sábado, 17 de outubro de 2009

Vida e Arte 2 - Novelas e Impostos

Como já disse em Vida e Arte 1, a arte precisa ter verossimilhança. Então, quando um personagem vai vivenciar situações previstas em lei, o enredo precisa seguir o que a lei manda, sob pena de perder a credibilidade, que, em arte, se chama verossimilhança. Na novela "das 8" do momento, um personagem deve tributos e teme ser chamado pela Receita Federal. Mas, entre os tributos que deve, está o IPTU. E fica dizendo que a Receita Federal vai cobrar o IPTU. Talvez boa parte dos telespectadores nem ligue para isso. Mas qualquer bacharel em Direito que tenha frequentado regularmente e faculdade e estudado o mínimo para receber honestamente seu diploma, sabe que o IPTU é um imposto arrecadado pelo Município e só o Município pode cobrá-lo. O personagem também demonstra muito medo de ser preso por não pagar tributos.
A Constituição faz uma lista de tributos e quem pode cobrar o que. E o Código Tributário Nacional traz alguns conceitos.
Segundo a Constituição, são impostos da União (vulgarmente conhecida como "Governo Federal") e, portanto, fiscalizados pela Receita Federal:

Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
I - importação de produtos estrangeiros;
II - exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;
III - renda e proventos de qualquer natureza;
IV - produtos industrializados;
V - operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários;
VI - propriedade territorial rural;
VII - grandes fortunas, nos termos de lei complementar

Já os Estados arrecadam os seguintes impostos:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;
II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;
III - propriedade de veículos automotores

E aos Municípios cabem os seguintes impostos:

Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I - propriedade predial e territorial urbana;
II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

Há as contribuições e as taxas que, junto com os impostos, compõem os tributos, conforme os seguintes conceitos do Código Tributário Nacional:
Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
Art. 5º Os tributos são impostos, taxas e contribuições de melhoria.
Art. 16. Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.
Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Parágrafo único. A taxa não pode ter base de cálculo ou fato gerador idênticos aos que correspondam a impôsto nem ser calculada em função do capital das emprêsas
.
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.
O conceito de contribuição de melhoria do CTN foi restringido pela Constituição, que diz o seguinte sobre taxas e a referida contribuição, no art. 145:
II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição; III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.
Existem outras contribuições, como, por exemplo, aquela destinada a custear a seguridade social (descontada dos empregados e repassada ao INSS).
Se o tributo é daqueles que pertencem à União (ver acima), cabe à Receita Federal apurar, lançar e notificar o contribuinte para pagá-lo (ou seja, ver quanto a pessoa deve de imposto e avisá-lo para pagar). No âmbito da Receita, o contribuinte pode discutir o tributo e recorrer em todas as esferas administrativas. Só depois do devedor percorrer todas as instâncias recursais da Receita (STF, HC 81611) é que o processo poderá ser cobrado judicialmente e o contribuinte, se for o caso, processado criminalmente. Se o contribuinte não pagar, a Receita Federal manda um processo para a Procuradoria da Fazenda Nacional e, se for o caso de crime, um processo para o Ministério Público Federal (Procuradoria da República).
A Procuradoria da Fazenda Nacional vai cobrar o imposto na Justiça Federal (entra com um processo de execução, para que sejam penhorados bens do contribuinte). Mas o contribuinte pode discutir, de novo, o imposto na Justiça e percorrer todas as instâncias do judiciário.
O processo que vai para o Ministério Público Federal, será a preciado pelo Procurador da República, que pode requisitar à Polícia Federal um inquérito ou denunciar direto para a Justiça Federal, dando início a uma ação penal, que objetiva colocar o sonegador na cadeia.
Se o imposto for do Estado, a Receita Estadual (depois de todos os recursos administrativos)manda um processo para a Procuradoria do Estado (que vai cobrar na Justiça Estadual, com todos os recursos judiciais cabíveis) e um processo para o Ministério Público Estadual (Promotoria de Justiça), que vai denunciar direto ou requisitar um Inquérito para a Polícia Civil Estadual e denunciar depois, objetivando a prisão do sonegador.
Se o imposto for do Município, depois de esgotados os recursos adminstrativos,vai um processo para a Procuradoria do Município, que cobrará a dívida na Justiça Estadual, com direito a todos os recursos judiciais. E vai um processo para o Ministério Público Estadual (Promotoria de Justiça), que denunciará direto ou requisitará um Inquérito para a Polícia Civil Estadual e denunciará depois, objetivando a prisão do sonegador.
Nem toda falta de pagamento de tributo é crime. Os casos de crime são os seguintes:
Lei 8.137/90:
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Código Penal:
Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de:
I - recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à previdência social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público;
II - recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços;
III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela previdência social.
Art. 337-A. Suprimir ou reduzir contribuição social previdenciária e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
I - omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviços;
II - deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços;
III - omitir, total ou parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

No tocante à prisão por causa de não pagamento de tributos, não tenho visto razão para muito medo por parte dos sonegadores. Em 12 anos de Ministério Público Federal, fiz muitas e muitas denúncias por sonegação de impostos. Vi casos de absolvição porque o réu alegou que estava sem dinheiro para pagar o tributo; vi casos de condenação com conversão da pena de prisão em prestação de serviços à comunidade, mas só vi um caso de prisão. É muito pouco. Além disso, como uma decisão do STF que exige esperar que o sonegador queime todas as etapas de sua defesa perante a Receita Federal (HC 81611), para, só depois disso (que se chama preclusão administrativa), o Ministério Público ter condições de propor a ação penal, as chances de processo, condenação e prisão são pouquíssimas. Ou seja, para quem tem por profissão ser o Estado Acusador, a situação é pouco motivadora profissionalmente.

Um comentário:

  1. Concordo que a arte precise ser verossímil (o entretenimento também), mas aí fica aquela brecha sobre a ignorância ser do autor ou da personagem. Se na novela o cabra tiver medo de ser preso, ainda é verossímil, caso não seja do meio jurídico. Porém, se a Receita Federal notificar a personagem por falta de pagamento do IPTU, aí é uma tremenda falha de pesquisa do autor. Abs

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