Não encontrei no texto do Livro 4 das Ordenações Filipinas menção expressa ao casamento de escravos com pessoas livres. Mas, em nota de rodapé, se informa que era admitido o casamento do homem livre com mulher escrava, ou do homem escravo com mulher livre. Mas desse casamento não podia resultar comunhão de bens. As regras da Igreja Católica também regulavam o casamento de pessoas livres com pessoas escravas, segundo outra nota de rodapé: “Há mesmo nos casamentos católicos limitações a esta regra, como a Ord. deste liv. t. 105, e nos casamentos de pessoas livres com escravas.” As normas da Igreja Católica sobre casamentos com ou entre escravos estavam nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707 (acesso em 26/07/2025). Estas regras são as seguintes:
CONSTITUIÇÕES PRIMEIRAS DO ARCEBISPADO DA BAHIA DE 1710
(...)
TÍTULO LXXI.
DO MATRIMÔNIO DOS ESCRAVOS
303. Conforme a direito Divino, e humano os escravos, e escravas podem casar com outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhe não podem impedir o Matrimônio, nem o uso dele em tempo, e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento ou não possa seguir, e fazendo o contrário pecam mortalmente, e tomam sobre suas consciências as culpas de seus escravos, que por este temor se deixam muitas vezes estar, e permanecer em estado de condenação. Pelo que lhe mandamos, e encarregamos muito, que não ponham impedimentos a seus escravos para se casarem, nem com ameaças, e mau tratamento lhes encontrem o uso do Matrimônio em tempo, e lugar conveniente, nem depois de casados os vendam para partes remotas de fora, para onde suas mulheres por serem escravas, ou terem outro impedimento legítimo, os não possam seguir. E declaramos, que posto que casem, ficam escravos como de antes eram, e obrigados a todo o serviço de seu senhor.
304. Mas para que este Sacramento se não administre aos escravos senão estando capazes, e sabendo usar dele, mandamos aos Vigários, Coadjutores, Capelães, e quaisquer outros Sacerdotes de nosso Arcebispado, que antes que recebam os ditos escravos, e escravas, os examinem se sabem a Doutrina Cristã, ao menos o Padre nosso, Ave Maria, Creio em Deus Padre, Mandamentos da Lei de Deus, e da Santa Madre Igreja, e se entendem a obrigação do Santo Matrimônio, que querem tomar, e se é sua tenção permanecer nele para serviço de Deus, e bem de suas almas; e achando que a não sabem, ou não entendem estas coisas, os não recebam até as saberem, e sabendo-as os recebam, posto que seus Senhores o contradigam, tendo primeiro diligências necessárias, e as denunciações correntes, ou licença nossa para os receber sem elas, a qual lhe daremos, constando que se lhes impedirá o Matrimônio, fazendo-se as denunciações antes de se receberem. E conformando-nos com a Bula do Papa Gregório XIII, dada em 25 de Janeiro de 1585, mandamos que todos os Párocos, quando receberem alguns escravos dos novamente convertidos, em que haja suspeita de que estão casados na sua terra, (posto que não sacramentalmente) com eles dispensem no dito antigo Matrimônio.
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia não tinham eficácia restrita à comunidade eclesiástica. Como a Religião Católica era a oficial do Reino Português e, depois da independência, do Império do Brasil, suas normas também tinham eficácia no mundo secular (ou “braço secular”, segundo a linguagem de então). Isto porque o Direito Canônico era fonte subsidiária das Ordenações, conforme se vê não só do trecho a seguir do livro 4 das Ordenações Filipinas, como de diversos outros trechos (pesquise-se no livro 4 “cânones” e “Direito Canônico”):
Os Corregedores das Comarcas e Ouvidores dos Infantes, Mestres, Prelados, Condes, Capitães, e de quaisquer Senhores de terras, que forem postos em alguma Comarca, Cidade, Vila, ou em algum outro lugar, e os Juízes temporais, e aqueles que pomos em algumas Cidades, ou Vilas, sem limitação de tempo certo, durando o tempo de seus Ofícios, não poderão fazer casas de novo, nem comprar, nem aforar, nem escaimbar, nem arrendar bens alguns de raiz, nem rendas algumas, nem poderão receber doação de nenhuns bens móveis, ou de raiz, que lhe seja feita per alguma pessoa de sua jurisdição; salvo se for de seus ascendentes, ou descendentes, ou transversais dentro no segundo grau inclusive, contado segundo Direito Canônico.
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