8, e liv. 3 t. 24 § 1.

Os Avs. de 1833 e 1834 declaram que as Câmaras Municipais nestes casos nomearão Juízes especiais para estes impedimentos.

O   Av.  n. 382 – de 4 de Setembro de 1861 declarou que quando o Juiz de Órfãos estiver unido ao Municipal, sendo averbado de suspeito, deve ser chamado para Adjunto o suplente do mesmo Juiz, enquanto não se tomar providência alguma legislativa, visto como a hipótese de que se tratava era quase literalmente a figurada na presente Ord. in fine,  a qual manda ao Juiz da Partilha tomar por Adjunto um dos Vereadores do lugar, que seja sem suspeita, disposição esta firmada na razão de serem os Vereadores substitutos imediatos dos Juízes de Fora e Oridnários.

 

[2] Tomará por Adjunto.

Silva Pereira no Rep. das Ords. to. 3 nota (a) à pag. 204, e to. 4 nota (b) à pag. 718 transcreve a seguinte nota do Des. João Alvares da Costa:

«É estilo pedir a parte ao Regedor lhe nomeie Adjunto; e vi já nomear a um Juiz do Cível, e a um Corregedor do Cível para desempatar; sed non sequendum

E quid se o Juiz averbado e o Adjunto discordarem?

Vide Guerreiro – de Recusat. liv. 5 cap. 10 n. 8.

 

[3] Vide na nota precedente o Av. n. 382 - de 4 de  Setembro de 1861.

Por D. n. 1.676 — de 14 de Novembro de 1855 se declarou que, nos casos de suspeição posta ao Juiz de Órfãos da Corte, sirvam de Adjuntos, conforme a presente Ord., em primeiro lugar o Juiz de Direito da primeira Vara Criminal, e em segundo, o Juiz de Direito da segunda Vara Crime.

  Em nota de rodapé, há um histórico interessante sobre o Juiz dos Órfãos (Título CII):

O Juiz dos Órfãos

«Antigamente, diz Borges Carreiro – Dir. Civ. t. 27 § 230 n. 1 nota, os Juízes Ordinários com os Tabeliães do Judicial proviam sobre os Órfãos: depois pela multiplicação desta administração se criaram Juízes, e Escrivães  separados (Ord. do liv. 1 t. 88 pr. e Rep. to. 3 pag. 195 verbo - Juiz de Órfãos). aos quais incumbem as obrigações que pelo Direito Romano tinham os Tutores, sem contudo serem estes desonerados das suas. Por aquele Direito não havia Magistrado algum encarregado desta incumbência.»

Os Provedores das Comarcas, cargo que hoje exercem os Juízes de Direito, têm também inspeção sobre os Órfãos e seus bens, nos termos da Ord. do liv. 1 t. 62 do § 28 a 38.

Mas esta inspeção não se estende a emancipar o órfão, salvo estando em correição, e então o fará com o Escrivão dos mesmos Órfãos (Silva Pereira - Rep. das Ords. to. 4 pag. 349 verbo - Provedor era, e to 2 pag. 294 - Escrixão dante, e Borges Carneiro - Dir. Civ. liv. 1 to 27 § 230 n. 19).

Também não pode fazer inventário e partilha dos bens, nem ainda a título de suprir a negligência do Juiz (Mendes de Castro - Praxis to. 2 liv. 4 cap. 3 n. 16, Phœbo - pr.1 Ar. 37, e Silva Pereira - Rep. das Ords. nos lugares supra citados).

Sobre as atuais funções dos Provedores de Comarcas consulte-se o D. n. 143 - de 15 de Março de 1842 no art. 3.

0 Av. n. 19 - de 13 de Janeiro de 1865 declarou que os Cônsules estrangeiros não são competentes para nomearem Tutores.

No título CII é dito que “o Juiz o assinará de seu sinal”. Em nota de rodapé se informa que “sinal” significava “nome e firma”, ou seja, o Juiz escreveria seu nome e assinaria o documento.

Não parece que, no tempo das Ordenações, se usava a expressão precatória, a julgar pela frase (Título CII): 

 

8. E tendo o órfão alguns bens em outro lugar fora da jurisdição do dito Juiz, este Juiz escreverá com diligência ao Juiz do lugar, onde os ditos bens estiverem, dando-lhe declaradamente a informação do negócio, e requerendo-lhe da nossa parte, que faça logo dar um Curador abonado a esses bens, e lhos faça entregar per escrito, sendo-lhe primeiro dado juramento, que os administrará bem e fielmente, e dará conta deles, e dos frutos e rendas, que renderem, a todo o tempo que para isso for requerido.

