terça-feira, 28 de outubro de 2025

Empréstimos no Liv. 4 das Ordenações Filipinas (o mútuo 1)

        As modalidades de empréstimo de bens são muito antigos. Neste interessante trecho do Livro 4 das Ordenações Filipinas, podemos saber que, no século XVII não era só dinheiro que se emprestava, mas também outras coisas: vinho, azeite, trigo ou qualquer outro legume. Provavelmente, hoje em dia, talvez seja mais comum o empréstimo de dinheiro, mas o Código Civil admite mútuo de outras coisas além de dinheiro: "Art. 586. O mútuo é o empréstimo de coisas fungíveis. O mutuário é obrigado a restituir ao mutuante o que dele recebeu em coisa do mesmo gênero, qualidade e quantidade."

        Ao ser regulamentada a necessidade de restituição da coisa objeto do mútuo, percebe-se que a palavra "espaço" é usada nas Ordenações no sentido de prazo, ou seja, significando "espaço no tempo".

        Nesta postagem também aparece a expressão "filhosfamílias". Não há um conceito expresso de filhofamília nas Ordenações. Este conceito se acha no Esboço de Hum  Diccionario Jurídico, Theoretico, e Practico, Remissivo às Leis Compiladas, e Extravagantes. Por Joaquim José Caetano PEREIRA E SOUSA;  Advogado na Casa da Supplicação. Obra posthuma. Tomo Segundo. F-Q; verbete "Filho": (...) "Filho famílias se diz aquele que está ainda debaixo do pátrio poder." (...) Neste ponto, é curioso que o texto das Ordenações aventa a possibilidade de os filhos matarem os pais por causa de dívidas.

        Em outro trecho do título relativo aos empréstimos, se fica sabendo que os filhosfamílias estudavam fora de seu lugar de moradia, mas também podiam se ausentar da casa para ir à guerra ou para servir ao Rei na Corte.

        Nas notas de Cândido Mendes de Almeida se pode ver o quanto de Direito Romano estava nas Ordenações, seja na reprodução literal das normas, seja justificando a mudança daquele Direito pelas Ordenações, seja indicando o Direito Romano como subsidiário do Direito Português. Além dessa continuidade das regras do Império Romano, muitos dos livros de Direito mencionados nas notas de rodapé eram escritos em latim, o que obrigava os operadores do Direito a serem versados neste idioma. As leis eram redigidas em português, mas a interpretação era em latim. Talvez por isso o desprezo pelos rábulas e leguléios, que provavelmente eram os operadores do direito que conheciam apenas os textos legais, já que - não sabendo latim - não podiam conhecer o pensamento dos jurisconsultos.  Também nas notas de Cândido Mendes de Almeida se pode ver que os contratos de empréstimo já existiam no Direito Romano e, pois, naquele tempo já se emprestavam dinheiro e coisas.

        O conceito de "mora" também já está nas notas de Cândido Mendes de Almeida e é esclarecedor até para os dias atuais. Nestas notas se vê que, em 1757, havia norma regulamentando os juros.

 

TÍTULO L.

Do emprestido[1], que se chama mútuo[2].

 

Toda a pessoa, que emprestar a outra coisa alguma, que consiste em número, peso, ou medida, como dinheiro[3], vinho, azeite, trigo ou qualquer outro legume[4], tanto que se recebe a tal coisa emprestada, fica a risco daquele que a recebeu[5]; porque pola entrega ficou própria, do que a recebeu, e fica sempre obrigado a pagar o gênero, que não podia perecer, que é outro tal dinheiro, trigo, vinho, ou azeite ou outro legume.

1. E esta coisa assim emprestada deve retornar ao devedor ao tempo e prazo, que lhe for posto, e não sendo declarado tempo, cada vez que o credor lha pedir, e desse tempo fica constituído em mora[6]. O qual não se deve entender logo, porque seria vão e frustatório o benefício, se logo se houvesse de pedir o que se empresta; polo que se darão ao devedor dez dias de espaço[7], como se dão ao que se obriga a pagar alguma coisa sem declaração de tempo, ou dilação, ou mais espaço, se ao Julgador parecer assim, segundo a qualidade das pessoas, tempo e lugar.

