segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Restrições às alforrias de escravos no Livro 4 das Ord. Filipinas

        Uma das notas de rodapé (ou comentário) do/ao Livro 4 das Ordenações Filipinas discorre sobre a frase E se o doador... ... e o patrono, que por sua vontade livrou o escravo da servidão. A nota inicia citando a obra de Perdigão Malheiros - Escravidão no Brasil e prossegue mencionando T. de Freitas - Consol. art. 42 e 63.

Cumpre notar que não há alforria, se o senhor, não tendo intenção de libertar o escravo, mas e tão so­mente de isentá-lo do castigo, declarar falsamente em Juízo que é livre (L. 17 § 1 Dig. qui et à quib. manumis).

Não temos lei, diz T. de Freitas, que autorize al­forrias tácitas, e apenas a Prov. de 15 de Dezembro de 1823 dá notícia de um caso delas, e sem que o admita, a saber, quando o senhor abandona seu es­cravo doente.

Outro caso de alforria tácita é o da Ord. deste liv. t. 92 princ.

Sobre as alforrias forçadas consulte-se o Av. n. 388 - de 21 de Dezembro de 1855 (...) e nota ao art. 63 da Consol(este aviso consta da internet e pode ser acessado aqui - acesso em 22/01/2024).

Este Av. n. 388 - de 1855, decide a questão sobre a maneira por que deve proceder o Juizo de Orfãos, quando no ato de se vender em hasta pública um escravo pertencente a vários herdeiros se apresentar um licitante a oferecer o preço de sua avaliação para libertá-lo. Vide notas à Ord. deste liv. t. 11 § 4.

        O Aviso 388 traz o resultado de uma decisão do Conselho de Estado do Império a respeito da alforria de uma escrava em processo de inventário. 

O  Conselho (de Estado)  funcionava por seções: Justiça e estrangeiros, Império, Guerra e Fazenda. A maior parte da atividade do Conselho desenvolvia-se nessas seções e nelas esse órgão, originalmente criado como auxiliar do Poder Moderador, desenvolveu extensa atividade interpretativa das leis. E o fez de variadas formas, sendo que uma das mais curiosas era a resposta que dava a dúvidas vindas do próprio sistema judiciário, especialmente dos juízes de comarca (juízes de direito) e juízes municipais. (LOPES, José Reinaldo de Lima. O Oráculo de Delfos – O Conselho de Estado no Brasil-Império. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 128.)

O Pleno, sem dúvida, era em princípio órgão da grande ou da alta política imperial. Mas não era de lá que procediam principalmente os Avisos ministeriais, material cotidiano da vida jurídica no Império. Estes nasciam sobretudo das consultas das seções (Justiça e Estrangeiros, Guerra, Fazenda, Império). (...). Estes funcionavam como verdadeiras interpretações autênticas dos regulamentos gerais (pois eram expedidos pelo Ministro de Estado a quem incumbia dar o regulamento da lei). Pareciam ter, pois, força geral. Embora não fossem redigidos na forma de articulados normativos, eram dados a conhecer de modo público — a despeito de dirigidos em primeiro lugar a quem provocara a consulta — e assemelhavam-se a circulares.” (LOPES, obra citada,  pp. 113-114.)

        O Aviso 388 é bastante longo, com 10 páginas, por isso o coloquei em link, para quem tiver interesse em lê-lo. O texto contém uma interessantíssima argumentação sobre a liberdade dos escravos e direitos dos senhores. Retrata as tenções e dúvidas sobre a escravidão, no Brasil de meados do século XIX, mais precisamente, entre 1851 e 1855. Já fica muito claro que, nos meios judiciários, havia uma tendência abolicionista, ou, pelo menos, o Magistrado que se manifesta é fortemente abolicionista.  

        A consulta ao Conselho de Estado gira em torno da licitude ou não do Juiz da Partilha aceitar “o preço da avaliação para conferir a liberdade a um escravo do casal inventariado, não obstando a oposição de algum, ou de todos os interessados.”

         O “preço da avaliação” ainda hoje significa o valor dado ao bem ao ser inventariado. Curiosamente, já em 1853, o Juiz de Órfãos do Pará, João Baptista Passos,  afirmava que  “os preços de inventário são sempre inferiores aos verdadeiros valores dos bens”. Curiosamente, porque se vê que a subavaliação de bens, em situações que geram tributação, parece ser uma prática muito arraigada em nossa cultura. E esta subavaliação não tem outra finalidade além da sonegação de tributos. Mais: quando o Conselho de Estado do Brasil-Império sufraga esta avaliação fictícia e com fins que, mesmo em 1853, só podiam ter por objetivo pagar menos impostos, vemos já naquele tempo um órgão estatal normatizando uma prática danosa ao fisco.