E o dito Juiz tenha cuidado de haver a resposta per escrito do outro Juiz, a que tal recado enviar, e da obra, que por ele fez: o que todo se escreverá no inventário dos bens do dito órfão, para todo vir a boa arrecadação.

O Juiz podia responder civilmente por culpa ou negligência:

E faça o dito Juiz de tal maneira, que por sua culpa, ou negligência os bens dos órfãos não recebam dano, porque todo o dano e perda, que receberem pagará por seus bens.

Há uma nota de rodapé que informa sobre costume forense então praticado:

Esta espécie de Tutela recai quase sempre em pessoas incapazes, por se não empregarem os meios necessários para se fazer uma acertada escolha, e tal qual a recomenda a Ord. do liv. 4. t. 102 § 7 nas palavras:  - o Juiz obrigará um homem bom do lugar, etc.

«Os Juízes, ou por não terem conhecimento dos indivíduos do seu distrito, ou por quererem poupar-se a um trabalho, de que não recebem emolumentos, encarregam quase sempre aos Escrivães a escolha dos Tutores, resultando d’aqui milhares de inconvenientes.

Em certos casos, pelo menos, não vigorava o princípio da inércia do Juiz. Talvez porque alguns Juízes exercessem também funções administrativas, além das judiciais, como parecia ser o caso dos Juízes dos Órfãos:

Mandamos que tanto que o Juiz dos Órfãos souber que em sua jurisdição a algum Sandeu, que por causa de sua sandice possa fazer mal, ou dano algum na pessoa, ou fazenda, o entregue a seu pai, se o tiver, e lhe mande de nossa parte, que daí em diante ponha nele boa guarda, assim na pessoa, como na fazenda; e se cumprir, o faça aprizoar[1], em maneira que não possa fazer mal a outrem.

 [1] O faça aprizoar, i. e., prender, segurar, etc. 

Vide Cod. Crim. art. 12.

Art. 12. Os loucos que tiverem commettido crimes, serão recolhidos ás casas para elles destinadas, ou entregues ás suas familias, como ao Juiz parecer mais conveniente.

  Sandeu ou desassisado eram palavras usadas para designar o louco. Hoje estas palavras estão em desuso. Mesmo “louco” é atualmente substituída por outras palavras ou expressões que definem com mais precisão a doença mental. A nota de rodapé que segue dá os conceitos jurídicos vigentes no século XIX (Título CIII):

Desassisados e desmemoriados.

Desassisado, propriamente, é o falto de siso, e de juízo, louco completo.

Desmemoriado, é o falto de memória, esquecido, propriamente o idiota, o demente.

José da Fonseca no seu Dicionário de Sinônimos faz a seguinte distinção entre demência e loucura:

«A demência é a abolição total da faculdade de raciocinar; é um estado de estupidez em que a inteligência se esvaece, a fantasia se desordena, e a memória se diminui e transtorna, apresentando só idéias inconexas e disparatadas, que o demente se obstina em olhar como muito razoáveis.

«Nesta qualidade convém a demência com a loucura; com a diferença que aquela costuma nascer da fraqueza e debilidade, e esta de excesso, de arrebatamento, de furor.

«Assim que, se costuma chamar loucura em seus excessos ao entusiasmo, ao estro, ao furor poético, a toda paixão exaltada; que arrebata até ao delírio, e a cometer ações culpáveis e desordenadas.»      

Em outra nota de rodapé, consta que “Sesudo” é o “sisudo”, ou seja, com juízo.

Além do Juiz dos órfãos ter obrigação de cuidar dos desassisados, outros Juízes também podiam ordenar providências quanto aos pródigos (Título CIII):

E se o Juiz per inquirição souber, que em a Cidade, Vila, ou lugar de seu julgado há alguma pessoa, que como Pródigo desordenadamente gasta e destrói sua fazenda[1], mandará por Alvarás de editos nos lugares públicos, e apregoar por Pregoeiro, que daí em diante ninguém venda, nem escambe, nem faça algum outro contrato, de qualquer natureza e condição que seja, com ele, sendo certos, que todos os contratos, que com ele forem feitos, serão havidos por nenhuns.

 [1] Desordenadamente gasta e destrói sua fazenda.

Tal é a definição que do Pródigo dá o Legislador. É por tanto o homem que corre à miséria, disperdiçando seus haveres.