(...)

2. E porquanto de se emprestar dinheiro[8], aos mancebos filhosfamílias[9] se dá azo ao converterem em usos desonestos e ocasião de serem viciosos, e se pode presumir, que carregados de dívidas e apertados per elas procurem a morte a seus pais, ou lha desejem: para se isto evitar[10], mandamos que o que emprestar a algum filho, que estiver debaixo do poder de seu pai, quer seja varão, quer fêmea, perca o direito de o pedir assim a seu pai, como a ele, posto que os ditos filhosfamílias, a que se fez o dito empréstimo, saiam do poder de seus pais por morte, casamento ou emancipação[11]. E da mesma maneira se não poderá pedir aos fiadores que por eles ficaram.

3. Porém, se o tal filhofamílias estiver em alguma logea (loja?) de mercadorias, ou tiver algum trato de consentimento e mandado de seu pai; ou sem ele, será obrigado a pagar o que se lhe emprestar[12]. Porque, se por mandado de seu pai está no tal trato, fica o pai obrigado pelo empréstimo, que ao dito filho se fizer; e se o dito filho negociava sem mandado de seu pai[13], ficará ele obrigado até onde chegar o seu pecúlio[14], e mais não.

4. E quando o filhofamílias está em parte alongada e remota por causa do estudo, será o pai obrigado a pagar o que se emprestar ao dito para os gastos do estudo, não sendo porém mais que o que o pai lhe costumava dar. E o mesmo será no que se emprestar ao filhofamílias soldado, que estiver na guerra em parte remota, ou que andar na Corte em nosso serviço[15].

 

NOTAS DE CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDA:

1] Emprestido, i. e., empréstimo.

 2] Mútuo, i. e., recíproco.

Vem do verbo latino – mutuare emprestrar.

Mastrofini na sua obra Discussão sobre a usura diz que, na opinião de alguns autores a palavra - Mutuum vem de meo e tuum, explicando a transferência de domínio neste empréstimo; transferência ou domínio que ele contesta no § 293 e seguintes:

Segundo Coelho da Rocha § 744 o mútuo é o contrato, pelo qual uma pessoa entrega à outra uma coisa fungível, para lhe ser tornada outro tanto em quantidade e qualidade. É a mesma definição desta Ord. pr. em termos mais reduzidos e claros.

«Coisas fungíveis, diz T. de Freitas Consol. art. 477 nota, são objetos do Mútuo, i. e., as que forem suscetíveis de substituição por outras coisas da mesma espécie, da mesma qualidade, e na mesma quantidade.

«As coisas que se consomem com o uso são fungíveis por sua natureza, mas as partes podem convencionar que sejam fungíveis coisas que o não são por sua natureza. Isto pode acontecer até com ações de Banco e outras companhias, quando aquele que as recebe fica obrigado a restituir um número igual ao das ações recebidas.

«Em suma há mútuo sempre que a obrigação de restituir for genérica, e não se referir à própria coisa recebida, mas à outra da mesma espécie e qualidade qualquer que ela seja.»

É da natureza deste contrato o ser gratuito, bem que se possa ajustar prêmio, ou remuneração do mutuante, como em alguns casos permitia a antiga legislação (Ord. deste livro t. 67, Als. de  23 de Maio de 1698, e de 17 de Janeiro de 1757), e facultou-o sem embaraços a moderna (L. de 24 de Outubro de 1832). Mas neste caso o mútuo perde inteiramente todo o seu característico – a gratuidade, passando a ser o contrato todo de locação.

Os Romanos distinguiam estes dois contratos por estas duas palavras: mutuum era o empréstimo gratuito sem juros, e fænus o outro, o oneroso.

O mutuário não fica devedor da coisa individual, mas é tão somente da espécie (genus, na frase do Direito Romano) e, portanto fica logo tendo o domínio, correndo por sua conta os riscos. Esta doutrina, como já vimos acima, é contestada por Mastrofini.