        Pois bem, digna de nota é a manifestação do Juiz de Direito da 2ª Vara Crime da Capital do Pará. Muito bem fundamentada, nela o Magistrado demonstra ser favorável à liberdade dos escravos. Por isso a transcrevo, face às informações que traz em seu bojo:

«Reduz-se a consulta do primeiro: «Se o escravo pode ser alforriado contra a vontade de seu dono, indenizando-o.»

«A solução prática dessa questão tem sido negativamente, invocando-se o § 22 do Art. 179 da Constituição do Império; e não me consta que tenha vingado nos Tribunais Superiores aresto algum em contrário.

«Assim, ocorrendo a hipótese figurada quando se trata de alforriar algum escravo, creio que o Juiz deve recorrer aos meios suasórios ante os interessados, como se mandou praticar pelo Aviso 2.º de 17 de Março e 29 de Julho de 1830 (Collec. Nabuco); e havendo oposição de alguns herdeiros, da qual não queiram ceder, tem o Juiz no caso de partilhas o meio de mandar aquinhoar o escravo àquele que quizer dar a liberdade recebendo o valor, como diz praticara o Suplente do Juiz Municipal de Macapá. Havendo porém oposição de todos, não vejo remédio algum em favor do escravo, visto se ter entendido que, segundo a Constituição, não pode o senhor ser obrigado a alforriar o escravo contra sua vontade, ainda dando aquele o seu valor.

«Não devo ocultar a V. Ex. que não tenho essa inteligência da Constituição como a melhor, e mais conforme à censura de Direito. E sem ter o desvanecimento de fazer prevalecer a minha humilde opinião, direi, em resumo, algumas das principais razões em que a fundo.

«A Constituição garante a propriedade em toda a sua plenitude; e todavia, segundo o citado § 22 do Art. 179, a necessidade e a utilidade pública autorizam a desapropriação, e a Lei de 9 de Setembro de 1826 especifica diversos casos em que ela tem lugar, e como não especificasse a espécie controvertida, tem-se negado ao escravo a faculdade de obter a sua liberdade indenizando o senhor, se este se recusa a esse ato de justiça, de humanidade e de religião.

«Mas esta inteligência literal, escudando o senhor para praticar um ato que muitas vezes não tem outros motivos que a crueldade ou torpeza, envolve iniquidade e absurdo manifesto. Além disto, equipara-se por ela a propriedade homem – à propriedade material e irracional. Ora, é sabido que o escravo somente por uma ficção (do abuso da força) se pode considerar coisa e propriedade, mas por mais amplitude que se dê a essa ficção, não é possível dar ao senhor a mesma amplitude de direitos sobre as duas espécies de propriedade; e sobeja notar que podendo ele destruir a propriedade material, segundo o seu prazer e capricho, não pode destruir sem crime a propriedade escravo.

«O Direito Romano, que a princípio concedia aos senhores o – jus vitæ et necis - sobre o escravo, teve de abolir este cruel direito, e de punir a morte do escravo pelo senhor com as penas infligidas aos homicidas.

«O direito de propriedade, como todos os direitos, tem restrições inerentes à natureza do mesmo direito; e tais são todas aquelas que a necessidade e a utilidade pública impõe. Essas restrições, quando se trata da propriedade - homem, - são mais numerosas; porque o homem ainda escravo não pode ser tratado como se fora um ente insensível, ou irracional. Assim é que a Legislação antiga, muito menos humana e filosófica que a atual, permitia ao escravo remir-se do cativeiro contra a vontade de seu dono; e sirva de prova o § 4.º da Ord. do L.º 4.º Tit. 11. (nota de JMBN: procurar por “Mouro cativo” no Livro 4).

«Como pois hei de supor que a nossa Constituição, que tão grande homenagem rendeu aos direitos do homem, e a todos os princípios de filantropia e caridade cristã, foi para com o mísero escravo mais bárbara ou menos humana que as Leis feitas em tempos muito menos ilustrados, nos quais os direitos do homem eram desconhecidos ou não garantidos? Como hei de supor que a Lei, que permite tirar ao Cidadão a sua propriedade até pelo motivo de decoração pública, não permita tirar-lh'a para dar a liberdade e arrancar do cativeiro a um seu semelhante ante as Leis naturais e divinas? 