Mas Mello restringe a noção Pródigo aos que gastam os seus bens sem fim algum e como loucos. Neste número não podem entrar os que gastam com demasia em liberalidades, e os que empregam o que têm em jogos, e outros vícios (Mello Freire - Inst. liv. 2 t. 12 § 9).

Com esta doutrina conformam-se Carvalho - Proc. Orphan. nota 287, e Borges Carneiro - Dir. Civ. liv. 1 t. 31 § 264 n. 5 e nota, onde acrescenta:

«Assim parece exigir o sagrado direito de propriedade e o perigo de se perturbar a paz das famílias, se der grande extensão ao referido arbítrio do Juiz (na classificação dos Pródigos): igualmente são hoje por toda a parte raras as Curadorias dos Pródigos: - o que contudo, diz Strikio, não procede de não os haver, mas de negligência dos Juízes (Strikio to. 10 § 1): pois restringindo-se em extremo aquela definição, resulta muitos danos que a lei tem querido acautelar (Rep. das Ords. to. 1 nota (c) à pag. 768 - verbo - Curador).

Os Juízes eram dispensados de tutorias. Pelo texto das Ordenações, vê-se que este era um privilégio também dos fidalgos (Título CIV):

1. E serão escusos de todas as Tutorias, assim deixadas em testamento, como legítimas, ou dativas, os nossos Desembargadores[1], Corregedores[2], Ouvidores, Juízes[3] e Vereadores de quaisquer Cidades, Vilas, ou lugares de nossos Reinos.

Mas os Juízes e Vereadores não serão escusos das Tutorias, de que já fossem encarregados, antes que houvessem os Ofícios, salvo os Juízes de fora[4], que Nós enviarmos a algumas Cidades, ou Vilas, enquanto nossa mercê for; porque estes tais serão escusos de todas as Tutorias, posto que ao tempo, em que os enviássemos, já delas fossem encarregados, e as tivessem aceitadas.

E bem assim serão escusos todos os Oficiais, que são deputados para servir ante os sobreditos, assim como Procuradores, Escrivães, Inquiridores e Contadores, Carcereiros, Porteiros e Caminheiros.

 2. E pela mesma maneira serão escusos os que administram coisas nossas, como Vedor da Fazenda, Contadores, Tesoureiros, Almoxarifes e todos os mais Oficiais, que outrossim são deputados para servir ante eles: E bem assim os Rendeiros de nossas rendas, que sejam de vinte mil réis para cima.

 3. Item, todo o maior de setenta anos, será escuso de toda a Tutoria deixada em testamento, ou legítima, ou dativa.

E bem assim o menor de vinte e cinco anos, posto que tenha impetrado Carta nossa, por que seja havido por maior, e lhe sejam entregues seus bens, não será constrangido para Tutoria alguma, até ser de vinte e cinco anos perfeitos. E posto que o tal menor queira ser Tutor, não lhe seja consentido.

 4. Item, será escuso de toda a Tutoria o que for enfermo de tal enfermidade, que razoadamente não possa reger e administrar sua fazenda, em quanto tal enfermidade durar.

 5. E bem assim será escuso de toda a Tutoria o Fidalgo de linhagem, ou Cavaleiro, e o Doutor em Leis, Cânones, ou Medicina, feitos per exame em estudo geral[5]: e posto que cada um destes queira ser Tutor, não deve ser a ele recebido. Porém sempre lhe ficará seu direito resguardado de suceder na herança do órfão, se ao tempo de sua morte lhes pertencer per Direito: porque, pois não houve neles culpa em deixarem de ser Tutores; não lhes deve ser imputada para perderem o direito de sucederem ao órfão.

 6. E porque além destes Tutores, que são dados aos órfãos, em quanto não chegam à idade de quatorze anos, se são varões, ou até doze, se são fêmeas; depois que passam da dita idade, e não chegam a vinte e cinco anos, lhes são dados Curadores, tudo o que acima dissemos acerca das pessoas, que podem ser Tutores assim deixados em testamento, como daqueles, que são constrangidos, por serem parentes dos órfãos, como dos que são dados pelo juiz, por falta de parentes, e também acerca das escusas, que por si podem alegar, como naqueles, que o não devem ser,  haverá lugar em os Curadores, que forem dados aos menores de vinte e cinco anos.

 

[1]Desembargadores.

Sob este título se compreendiam tanto os do Desembargo do Paço, como os das Casas da Suplicação, e do Porto, e das outras Relações.