Vide sobre este tit. Caminha – de Libellis ann. 10, Barbosa – com., Corrêa Telles – Dig. Port. to. 3 de n. 1177 a 1195, Coelho da Rocha Dir. Civ. de § 774 a 781, T. de Freitas – Consol. de art. 477 a 509, e Ramos – Apont. de  n. 442 a 484.

 3] Dinheiro. Vide Ord. deste liv. t. 67.

«Como o dinheiro amoedado, diz Rogron, é uma coisa estéril, que por si mesmo não pode servir às necessidades da vida, tem-se pretendido que era injusto exigir prêmios por esse empréstimo de dinheiro, mas convém observar que o dinheiro tendo um valor de convenção, e podendo servir para comprar todos os objetos necessários à vida, o que empresta uma certa soma priva-se de todos os objetos que poderia comprar, e de todos os benefícios que poderia colher do emprego de seu capital.»

Vide Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 2 nota (b) à pag. 233, Macedo – Dec 30, Moraes – de Execution. liv. 2 cap. 12, Pereira de Castro – Dec. 84 n. 3 e Arouca – All. 9 n. 10.

4] Legume, i. e., nome genérico de toda sorte de grãos, que nascem em bages, como favas, feijões, ervilhas, etc.

Mas aqui toma-se em sentido mais lato, máxime se a palavra latina legumen, vem de legere, no sentido de colher, e não no de ajuntar, ligar, etc.

 5 ] Sendo o Mutuatario, o dono, segue-se a regra de Direito – res suo domino perit. 

 6] Mora. Dando-se este fato o mutuário fica sujeito ao pagamento de juros e danos (Silva Pereira – Rep. das Ords. to. 2 notas (a), (b), e (c) à pag. 234).

Chama-se Mora o retardamento da execução da obrigação. Não se tendo fixado prazo corre a mora desde a interpelação, protesto, ou qualquer outra intimação, ainda extra-judicial, a menos que outra coisa não tenha resolvido a lei (Coelho da Rocha – Dir. Civ. § 127 e128).

«E da mora em diante, diz T. de Freitas, não tendo havido estipulação de juros, o mutuário deve-os pagar? Para este efeito a nossa jurisprudência exige a interpelação judicial. Assim legislam os arts. 138 e 248 do Cód. do Com.»

Suzano resumindo Silva Pereira no Rep das Ords. to. 3 nota (a) à pag. 560 diz o seguinte:

«Mora se entende em razão da coisa, ou da pessoa: da coisa quando alguém não faz aquilo que por direito deve fazer (como quando tem alguma coisa furtada, e não restitui a seu dono; e nestes casos é o possuidor obrigado aos interesses, mesmos nos contratos co-respectivos, quando um cumpre da sua parte a condição, e o outro não); da pessoa, quando o credor chama o devedor em lugar e tempo competente, ou é chegado o dia convencionado: desde a chamada ou dia aprazado entra o devedor em mora.»

Vide Coelho da Rocha – Dir. Civ. § 128 e nota G, mui importante a consultar sobre esta questão.

Consulte-se também a Gazetta dos Tribunais n. 166, e  Nova Gazetta dos Tribunais n. 245 pag. 4.

 7] Se o mútuo é de pão, a regra em Portugal é que o mutuário é obrigado a dar a espécie até o dia 15 de Agosto seguinte, depois de passado esse dia pode pagá-lo a dinheiro pelo maior valor que tiver tido o gênero no intervalo (Ord. deste liv. t. 20).

Sendo de outros gêneros, a todo tempo satisfaz o mutuário, entregando-os, e não sendo possível paga-os pelo preço corrento ao tempo convencionado.

Mas se o mútuo é de dinheiro a juros, a cobrança não se pode fazer em menos de um ano (Al. de 17 de Janeiro de 1757), e nem se poderia contratar por menos tempo.

Segundo Correa Telles – Dout. das  Acç. § 407 nota (3), os juros do dinheiro deviam ser cobrados executivamente, visto como o Al. de 25 de Maio de 1698 os chama – Censos. Mas outra tem sido a prática:

O mutuante, é responsável pelo prejuízo, que resultar dos defeitos da coisa emprestada, que sabendo, ocultou.

 8] Dinheiro. E se o empréstimo for de outro objeto?