«Não posso supô-lo; e parece-me que a inteligência literal, quando implica absurdo e iniquidade, deve ser abandonada, e buscar-se o espírito da Lei, embora contrário.

«Hoje que a escravidão é havida por todos os povos civilizados como contrária às Leis da razão e da humanidade, e altamente funesta à moralidade e à felicidade das Nações, a sua manutenção não tem outro fundamento que a impossibilidade de indenizar a todos os senhores, e o risco de lançar de chofre na Sociedade e no gozo de ampla liberdade milhares de indivíduos embrutecidos e degradados pela escravidão, e contidos por uma severa disciplina. Nenhum desses inconvenientes se dá na emancipação gradual (a que aspira o País, como o atestam Leis e Tratados), sendo o senhor indenizado. E pois não vejo razão para que se não julgue compreendida entre as exceções da necessidade e do bem público, que, segundo a Constituição, limitam o direito de propriedade, a hipótese controvertida.

«Escuso acumular citações em ordem a demonstrar que os nossos Legisladores desejam acabar com a escravidão gradualmente, e que não julgam esse meio perigoso. Não será porém fora de propósito recordar que a Resolução n.º 30 de 11 de Agosto de 1837, Art. 1.º in fine, manda alforriar todos os escravos de S. M. o Imperador que derem o seu valor; que o mesmo se pratica com os da Nação, Ord. n.º 160 de 30 de Outubro de 1847; e finalmente que os donos dos escravos armados pelos rebeldes do Rio Grande do Sul foram desapropriados, e se os mandou indenizar, Decreto n.º 427 de 26 de Julho de 1845, e § 26 do Art. 6.º da Lei n.º 514 de 28 de Outubro de 1848.

«Se para a desapropriação dos escravos que serviram à rebelião do Rio Grande deram-se em mais alto grau poderosas razões de necessidade e utilidade pública, nos casos de emancipação parcial dão-se também razões de necessidade e utilidade pública, nos casos de emancipação parcial dão-se também razões de necessidade e utilidade pública, e não se dá da parte dos escravos um crime como naquele.

«Parece-me que os nossos Legisladores não legislaram especificadamente sobre a espécie da Consulta, temendo talvez o espírito de indisciplina nos escravos, e pensando por ventura que uma verdadeira interpretação filosófica suprisse o defeito ou omissão da Lei. 

«(...) Pará 12 de Agosto de 1853. (...) O Juiz de Direito da 2ª Vara Crime da Capital Francisco José Furtado.»

        Infelizmente o entendimento do Juiz não prevaleceu, pois o Conselho de Estado decidiu que o escravo teria que ser vendido por preço superior ao da avaliação. A decisão final foi a seguinte: 

...em nenhum caso, opondo-se um ou mais herdeiros se pode aceitar diretamente do escravo ou de terceiro (não interessado) o preço da avaliação para se conferir liberdade, sendo que importa o mesmo a oposição do herdeiro ou herdeiros, como no caso sujeito, a impossibilidade não só de algum deles reclamar por ser menor, como de transigir por ele o seu tutor.

        Da manifestação da Secção de Justiça do Conselho d’Estado, destaco os seguintes trechos:

A isso se opõe o direito de propriedade que adquire o herdeiro pela adição da herança, como representante daquele a quem sucede, e o princípio de que ninguém pode ser obrigado a forrar o escravo, porque não há Lei que a isso o obrigue.

Isto é duro sem dúvida, mas é uma consequência da escravidão. Razões d'Estado o exigem para que essa escravidão não se torne mais perigosa do que é.

(...)

Se todos os interessados se opõem, crê a Secção que não é lícito ao Juiz da partilha aceitar o preço da avaliação, ou conferir por qualquer modo a liberdade ao escravo.”

“Ora, como a Secção já observou, o senhor não pode ser obrigado a forrar o escravo, porque não há Lei que a isto o obrigue, e que marque, como talvez conviesse, os casos, as condições, modos e formalidades com que isto teria de fazer-se. É este justamente um daqueles assuntos em que não se deve admitir arbítrio algum, por perigoso. Demais, a Lei não o dá.”

A MULHER NÃO PODIA LIBERTAR ESCRAVOS DO CASAL

        Outro ponto estranho para os dias de hoje era a condição jurídica da mulher, que abordarei amplamente em outra postagem. No caso específico das alforrias, a mulher não podia libertar escravos do casal, como se vêr em outra nota de rodapé do Livro 4 das Ordenações Filipinas:

«Pode a mulher sem consentimento do marido libertar escravos do casal? Absolutamente não, ainda que a alforria não seja gratuita.»


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