Como os do Desembargo do Paço, eram Conselheiros d’Estado, assim também hoje estes estão compreendidos na designação do versículo citado.

 [2]Corregedores.

Atualmente são os Juízes de Direito.

[3] Juízes.

São hoje os Juízes Municipais, e de Órfãos, e seus suplentes.

 [4] Juízes de fora.

São os Juízes Municipais atualmente, mas o privilégio não pode compreender os seus Suplentes, por quanto não lhes sobra a mesma razão (Borges Carneiro - Dir. Civ. liv. 1 t. 28 § 247 n. 3).

 [5] Em Estudo geral, i. e., em Faculdade, Academia ou Universidade.

Acima dos Juízes estavam os Desembargadores. A palavra “desembargador” vem de desembargo. Alguns Desembargadores (caso dos do Paço) tinham função administrativa (no Livro 4 há muitas menções a esta função administrativa do Desembargo do Paço); outros desembargadores tinham função judicial ou ambas. Em nota de rodapé, consta (Título XIV):

Desembargos nossos. Segundo Silva no com., pela expressão desembargos entendem-se ordens de pagamento. Vide também Arouca na l. Princeps 31 n. 17, e Sousa de Macedo - Dec. 94 n. 2.

Por desembargos entendiam alguns, os diplomas ou títulos especiais, ou graças nos quais os Reis davam certas somas aos seus criados na Corte, quando se casavam.

Moraes no Dicc. define: Alvará, despacho, ou cédula, porque se mandava pagar nos Contos ou Erário alguma soma devida ou de mercê.

Desembargo quer dizer despacho. De desembargo provém a expressão - desembargadores, equivalente a Despachadores.

Os Desembargadores do Paço eram outr’ora como os Ministros d’ Estado hoje, pois assim eram chamados porque despachavam com o Rei.

O Desembargo do Paço era um Tribunal Régio e de Graça (Título XCIII).

O Desembargo do Paço tinha atribuição de suprir a licença para os nobres casarem (se negada pelos pais, mães, tutores ou curadores); o suprimento desta licença para os plebeus era atribuição dos Corregedores ou Provedores (Título LXXXVIII).

Os Desembargadores eram considerados parte da nobreza (Título XXXI): 5. Aos Pagens de Fidalgos, Desembar­gadores, e de outras pessoas nobres, ou que se tratam como nobres, se darão cada um ano dois mil réis. 

Mesmo após a morte dos Desembargadores, suas viúvas mantinham os privilégios:

Porque a Nós pertence prover, que nin­guém use mal do que tem, querendo suprir a fraqueza do entender das mulhe­res viúvas, que depois da morte de seus maridos desbaratam o que tem, e ficam pobres e necessitadas, e querendo outrossim prover corno seus sucessores não fiquem danificados; mandamos que se for pro­vado, que elas maliciosamente ou sem razão desbaratam, ou alheiam seus bens, as Justiças dos lugares, onde os bens estive­rem, os tomem todos, e os entreguem a quem deles tenha carrego, até verem nosso mandado, e a elas façam dar mantimento, segundo as pessoas forem, e os encargos que tiverem.

E façam-no saber a Nós, para mandarmos prover nesses bens, em maneira, que os que os houverem de herdar, não recebam dano.

 1.  Porém, se a tal viúva foi mulher de Fidalgo, ou de Desembargador, ou Cavaleiro, se as Justiças da terra tiveram dela tal informação, por honra do marido e da sua linhagem, façam-no-lo logo a saber antes de outra coisa, para mandarmos o que for de Direito sem escândalo de sua geração.

Tabeliães e Escrivães, em alguns casos, tinham atribuições assemelhadas (Título LXXIV). Havia Ajudantes de Tabeliães e de Escrivães (Título LXXX - nota de rodapé). Havia Escrivães dos navios (Título LXXX - nota de rodapé). Em geral, para cada especialidade de Juiz havia um escrivão (escrivão dos órfãos, escrivão do cível, do crime, da Provedoria etc). Os Juízes de Paz e as Escrivanias de Paz foram criadas no Império. O escrivão tinha por atribuição escrever (Título CIII): E o Juiz mandará escrever ao Escrivão todas as despesas, que o dito seu Curador fizer, assim acerca da cura e mantimento do dito seu filho, como do mantimento e despesas, que fizer com a mulher e filhos do dito seu filho para tudo vir a boa arrecadação.