Geralmente se diz que não tem lugar esta lei (Borges Carneiro – Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 40).

Entretanto se esta Ord. não se deve entender taxativa, mas demonstrativamente (Borges Carneiro sob n. 37), o empréstimo condenado dever-se-ia estender a outros objetos, por que como bem diz o mesmo Jurista n. 41, pode dar-se dolo, como no contrato de mohatra da Ord. deste liv. t. 67 § 8.  

Cumpre notar que este mútuo é proibido, com ou sem juros.

 9] Filhos-famílias. Estas palavras, diz-se, se entendem demonstrativa e não taxativamente. Entretanto o contrário foi decidido na Casa da Suplicação no ano de 1642, na causa de Antônio Luiz de Oliveira, filho natural de Diogo Luiz de Oliveira, outr’ora Governador da Capitania  da Bahia, assunto da Dec. 151 de Themudo, segunda parte.

Vide Borges Carneiro – Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 37.

Parece de equidade, que se o filho natural estiver sob o poder do Pai, deve também gozar deste benefício, máxime achando-se reconhecido na conformidade da L. de 2 de setembro de 1847, visto como a razão daquele aresto fundava-se na Ord. deste liv. t. 92 § 1.

 10] Esta disposição foi tirada da l. 7 § 3 e 9 ff.  ad. Senat. Cons. Maced.

Os Senatus-Consultos ou decretos do Senado tiravam de ordinário o seu nome do Cônsul ou Cônsules em cujo governo eram promulgados, mas algumas vezes do nome dos indivíduos, em ódio de quem eram expedidos.

O Senatus-Consulto Macedoniano, fonte desta lei está neste caso.

A lei Romana deste nome teve origem no reinado do Imperador Cláudio, quando vivia em Roma um famoso usuário chamado Macedo ou Macedon, que assolava com suas usuras a cidade eterna.

Esta é a opinião de Gothofredo a quem segue Lima com., mas Vicat no seu Vocabulário, sustenta que o nome da lei proveio de certo Macedo filho-famílias, uma das mais notáveis vítimas dos usurários de Roma.

Mas esta lei parece que caiu logo em desuso, por isso o Imperador Vespasiano a renovou, e fez-lhe dar todo o vigor.

Segundo Godofredo a lei promulgou-se no quarto Consulado de Cláudio e no terceiro de Vitelio no ano de 799, da República, e 46 de Cristo, segundo Pedro Faber, data que é contestada por Bach, e Warnkænig que julgam que a promulgação verificou-se no ano 800 da República, e 47 de Cristo.

Vide Suetonio na vida de Vespasiano cap. 12, Gothofredo – Digesto liv.  14 t. 6, Vicat – Vocabularium ultriusque juris, arts. Macedo e Macedonianum, e Lima – com. n. 3.

 11] E também por emprego e função pública que importe emancipação.

 12] Esta Ord. deve-se entender de acordo com o art. 1 § 3 do Cód. Com. que diz:

«art. 1° Podem comerciar no Brasil:

«§ 3. Os filhos-famílias que tiverem mais de dezoito anos de idade, com autorização dos pais, provada por escritura pública.

«O filho maior de vinte um anos que for associado ao comércio do pai, e o que com sua aprovação, provada por escrito, levantar algum estabelecimento comercial, será reputado emancipado e maior para todos os efeitos legais nas negociações mercantis.»

 13] Atualmente, como bem diz T. de Freitas Consol. art. 486 nota (5), só pode ter lugar com infração da lei, em vista do Cód. Com  art. 1 § 3 supracitado.

 14] Este pecúlio não deve-se entender o profecticio, por que neste tem o pai usufruto.

Borges Carneiro parece entender o contrário ( Dir. Civ. liv. 1 t. 21 § 191 n. 19.)

  15] Vide Barbosa, e Lima nos respectivos com., Silva Pereira – Rep. das Ords. to 2 nota (b) à pag. 236, Almeida e Souza – Notas a Mello to. 2 pag. 113 a 155, e Obrig. pag. 29, 89 e 98, e Borges Carneiro – Dir. Civ.. liv. 1 t. 21 § 191 de n. 46 a 57.

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